Longas horas tem uma quarentena

Pouco comum no nosso país, o cenário da quarentena domiciliária não é, no entanto, uma novidade absoluta

O procedimento não é comum em Portugal, mas está na ordem do dia face à propagação acelerada do Covid-19, recém-chegado ao nosso país. No passado, já houve uma fragata lusitana a ficar isolada. Uma equipa de futebol também. Testemunhos de quem sentiu na pele as restrições de uma medida preventiva com séculos de existência.

Hermínio Miranda, comandante Sousa Miranda dentro da hierarquia militar, leva mais de 30 anos de Marinha. E ainda assim distingue aqueles dias de julho de 2009 de todos os outros. “Foi a única vez que vivi uma coisa assim. Penso até que tenha sido o único caso que houve na Marinha portuguesa.” Nesse mês de julho, estava ele e mais 181 marinheiros a bordo da fragata Bartolomeu Dias, ao largo de Plymouth (um porto localizado no sudoeste inglês), quando uma notícia veio virar do avesso seis semanas de treino intenso. A gripe A, a tal que provocou centenas de milhares de mortes em todo o Mundo e levou a Organização Mundial de Saúde a avançar pela primeira (e até agora única) vez com um alerta pandémico, tinha chegado à Bartolomeu Dias. “Um dos nossos marinheiros apresentava um conjunto de sintomas que apontavam para isso. Como aquela base tinha um centro de saúde, a equipa médica da fragata decidiu levá-lo para lá, para fazer testes, e confirmou-se”, recorda Sousa Miranda, na altura o imediato da fragata (oficial que é o “número dois” do navio, só atrás do comandante).

A confirmação do caso do marinheiro infetado com gripe A teve repercussões em toda a guarnição. “O nosso comandante comunicou logo às autoridades portuguesas o que se estava a passar e pusemos em prática o plano de contingência que estava definido pela Marinha.” Os 181 marinheiros da Bartolomeu Dias, excluindo aquele a quem foi diagnosticada gripe A e que, por isso, ficou internado no centro de saúde, ficariam, pois, de quarentena, obrigados à toma de um antivírico e sujeitos a monitorizações diárias, para aferir o aparecimento de eventuais sintomas. Aos homens do topo da hierarquia, o imediato Sousa Miranda incluído, caberia executar as diretrizes definidas superiormente, reduzindo ao mínimo quaisquer receios. “A nossa preocupação foi chamar toda a gente e explicar de forma muito transparente o que se estava a passar, sem esconder nada, para evitar pânicos ou alarmismos. Depois, todos os marinheiros foram aconselhados a contactar as famílias para as informar do que estava a acontecer.”

O então imediato da fragata reconhece que as atualizações foram recebidas com “apreensão”, até por se tratar de um vírus novo. Mas garante que a clareza da mensagem afundou pânicos e alarmismos. Restava, por isso, definir estratégias para que as longas horas da quarentena se fizessem mais breves, mais suportáveis também. “Fizemos questão de manter a guarnição sempre ocupada com atividades. Havia períodos para falarem com as famílias, períodos para cumprirem as rotinas diárias do navio, rever relatórios de treino ou simplesmente para jogos de tabuleiro. Fizemos questão de garantir que a guarnição tinha dias bem preenchidos, para não estarem a pensar na doença”, justifica o comandante Sousa Miranda. Tudo sob recomendações firmes quanto aos cuidados a ter para evitar eventuais contágios. Etiqueta respiratória, lavagem frequente das mãos, uso de líquidos antisséticos. Sete dias depois, a quarentena terminava “com sucesso”. “Chegámos a ter na fragata marinheiros com possíveis sintomas de gripe A, mas nunca soubemos se era ou não. Certo é que quando terminou o isolamento todos os militares estavam operacionais.”

O século XIV e os “quaranta giorni”

O isolamento das tripulações a bordo dos navios representa, precisamente, a primeira forma de quarentena de que reza a História. Começou algures no século XIV, no tempo em que as pragas epidémicas se espalhavam como rastilho, dizimando grande parte das populações. Na altura, os navios que chegavam a Veneza, provenientes de portos infetados, eram intimados a ancorar durante 40 dias, antes que os marinheiros pudessem desembarcar. O próprio termo quarentena nasce daí, dos “quaranta giorni” impostos pelos italianos como forma de garantir que os locais estariam a salvo das enfermidades trazidas de além-mar. Entretanto, com a disseminação de doenças várias, da febre-amarela à cólera, da tuberculose às febres hemorrágicas, vai-se generalizando essa prática, que, a partir do século XIX, passa a ter, em muitos países, enquadramento legal. Mesmo que a obrigatoriedade dos 40 dias de isolamento se tenha esfumado com o tempo. Hoje, como explica Júlio Oliveira, coordenador da Comissão de Controlo da Infeção do Centro Hospitalar do Porto, a quarentena “vai sendo muito menos comum, porque as doenças infecciosas têm um impacto diferente na comunidade do que teriam nos séculos passados, particularmente antes de surgirem os antibióticos”.

Em julho de 2009, os 181 tripulantes da fragata Bartolomeu Dias foram obrigados a ficar de quarentena, depois de um dos marinheiros ter sido infetado com gripe A
(Foto: Marinha Portuguesa)

A questão da quarentena volta à ordem do dia agora que o coronavírus vai, aos poucos, envolvendo o Globo numa rede epidémica que já chega a dezenas de países dos cinco continentes. Em Itália, por exemplo, onde já há largas centenas de pessoas infetadas, várias cidades do norte foram mesmo isoladas para evitar a propagação do vírus. Em Portugal, onde a confirmação dos primeiros infetados chegou no início da semana, o coronavírus também já motivou situações de quarentena. Desde logo, no caso dos 18 portugueses retirados da cidade chinesa de Wuhan – mais duas brasileiras – , epicentro da epidemia. Todos se sujeitaram voluntariamente a um período de quarentena de 14 dias (o tempo médio de incubação da doença), que decorreu no Hospital Pulido Valente, em Lisboa. Outro caso que chegou ao radar dos meios de comunicação social foi o de uma atleta de bilhar do F. C. Porto que, depois de participar numa competição em Itália, optou por se isolar em casa, numa “quarentena voluntária”, para evitar contágios. Entretanto, a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, já fez saber que, em caso de isolamento, tanto os funcionários públicos como os trabalhadores do setor privado terão direito a receber 100% do salário. E até a ministra da Saúde, Marta Temido, admitiu que, em situação de emergência de saúde pública, pode vir a ser decretada a quarentena obrigatória .

A semana de “folga” do Freamunde

Pouco comum no nosso país, o cenário da quarentena domiciliária não é, no entanto, uma novidade absoluta. Que o digam os atletas que integraram o plantel sénior da equipa de futebol do Sport Club Freamunde, nos idos da época 2009/10. A confirmação de que o avançado Cascavel tinha sido infetado com gripe A foi o mote para que toda a equipa ficasse recolhida em casa durante quase uma semana. Bock, na altura capitão do Freamunde, hoje treinador do Maia Lidador, lembra-se que quando a notícia da doença de Cascavel chegou, os jogadores se sentiram “um bocadinho alarmados”. “Chegámos para treinar, mas já não treinámos. O médico comunicou-nos que o nosso colega tinha contraído gripe A e que, por precaução, íamos ter de ficar de quarentena em casa e de vigiar os sintomas, sobretudo febres altas e fadiga fora do normal”, lembra o antigo avançado.

Em 2009, a equipa do Freamunde esteve de quarentena domiciliária, após um jogador ter contraído gripe A
(Foto cedida pelos S.C. Freamunde)

Seguiram-se dias enclausurados, horas a fio enfiado no quarto, para reduzir ao mínimo as hipóteses de contágio. “Na altura, como bebíamos todos das mesmas garrafas de água e tudo, ficámos um bocado assustados. No meu caso, como tinha duas meninas pequenas, lembro-me de sentir aquele receio de acontecer alguma coisa. Não por mim, mas por elas.” Por isso, evitava abraços e grandes contactos. E preferia cingir-se a um espaço fechado do que circular pela casa a toda a hora. Valia-lhe… a bola. “Via jogos de futebol na televisão. Muitos. E vídeos dos nossos jogos. Filmes também. E tinha os jornalistas a ligar-me todos os dias. Mas acabou por nem custar assim tanto.” Dias depois, a ordem de quarentena era levantada. E, no regresso aos treinos, o assunto até deu para puxar ao humor. “Costumávamos dizer que se descêssemos de divisão o Cascavel é que ia ser o culpado. Mas não descemos”, brinca Bock, 11 anos depois.

Quarentena, isolamento e precauções

De volta à quarentena. E ao isolamento. Há diferenças? Há, pois. Júlio Oliveira, do Centro Hospitalar do Porto, resume-as, simplificando. “A quarentena usa-se, regra geral, quando alguém ainda não tem doença. O isolamento diz respeito a casos em que a pessoa já está doente.” O clínico, especialista em medicina interna, ressalva, ainda assim, que o termo isolamento tem vindo a ser preterido. “Hoje em dia referimo-nos mais a ‘precauções baseadas na via de transmissão dos micro-organismos’.” Transmissão essa que pode ocorrer pelo ar, por contacto ou por gotículas.

No caso de doenças que se transmitem pelo ar, como a tuberculose, “as pessoas devem estar em quartos individuais, se possível com pressão negativa e filtros de alta eficiência”. Se falarmos de vírus transmitidos por gotícula, como é o caso do Covid-19, é recomendado um afastamento de “um metro e meio, dois metros”, e, no caso de quem já esteja infetado, o uso da máscara, para evitar o contágio do ambiente e conviventes. Quanto às precauções relativas à transmissão por contacto, a mais comum em bactérias e vírus (incluindo o coronavírus), é essencial assegurar a higiene das mãos, com várias lavagens e até com recurso a substâncias antisséticas. E se nos próximos meses for sujeito a uma quarentena domiciliária, também há dicas para diminuir a possibilidade de contágio dentro de casa. “As pessoas em quarentena devem procurar ter um compartimento reservado para si, mantendo um afastamento de dois metros em relação a outros. Além das medidas da etiqueta respiratória, também é importante higienizar as mãos frequentemente e sempre que se desloquem à casa de banho. E quando circularem fora do compartimento reservado para si, o melhor é usarem a máscara.”

[Nota: peça publicada originalmente no dia 8 de março de 2020]