Não são histórias de contos de fadas estas. São histórias de quem, na luta contra a covid, amarfanhou probabilidades e prognósticos e saiu por cima. Quase sempre com uma boa dose de sofrimento à mistura. Mas invariavelmente com final feliz. São histórias que não calam uma tragédia global, a dor de tantos. Muito menos permitem baixar a guarda, nesta luta que é de todos. Mas que nos podem servir como refúgio de conforto - de otimismo também - em dias de abismo.
José do Coração, 89 anos, a dois meses dos 90, nasceu e cresceu em Constantim, aldeia do concelho de Vila Real. Passou anos largos a achar que se chamava Fernando, até chegar à inspeção militar e perceber que afinal tinha sido registado como José. Não casou nem teve filhos, mas perdeu a conta às décadas que dedicou ao trabalho no campo, agricultor de sol a sol. Também foi roupeiro do clube de atletismo da terra. Corria com os catraios e tudo. “Pois claro, tinha de os acompanhar. Fiz muita ginástica.” Vem isto a propósito da prova que José, coração transbordante de alívio, acaba de superar.
Residente do Lar de Nossa Senhora das Dores (Vila Real) há quase dez anos, reconhecido pela boa disposição, por cuidar com aprumo do pequeno quintal da instituição e por se desfazer em mimos com os gatos que ali coabitam, viu-se, lá para os finais de março, no epicentro de um cenário de assombro e temor. No espaço de dias, o número de idosos do lar com Covid-19 escalou a ritmo galopante. Ao ponto de a instituição ter sido notícia por haver funcionárias às janelas, a pedir ajuda para lidar com a situação. O apelo inaudito surtiu efeitos. Aos poucos, os idosos começaram a ser retirados do Nossa Senhora das Dores. José, coração nas mãos, saiu na madrugada de 27 para 28 de março, com destino ao Trofa Saúde Hospital, numa longa e imponente operação sanitária, que se traduziu na retirada de mais de 50 idosos (outros já tinham saído antes).
Filipa Campos, diretora técnica da instituição, recorda-se de ir dar com ele meio lamechas, a lágrima a querer a aninhar-se no canto do olho. “Lembro-me que estava mais sensível. O cenário também assustava. As pessoas a aparecerem de rompante com aqueles fatos para os tirar do ambiente que lhes é familiar. Percebe-se, não é?” Os números do Nossa Senhora das Dores haveriam de assustar mais. Dos 75 utentes que se encontravam no lar, 72 testaram positivo para Covid-19. Oito acabaram por falecer. José, coração estoico, foi infetado, mas resistiu aos números da fatalidade.
E se os quase 90 anos que carrega antecipavam uma luta feroz – há muito sabemos que este vírus, malvado e cobarde, ataca com particular veemência os mais velhos -, ainda mais sendo diabético, este vilarrealense estilhaçou todas as teorias: duas semanas de vigilância no hospital (entretanto, o lar foi totalmente evacuado e sujeito a um processo de descontaminação), zero sintomas. “Não tive nada, nada. Nunca me deu dor de cabeça, nem me deu para tossir, nem vómitos, nem nada”, diz-nos, coração reconfortado, o José de Constantim. “Eu sou rijo, sou duro como o ferro”, faz-nos saber, via telefone.
Filipa, que durante aqueles longos dias do internamento fazia questão de ir ligando aos idosos do lar (“sabe, é ingrato, ficámos mediáticos pelos piores motivos, pelo número de casos, quando sei que sempre fizemos e fazemos tudo para dar os melhores cuidados aos nossos utentes”, desabafa), lembra-se de sentir José, coração inquieto, apenas impaciente por voltar à instituição. “Uma das preocupações dele era saber se os animais estavam bem.” E estavam. Resistiram todos. Tal como José, coração de leão e uma explicação pouco científica mas docemente aprazível para a resiliência. “Isto foram os ares do campo, sabe? E o desporto. Um milagre? Então não é um milagre? Eu acho que é. Estou aqui bem.”
Vencer o bicho aos 100 anos
Ivo Gomes, neto de Emília Delfina da Conceição, também registada Emília Rosa de Jesus, e carinhosamente batizada de “Ti Coelha”, “Bó Coelha” ou Coelhinha, hesita perante a palavra milagre. Só porque associa o termo à religião e se sente cada vez mais distante dela. Mas tem fé que “há qualquer coisa acima de nós” e que essa força maior ajudou a que, aos 100 anos, a avó de que tanto se orgulha fizesse gato-sapato do vírus que o Mundo teme. Esta força, está certo, é em grande parte a de Emília. “É uma guerreira. Uma força da natureza.”
A vida, a abarrotar de agruras e façanhas, fê-la assim. Emília nasceu em Fiães (Santa Maria da Feira), em dezembro de 1919, fazia pouco tempo que a Primeira Guerra Mundial tinha acabado. Fez-se menina sem ir à escola e mulher enquanto trabalhava para ajudar os pais a ter comida em casa. Viveu o Estado Novo e a Segunda Guerra Mundial e tudo o que estava para vir. Conheceu de perto a pobreza e as dificuldades de um tempo que hoje parece miragem. Engravidou aos 18 anos e criou a primeira filha sozinha, porque o pai da criança, por pressão da família, fugiu para o Brasil. Voltou a apaixonar-se.
Casou apressadamente em 1942, teve o primeiro rebento desse matrimónio em 1943 e não parou tão cedo. Sete filhos de enfiada que lhe valeram a famosa alcunha de coelha. O marido morreu-lhe anos depois, em 1958. E ela com um magote de filhos a cargo, sem fundo de maneio para os criar. Não se ficou. Trabalhou numa fábrica de papel e fez rendas de bilros, prestou serviços numa funerária, na jorna e na apanha da lenha, vendeu fruta, ovos e regueifa. Criou a pulso a família que hoje tanto orgulho tem nela. Devota, sempre devota, viu três filhos e quatro genros irem para o Ultramar – e voltarem sãos e salvos. Aos 100 anos, tem 14 netos e 20 bisnetos. E está há sete no lar de Santa Teresinha, em Cucujães (Oliveira de Azeméis). Porque se sentia sozinha e não queria ser um estorvo.
Ao cabo de tanta desventura, um vírus tende a parecer uma ameaça menor. Não este, que já infetou mais de três milhões de pessoas em todo o Mundo, com mais de 200 mil mortos registados, e que tem especial predileção pelos idosos. Para Emília, o sinal de alerta chegou no epílogo do mês de março. Febre e dificuldades respiratórias fizeram soar o alarme, tanto mais quanto dois padres da instituição já tinham testado positivo. A avó Coelha teria o mesmo veredito. Foi internada a 30 de março e passou dias a oxigénio. A família chegou a temer o pior. Mas a verdade é que a matriarca nunca precisou de ventilador e manteve-se sempre longe dos cuidados intensivos. Lentamente, foi recuperando. Deixou o oxigénio ao fim de oito dias. Mas ainda esteve internada por mais dez. “Mais para ser vigiada”, garante o neto.
A 17 de abril, voltou ao Lar Santa Teresinha (onde entretanto foram confirmados três óbitos). Ainda debilitada, apagada, quase sem falar, nada que ver com o habitual jeito brincalhão. “Também deve sentir falta da família. Os meus tios iam lá todas as semanas e agora não podem. Acho que lhe falta isso.” Ivo Gomes, o neto, põe-se a adivinhar. Mas os últimos dias resgataram traços da avó Coelha habitual. A boa nova chegou com o telefonema da filha mais nova. Mais animada, já mais predisposta à conversa, Emília devolveu o carinho com um caloroso “olá filha”. E até acedeu a cantar uns versos de “No alto daquela serra”, uma música quase tão antiga como Emília. “Está a precisar é de um copo de vinho do Porto”, brincou a filha. “Calma que eu vou lá”, devolveu a mãe. Como que a brindar à vida.
“Nem o diabo me quis lá”
João Paulo Rodrigues, 57 anos, residente em Aveiro, também já se permite uma dose de bom humor. “Estive vários dias no inferno e nem o diabo lá me quis”, ironiza. Soa bem-disposto, mesmo que ainda lhe restem a rouquidão e o desgaste de 29 dias de tormentas, aqueles que passou internado no Hospital de Aveiro. Tudo começou de mansinho, sem prenúncios de aflição ou desgraça. Depois de uns dias de uma tosse seca, Paulo foi sentindo um mal-estar no corpo, como uma gripe que se anuncia. Sócio-gerente de uma empresa de pré-fabricados em betão e diretor da natação do Clube dos Galitos, em Aveiro, optou por resguardar-se em casa. Ainda ligou para a linha SNS24 e chegou a fazer um teste online, mas a probabilidade de ter cedido ao maldito vírus era de 25%.
A esposa não sossegou ainda assim. Manteve-se em contacto com uma amiga do hospital e não tardou até que uma ambulância fosse buscar o marido a casa. Quando lá chegou, Paulo já tinha febre. “Lembro-me que me deitaram numa maca, me começaram a despir e perguntaram se tinha ido alguém comigo. Depois só tenho ideia de me dizerem: ‘Você vai ser já internado. Se não atuarmos já, daqui a meia hora pode não estar cá para contar a história’. Pelos vistos já estava com os níveis de oxigénio muito baixos.” Foi a 23 de março. Paulo garante que não o apoquentava o medo de morrer. Mas a ideia de partir sem poder sequer despedir-se da família era particularmente dolorosa.
Paulo lembra-se de ser entubado. E de ser desentubado. E de ter que ser entubado outra vez porque estava a colapsar. Do que aconteceu pelo meio pouco sabe. “Não tenho recordações. Só de estar deitado na maca e de acordar, muitos dias depois, com muita gente à volta.” É como se alguém lhe tivesse passado um apagador naqueles longos e sofríveis dias. Só de coma induzido, foram quase 20. E só depois disso, quando viu um doente que estava ao lado entrar em colapso três vezes, percebeu o que tinha sido dele naquele período. “É brutal”, resume, a dureza das últimas semanas a pesar. Quando voltou a casa, estava com menos 15 quilos. “Essa foi a única parte boa.”
Paulo acredita que os problemas inerentes ao excesso de peso, associados à diabetes, o fizeram mais vulnerável ao vírus. Também por isso se autointitula de “felizardo”. “Eu não sei se o que aconteceu foi um milagre, mas sei que algo muito forte me deixou aqui. Os médicos chegaram a ver o caso muito mal parado.” O aveirense sente que o facto de ser um otimista por natureza o ajudou. Mas determinantes foram os profissionais de saúde que o acompanharam e lutaram por ele quando o vírus o quis levar. “Não calcula a festa que eles fazem quando nos veem a sair, recuperados. Nunca é de mais enaltecer o esforço daquela gente. Se eu fui um milagre, eles são os obreiros do milagre.”
Ver a própria morte e voltar à vida
António Correia Pinto, 63 anos, vereador da Câmara Municipal de Matosinhos com os pelouros da Educação e da Qualificação Ambiental, redobra os elogios. “As equipas médicas foram absolutamente excecionais. Só quem lá está é que percebe. Se hoje estou aqui a falar consigo, devo-o em grande parte a eles. Porque a dada altura eles lutam mais do que nós.” À custa da Covid, António esteve internado no Hospital Pedro Hispano durante um mês, uma boa parte do tempo com prognóstico muito reservado. Diabético, hipertenso, doente cardíaco, tornou-se uma espécie de bomba-relógio da Covid-19.
Mesmo que tenha andado largos dias com sintomas, sem fazer ideia do que o esperava. Primeiro uma “tossezita”, depois uma febre, e então o teste. Positivo, pois. Por ser um doente de risco, foi internado. Estávamos a 19 de março. “Quando entrei no hospital, as coisas precipitaram-se, os sintomas agudizaram-se rapidamente. Depois de vários exames soube que tinha uma pneumonia e que estava a caminho de uma insuficiência respiratória grave. Acharam que o melhor seria induzirem-me o coma para que os pulmões pudessem ser limpos com mais facilidade.” António consentiu. Sabe que depois ainda esteve ligado ao ventilador durante uns dias. Mas os factos daqueles dias dissolvem-se numa nebulosa de alucinações.
Podia jurar, por exemplo, que as filhas tinham lá estado a vê-lo todos os dias. Até a voz lhes ouviu. Mas não. Não estiveram. Não podiam. Podia jurar também que, na unidade de cuidados intermédios, para onde passou depois dos intensivos, havia nuvens de mosquitos. Mas não. Pior, bem pior, foi “viver” o momento da própria morte, funeral incluído. Felizmente, eram tudo alucinações, derivadas do coma que lhe induziram. O que não foi alucinação foi o sofrimento daqueles dias, mesmo depois de estar livre de perigo.
“É um tratamento muito duro, muito exigente. Ter uma máscara de oxigénio a apertar a boca e o nariz 24 horas sobre 24 horas é uma aflição brutal. Mesmo entre o coma e a cura foi um processo penoso, com injeções permanentes. Só tirar sangue eram três ou quatro vezes ao dia. E como estive quase quatro semanas sem pôr os pés no chão, quando voltei a andar, parecia que não sabia como fazer. O corpo pesava toneladas. É um processo muito doloroso e acho que ainda há muita gente que não tem consciência disso.”
Admite que, naqueles dias que passou no hospital, com uma réstia de consciência, a morte lhe ia passando pela frente várias vezes. “Tive esse medo. Passou-me várias vezes pela cabeça que não fosse correr bem.” O prognóstico que iam dando à família não era melhor. “Foram dando conta de que a coisa era complicada, até por causa dos outros problemas que eu tinha.” Mas lutaram até exaustão. E quase um mês depois de ter dado entrada no Pedro Hispano, António estava em casa, pronto a celebrar uma vitória sem igual. “É uma sensação de alívio brutal, de regresso à vida. Uma segunda oportunidade.”
“Afinal não morri”
Américo Lucas, 68 anos, residente em Coimbra, sabe bem o momento em que sentiu que o tinham devolvido à vida. Numa amálgama de dias inebriados, tingidos de imagens desfocadas e ilusórias, lembra-se de ter voltado a ele, depois de uma luta feroz nos cuidados intensivos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, e de ter pensado: “Afinal não morri. Ainda cá estou.” Foi o momento em que recuperou a consciência. Para trás, ficavam dias a fio nos cuidados intensivos (foram dez, ao todo), em coma induzido.
Ainda que ele não se recorde de praticamente nada. Lembra-se, isso sim, que em meados de março, quatro dias antes de ser internado, sentiu uma dor no peito. E os músculos do tronco como que a atrofiar. Também perdeu o apetite. Ainda passou na farmácia para comprar medicação, convencido de que fosse uma gripe. Mas acabou por ir à médica de família, que se apressou a mandá-lo fazer exames. Depois disso, Américo Lucas, que por tomar medicação para o coração é considerado doente de risco, recorda-se de pouco.
Recorda-se de chegar ao hospital e o deitarem numa maca. Recorda-se do tal despertar em que se sentiu voltar à vida. Recorda-se de chegar à enfermaria preocupado com a esposa, porque lhe tinha ficado com os cartões todos. Recorda-se de arribar assim que pôde falar com a família e ver uma foto do netinho. E recorda-se de profissionais de saúde incansáveis, mesmo que nunca lhes tenha visto os rostos. “Eles merecem tudo.”
Tanto que, quando se apanhou em casa, seguro e de boa saúde, fez questão de escrever uma carta ao hospital, onde agradecia todos os cuidados prestados pelos que, não duvida nem por um segundo, lhe salvaram a vida. “Obrigado pelas horas de tratamento e alguma conversa junto da minha cama e pelo passo de dança feito por um profissional para me dar ânimo e alegria num momento de privação familiar”, escreveu.
Gestos que ajudaram a aligeirar o fardo de uma luta devastadora. “Quando acordei não tinha força para nada, não conseguia fazer nada. Nem comer. Uma enfermeira tinha de me dar a comida. Não conseguia aguentar nem os braços nem as pernas. Foi como se tivesse de reaprender a andar e a comer.” Mas aprendeu. E as melhoras acumularam-se de dia para dia. Hoje, já curado, mas sem certezas quanto à imunidade que o vírus confere, Américo joga pelo seguro. Caminha em volta da casa, sem se aventurar a ir mais longe. A justificação é mais do que compreensível: “Não sei se vou ter outro milagre.”
Dois milagres em 11 meses
Laurinda Pinheiro, 56 anos, assistente técnica do Hospital de Aveiro, boa-disposição contagiante, gratidão estampada no discurso, pode orgulhar-se de ter tido dois. O primeiro foi há mais ou menos 11 meses, ainda o coronavírus andava longe de ser uma dor de cabeça. As dores angustiantes no peito duraram-lhe três semanas, o tempo que ela levou a descobrir que estava a ter um enfarte. Quando deu entrada no hospital, “já estava quase sem vida”. Associada ao enfarte teve uma pneumonia. Passou dias internada e mais de quatro meses de baixa. Aos poucos foi recuperando, mas nunca mais se sentiu a 100%. “Fiquei a uns 70%”, atira, animada, mesmo. O episódio inclui-a nos grupos de risco do novo coronavírus. E Laurinda não lhe escapou.
Primeiro sentiu uma espécie de arrepio no pulmão esquerdo. Achou que era gripe. Tomou ben-u-ron, um banho e embrulhou-se na manta. Era sábado, 14 de março. No domingo, já tinha dores de cabeça. Mas segunda-feira foi trabalhar. Nos dias seguintes haveria de piorar. Dores musculares, diarreia, falta de ar. Ao ponto de ter que pedir baixa e se dirigir às urgências. Acabaria por ser internada. Tubos nas narinas, garrafas de oxigénio, oito dias longos. E o otimismo sempre presente, assegura. “Sou muito positiva, acho sempre que vai correr bem. E a partir do momento em que estava nas mãos daqueles profissionais estava pronta para tudo. Se fosse preciso ligarem-me ao ventilador estavam à vontade.” Mas não foi. Laurinda haveria de ser bafejada com um segundo “milagre”.
Ora por ser o que os médicos gostam de chamar de “boa doente”, ora pelo otimismo incorrigível, desafiou os prognósticos e acabou por estar internada apenas oito dias, sem sequer chegar a abeirar-se dos cuidados intensivos. Talvez por isso, por estar em casa há já três semanas, por se sentir bem, mesmo tendo menos forças, Laurinda fala com uma alegria que contagia. “O que interessa é que estou viva.” E ri. Ri muito. Ou outro improvável final feliz, a servir de inspiração para um horizonte mais luminoso.