Os dilemas de um amor confinado a quatro paredes

Previsivelmente, a tensão aumenta quando nos referimos a uma situação de confinamento forçado, sem os balões de oxigénio a que estamos habituados

Notícias da China, onde os divórcios aumentam no pós-quarentena, servem de alerta. Isolamento é prova de fogo na vida a dois.

A vida toda confinada ao mesmo teto, a rotina esmagada em quatro paredes, uma relação vivida 24 horas sobre 24 horas. A necessidade de conter os danos da letal Covid-19 colocou o país em isolamento profilático e mergulhou-nos numa realidade que até aqui era território desconhecido. Sem dias de trabalho fora de casa. Sem saídas com amigos. Sem vida social. Muitas vezes, sem espaço sequer. Para respirar fundo e recuperar a compostura necessária para enfrentar as curvas dos dias. A missão é imponente, tanto mais quanto nova e inesperada. E coloca-nos perante uma multiplicidade de desafios. Preservar a sanidade mental, por mais tempo que passemos encerrados em casa, é um deles. Manter uma relação a dois saudável e à prova de bala nestas circunstâncias também tem que se lhe diga.

Se dúvidas houvesse, as notícias que vêm da China, sujeita a uma quarentena rígida e quase generalizada durante semanas, bastariam para as dissipar. Da cidade de Xiam chegam relatos de uma corrida desenfreada às conservatórias para tratar do divórcio. É o jornal “Global Times”, periódico chinês de língua inglesa, quem o garante. Certo, uma possível explicação é o facto de as conservatórias terem estado encerradas durante um mês, o que levou a que pedidos que normalmente seriam distribuídos no tempo se aglomerassem agora. Mas segundo funcionários citados por aquela publicação, é mais do que isso. “Por culpa da epidemia, muitos casais ficaram presos em casa mais de um mês, o que exacerbou os conflitos”, contou ao “Global Times” um funcionário de uma conservatória.

Esta urgência de pôr fim ao matrimónio não surpreende quem há muito estuda áreas como a da família e a das relações. Desde logo porque, como afirma Maria Isabel Dias, socióloga, as situações de dificuldade extrema tendem a ter o condão de nos fazer “refletir sobre o sentido afetivo das relações”. A isso junta-se uma leviandade crescente na hora de pôr término a uma relação. É a chamada “monogamia em série”. “Nesta loucura do nosso quotidiano, em que queremos soluções muito imediatas, as pessoas desistem mais facilmente das relações”, justifica a especialista em sociologia da família.

Rute Agulhas, psicóloga clínica e terapeuta familiar, também olha para as notícias vindas da China com relativa naturalidade. Até porque, lembra, basta olhar para o que acontece após prolongados períodos de férias. “Habitualmente, observa-se um aumento do número de separações e divórcios depois desta altura em que os casais convivem mais tempo um com o outro.” A lógica é simples: “Durante o ano vivem noutro ritmo, mais centrados no trabalho, nos filhos e nas rotinas. Muitos casais, mesmo com a noção clara de que a relação afetiva já não é o que era e que muito pouco ou nada os une à outra pessoa, evitam pensar sobre isso. Negam, minimizam e preferem acreditar que com o tempo vai melhorar. Neste contexto de distanciamento afetivo e menor intimidade emocional, conviver com o outro 24 sobre 24 horas acaba por tornar-se insuportável. Tudo o que o outro diz gera irritação e discute-se por tudo e por nada”. É a também chamada socialização por fricção.

E isto a propósito de um simples período de férias. Previsivelmente, a tensão aumenta quando nos referimos a uma situação de confinamento forçado, sem os balões de oxigénio a que estamos habituados. Sejam eles as saídas para o trabalho, para o ginásio ou para convívio com os amigos. Rute Agulhas explica-o detalhadamente: “Estamos confinados ao espaço doméstico, com novas rotinas às quais nos temos de ajustar, ao mesmo tempo que se trabalha à distância, se gerem os filhos e as suas inúmeras tarefas escolares, as compras e a organização da casa. Em simultâneo, paira no ar a ansiedade e o medo associados a um inimigo comum e invisível”.

Isto assumindo que há filhos. E se não houver, a paz e a sã convivência do casal estão garantidas? Nada disso. Tem a palavra Catarina Mexia, terapeuta de casal e psicóloga clínica. “Ambas as situações podem gerar desgaste. É verdade que o fator filhos pode agravar a tensão porque há uma série de coisas para gerir. Por outro lado, teoricamente, os filhos também introduzem um fator de diversão. Dependerá sempre das circunstâncias. O que posso dizer é que, numa situação destas, o facto de não haver filhos não é um fator de bom prognóstico em si mesmo.”

Uma pausa para café… sem sair de casa

Mas calma. Não assumamos o pior. A realidade, alerta Maria Isabel Dias, especialista em sociologia da família, é que a convivência do casal dependerá sempre do estado prévio do vínculo. “Quando as relações conjugais já são marcadas por uma certa conflitualidade, esta tende a acentuar-se num período destes”, defende a especialista, que assume estar particularmente preocupada com o previsível aumento da violência doméstica. Por outro lado, se não houver problemas à partida, pode sempre ocorrer uma certa saturação, “mas o que a literatura nos mostra é que os casais que estão bem, emocional e sexualmente, vão tendo outras estratégias de gestão deste desgaste provocado pela convivência forçada”.

O grande desafio passa pois por saber respeitar e incentivar o espaço um do outro. Mesmo que em permanência debaixo do mesmo teto. A conjugalidade moderna, tão dependente da necessidade de liberdade, assim impõe. Catarina Mexia recorre a uma metáfora sugestiva, em jeito de conselho. Se no dia a dia uma saída para um café ou para apanhar ar pode ajudar a colocar um problema ou uma discussão em perspetiva, a ideia será, pois, criar a nossa “saída para café” dentro de casa. Arranjar um espaço só nosso, onde possamos encontrar refúgio e alívio se a saturação nos quiser vergar. “No fundo, é permitir que o outro tenha tempo para si. O que significa poder dedicar-se àquilo que são os seus gostos, os seus hobbies, sem que o outro sinta isso como uma rejeição, mas como algo necessário. É complicado em relações com grande dependência, mas é fundamental.”

Há outras “regras” importantes a seguir em tempos de confinamento. Validar as emoções do parceiro, por exemplo. “Parece algo banal mas pode fazer maravilhas. Quando a pessoa está preocupada, ansiosa, irritada com a situação e se diz ‘eu percebo, mas vamos gerir isto com calma’, ou simplesmente se encosta o ombro, estão-se a dar passos importantes para que as coisas corram bem. Desvalorizar a emoção do outro pode agravar e fazer com que o parceiro se sinta incompreendido e rejeitado. É uma das coisas que mata uma relação.” Catarina Mexia deixa outros conselhos, mais rotineiros: arranjar tempo para conversar, partilhar histórias familiares, introduzir o aspeto lúdico (através de jogos, por exemplo), repartir tarefas, arranjar um espaço na casa onde se possa descontrair caso haja uma discussão, manter contacto, mesmo que por telemóvel, com familiares e amigos. “Tanto os amigos em comum como os amigos de cada um.” Rute Agulhas acrescenta outras dicas: manter o sentido de humor, falar sobre o que se pensa e se sente, privilegiando a empatia, validar a importância do trabalho um do outro. “Mensagens que transmitam a ideia de que ‘o meu trabalho é mais importante do que o teu’ são totalmente proibidas.”

Caso estes princípios sejam seguidos – ou pelo menos uma parte significativa deles – os casais poderão, em princípio, esperar boas notícias. “Podem sair desta crise mais unidos e com uma sensação de aprendizagem e crescimento.” Como enfatiza Catarina Mexia, “esse é que é o grande desafio”. Precisamente haver tempo para ter a coragem de respirar fundo e pensar: “‘O que é que posso tirar disto?’. Esta maior convivência permite tentar perceber melhor o outro.” A prova de fogo já começou.