Os mitos e os medos de doar medula óssea

O transplante alogénico é frequentemente a única alternativa terapêutica

É necessário apenas 1 a 5% da medula óssea para salvar uma vida. Por isso, os níveis da medula voltam ao normal rapidamente, sem perigo para a saúde do dador. No entanto, a percentagem de dadores indisponíveis ainda é considerável.

Cerca de 80% de todos os doentes têm, pelo menos, um potencial dador compatível e o transplante de medula óssea é a única forma de cura para uma percentagem elevada de pessoas com doenças graves e fatais, como linfomas, leucemias, anemias graves, entre outras. O Dia Mundial do Dador de Medula Óssea assinala-se a 19 de setembro.

Doar medula óssea é um ato simples e seguro que ajuda a salvar vidas. Mesmo assim, há dúvidas e receios sobre o processo, sobre riscos e perigos. Em 2018, por exemplo, 80 inscritos no Centro Nacional de Dadores de Medula Óssea (Cedace) recusaram fazer a doação quando foram chamados. A percentagem de dadores indisponíveis é considerável. A principal razão para as desistências relaciona-se com os mitos criados em torno do processo de colheita da medula óssea.

O procedimento cirúrgico não é a única forma de doar medula e não há impactos negativos para o dador. Em quase 80% das vezes, a medula é extraída a partir de um processo denominado aférese, que não envolve cirurgia e é semelhante à transfusão de sangue. O dador pode sentir apenas um ligeiro desconforto e vai para casa no próprio dia.

O maior número de transplantes é realizado a doentes com leucemias, em particular as leucemias de pior prognóstico, em que as probabilidades de cura sem transplante são muito reduzidas

“Cerca de 70% dos doentes que dependem do transplante não têm um irmão compatível e, por isso, a única opção é encontrar um dador fora da família”, adianta Ana C. Alho, assistente hospitalar de Hematologia Clínica do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Por isso, é fundamental continuar a sensibilizar para a importância desta dádiva e desmistificar algumas ideias erradas. “Em primeiro lugar, importa reforçar que quanto maior o número de inscritos no Cedace, maior é a possibilidade de encontrar um dador compatível, permitindo a realização de transplante alogénico (com células de outro) com maior sucesso”, indica.

“Assim, sendo o transplante de Progenitores Hematopoiéticos (PH), isto é, de células estaminais com o potencial de originar células sanguíneas, uma terapêutica curativa para determinadas doenças benignas e malignas, na ausência de irmãos ou irmãs compatíveis, a existência de um dador compatível é sinónimo de remissão duradoura para muitos doentes.”

Um dador tem de ser saudável, ter entre 18 e 45 anos, peso mínimo de 50 quilos, altura superior a 1,5 metros, e não ter sido transfundido após 1980, ou seja, ter recebido uma transfusão de sangue. A inscrição deve ser feita de forma consciente e informada e envolve a recolha de uma pequena amostra de sangue para análise. Uma vez inscrito, o dador integra automaticamente o registo nacional e mundial, onde permanece até aos 55 anos ou antes, em caso de desistência. Durante esse período, caso surja um doente com quem apresente compatibilidade, o dador é chamado e, se mantiver o interesse na dádiva, colhe-se então sangue periférico para estudos adicionais.

A recuperação após a doação é rápida e alguns dadores retomam as suas atividades normais no dia seguinte

Uma vez confirmada a compatibilidade, a colheita de PH pode ser feita de duas formas, ao critério do dador. Segundo Ana C. Alho, “uma das formas consiste na colheita por veia periférica, um processo que não envolve cirurgia e é semelhante à transfusão de sangue, durante o qual o dador fica ligado a uma máquina por onde circula o sangue, sendo separadas as células estaminais, que serão armazenadas num saco de transfusão. A este processo antecede um tratamento prévio com injeções de fator de crescimento que estimulam a medula óssea a produzir mais células estaminais.”

“Outra forma é a colheita de medula óssea no bloco operatório, sob anestesia, por punção dos ossos da bacia”, refere. Ambos os procedimentos, sublinha, são seguros e não afetam a posterior atividade de vida do dador, sendo nessa fase que termina o contributo. Posteriormente, as células colhidas do dador são transfundidas no doente, previamente condicionado com quimioterapia em alta dose ou imunossupressão.

“Esta terapêutica permite criar espaço para que as células infundidas se multipliquem e deem origem a novas células sanguíneas. Este é um processo moroso, durante o qual o doente está mais suscetível a complicações, nomeadamente infeções oportunistas, pela ausência de células com imunidade eficaz. Das infeções mais frequentes destacam-se as infeções virais, nomeadamente a infeção por CMV, que sendo um vírus latente na maioria da população, tem um elevado risco de reativação nos doentes imunodeprimidos, condicionando elevada morbilidade”, explica.

Há medicamentos eficazes no tratamento de uma eventual infeção e que impedem a sua progressão para doença

O transplante alogénico é frequentemente a única alternativa terapêutica, pelo que na ausência de um dador compatível, são aceites dadores sem compatibilidade total. “Nestes casos existe um maior risco de doença do enxerto (dador) contra o hospedeiro (doente), que é a principal causa de insucesso do transplante alogénico. O incentivo à dádiva de PH aumenta, assim, a probabilidade de ter um dador compatível, contornando desta forma a principal complicação do transplante alogénico.”

O atual contexto exige maior sensibilização. “Se até agora os mitos e a desinformação têm impedido as pessoas de doar medula óssea, neste ano, governado pela pandemia Sars-Cov2, o afastamento social e o medo prevalecem face aos gestos de dádiva que podem salvar vidas. Torna-se, por isso, premente assinalar o Dia Mundial do Dador de Medula Óssea e incentivar as pessoas a tomar a decisão informada de se tornarem dadores”, sublinha a assistente hospitalar.