Valter Hugo Mãe

Os menos disciplinados


Somos os únicos que verdadeiramente podem investir numa nova normalidade com segurança.

Claro que me irritou que amigos justificassem a maior ocorrência de casos positivos no norte do país dizendo que as pessoas daqui seriam “menos disciplinadas”, mais dadas a um entusiasmo social que se põe de abraços e beijos fáceis. É a mesma ingenuidade de se dizer que no norte se come tão bem, que ainda somos todos boa gente e que parecemos mais felizes, certamente por termos a TAP do nosso lado.

O norte foi apanhado de surpresa, como foram a Lombardia ou Madrid. Não creio que se possa estabelecer entre estas diversas regiões um nexo de “menor disciplina”. Dizem respeito a culturas distintas, realidades distintas que, de comum, terão exactamente aquilo que dizia: foram apanhadas à traição, viram-se a braços com um problema que, ainda que se previsse, não se poderia dominar nem dirigir sem essa coisa grave do embate efectivo.

Se o norte lidou com o acaso e a surpresa, tendo dificuldade num controlo maior devido ao seu tecido industrial, grande força braçal que fornece o país inteiro, não deixa de ser claro que a região de Lisboa padece justamente pelo regresso ao trabalho que, sendo menos industrial, implica ainda assim a movimentação massiva nos seus exigentes transportes públicos. É praticamente impossível esperar que as pessoas se protejam do vírus na contingente necessidade de se atropelarem no metro e nos autocarros como inevitavelmente acontece. É como pedir para que comamos enfim o bolo e, no entanto, o deixemos intacto. Ou é tempo de voltar ao trabalho e estão geradas condições para isso, ou então tem de se admitir que já se sabia que as pessoas haveriam de adoecer, exactamente por voltarem ao trabalho sem se verificarem condições para o fazerem em segurança.

A grande diferença entre o que vai no norte e o que vai agora mais a sul é que já não há surpresa e também já não há pachorra para quem se mantém desinformado. O que vier a acontecer já não pode ser completamente lido pela responsabilidade política. Nesta fase, a cidadania já não pode destituir-se de seu próprio compromisso. Ainda que entre o problema dos transportes e o que se passa em festas, bares e restaurantes cheios e mais praias à pinha, vá uma grande diferença, já nenhum António Costa se pode ver linearmente como culpado. É fundamental entender-se que o gesto foi deixado nas nossas mãos. Somos os únicos que verdadeiramente podem investir numa nova normalidade com segurança.

Parece-me que chegamos ao momento de interromper esta retórica que, de admoestação em admoestação, vai desculpando a propagação do vírus. A passagem para uma lógica mais sancionatória é a última opção, antes que voltemos a parar a economia e, então, dobremos o desemprego e a miséria que já estão garantidos no futuro próximo. É lamentável, mas julgo que o endurecimento das medidas contra quem não cumpre será o retrato mais triste e necessário dos que, afinal, tiveram melhores condições para passar pela pandemia.