Gustavo Tato Borges põe o despertador para as sete da manhã. Acorda antes. Angustiado com o muito que ainda há para fazer. Mário Rui Salvador deixou de contar as horas para contar os casos positivos. Sem surpresa, tem sempre mais doentes do que horas. Gabriela Saldanha abdicou das férias para antecipar a segunda vaga da pandemia. Atende chamadas de dois em dois minutos. Os médicos de saúde pública foram chamados ao palco da covid.
As pilhas de papel acumulam-se, aparentemente caóticas, na secretária do apertado gabinete que divide com uma colega. Tabelas, rascunhos, notas, sublinhados. Olhos no mail. Telefone no ouvido. Ocasionalmente levanta-se para esticar as pernas. Sempre em chamada para identificar ou despistar casos de covid. Retrato real dos dias de Gustavo Tato Borges, 38 anos, delegado de saúde em Santo Tirso e Trofa desde dezembro de 2016. Ri-se. Um tanto nervoso e aflito. Respondendo assim ao esforço de memória que lhe é pedido: a vida mudou muito nestes últimos meses? “De março para cá, tudo o que fazíamos habitualmente parou.” As principais tarefas diárias desses idos dias saem-lhe ordenadas. Faziam-se vigilâncias epidemiológicas e sanitárias; fazia-se recolha e análise de dados para planeamentos em saúde; vigiavam-se águas para consumo humano e também estabelecimentos de restauração e bebidas; dava-se gás a um recente programa de apoio aos lares. E ainda reservavam um dia e meio para as juntas médicas. Brinca o médico, “era a atividade mais temida da semana”. Agora que enfrenta diariamente um verdadeiro inferno, é-lhe fácil caracterizar esses dias: “Calmos”, pois permitiam pensar, organizar. “Tínhamos bastante trabalho, mas ainda assim a um ritmo muito diferente do atual.” Desde que a pandemia chegou, a única atividade que conseguem fazer é contactar pessoas com covid positivo e falar com os contactos desses infetados, acompanhando-os todos os dias. Uma loucura.
A quilómetros dali, a história repete-se. Embora Mário Rui Salvador, 31 anos, não possa dizer que sabe o que é ter uma vida de delegado de saúde antes da pandemia. Curiosamente (e oficialmente) nem depois. Terminou este ano o internato médico em Lafões, Viseu. A 15 de outubro foi colocado como médico especialista em saúde pública na Guarda. E desde então que está a aguardar nomeação. Um processo que por norma demora dois a três meses. Dada a situação, será difícil cumprir a previsão. “O que não nos pode impedir de tomar decisões. E temos necessariamente de as tomar.” A voz não lhe podia sair mais firme. Afinal, tem também ele nas mãos a responsabilidade de, naquele concelho, fazer a vigilância epidemiológica do vírus que virou o Mundo ao contrário. “Tem sido um trabalho muito exigente.” E tende a agravar-se. Pelo desgaste de este ser um problema que se prolonga no tempo, pelo reduzido número de pessoal, e mais ainda pelo incumprimento da população em geral. “Os convívios familiares são o que mais nos têm preocupado, mais até do que as situações de surtos em lares e escolas, porque aí há planos de contingência, circuitos definidos. Em ambientes caseiros é mais difícil. Era importante que houvesse uma consciencialização coletiva de que dependerá de cada um de nós, e dos nossos comportamentos em casa, o controlo desta situação.” Mário Rui toca na ferida e apresenta provas. “Devo receber umas 100 chamadas por dia e nunca lhes consigo dar resposta.”
Nos concelhos de Baião e Resende, com esforço, isso ainda vai acontecendo. Porém, Gabriela de Lacerda Saldanha, autoridade de saúde pública local desde 2005, faz questão de sublinhar: “A qualquer momento podemos deixar de estar em contraciclo, nada é garantido”. A receita do controlo dos números sai-lhe do corpo. Ao assumir a luta contra a covid-19 nos dois concelhos, tomou a decisão de sacrificar a sua vida que, até então, “era equilibrada”. Trabalha das oito da manhã à meia-noite ou uma da madrugada. De domingo a domingo. Sem férias. Dedicada a conter uma pandemia “sem fim à vista”. “A hora é esta.” E, assim, se antes já havia “disponibilidade permanente” para a comunidade, agora passou a ser “completa”. O segredo tem sido a antecipação e a boa coordenação com todas as autoridades: Proteção Civil, Bombeiros, GNR, agrupamentos de escolas, lares, Segurança Social. “Fomos todos para o terreno e organizámos, antecipadamente, estratégias para as nossas instituições e para a nossa comunidade. Em termos estruturais, em termos funcionais e em termos de comunicação.” As semanas têm sido de recolher os ganhos do suor investido. “O nosso trabalho no terreno é muito importante em associação com o trabalho de gabinete. Eu não sou nada, a não ser a ponte de ligação com os meus parceiros. Se não funcionarmos como uma grande equipa e não tivermos objetivos comuns, não conseguimos.”
“Isto vai explodir a qualquer momento”
A 30 de outubro, só em Baião, havia 59 casos positivos ativos, num total acumulado de 233. Por telefone, a equipa de duas médicas e três enfermeiras acompanhava diariamente 900 pessoas em isolamento. A reunião com a equipa para o ponto de situação foi às 9.30 horas. Passados 20 minutos, Gabriela estava a desequipar-se para sair. Nessa manhã havia três objetivos: visitar o cemitério municipal para perceber se as regras impostas para o fim de semana dos fiéis estavam a ser cumpridas; visitar o Lar São Bartolomeu, para rever planos de contingência, verificar área de isolamento, discutir o modelo dos novos testes rápidos; e falar da linha Covid Lares. “Os próximos quatro meses vão ser muito difíceis, é preciso apertar ainda mais as medidas.” Uma mensagem que a delegada de saúde repetiu na reunião que se seguiu com os diretores dos três agrupamentos de escolas locais. Aí o foco era dispersar os alunos à saída das aulas e sensibilizar os pais para o uso da máscara pelas crianças do primeiro ciclo. Pelo meio, as viagens de carro serviram para ir atendendo o telefone que tocava de dois em dois minutos. Havia perguntas para responder. Pareceres para dar. Ideias para discutir. Situações críticas para antecipar.
“Estamos a ficar exaustos. Andamos há oito meses a trabalhar sem parar e sabemos que os casos vão aumentar, que isto vai explodir a qualquer momento, que podemos ficar doentes, mas temos de continuar. Porque as pessoas, coitadas, estão em casa, estão também exaustas, desesperadas, precisam de apoio, precisam de contacto. Temos de tentar, com os recursos que temos, dar resposta em tempo útil.”
Contactos por email, telefone e redes sociais
Gustavo Tato Borges volta a sorrir. Mecanismo de defesa. “Aqui em Santo Tirso, dos quatro médicos só três conseguem ligar para os novos casos que surgem. Temos ainda dois internos do ano comum, uma interna da especialidade e duas enfermeiras a fazer esse trabalho.” Desde 1 de outubro até ao dia 30, entraram em Santo Tirso/Trofa 1 274 casos novos. Com a linha de SNS24 a referir que os médicos iriam entrar em contacto no prazo de dois ou três dias. “É impossível.” Resultado: os utentes, sem resposta, iam reclamar presencialmente que não tinham sido contactados pela saúde pública. Passaram também a ligar para os números pessoais dos médicos – “Um amigo que falou consigo em março disse-me que o doutor me podia ajudar”. Até as redes sociais começaram a ser uma estrada de fuga. “Eu peço desculpa, mas eu sou fulana de tal e tive isto, será que me pode ajudar?” E os testes para passar vão-se acumulando, bem como as declarações de isolamento profilático para emitir. E há ainda os descrentes da pandemia para convencer de que tudo isto não é uma brincadeira. “Mas eu não sinto nada, vou ficar em casa para quê?” A par das dúvidas, as ameaças. “Já tive de participar de um jovem à Polícia . Ao telefone comigo, além de multiplicar a teoria de que isto é uma farsa e que os testes são feitos com o propósito de nos meter em casa, acabou por me dizer que se perdesse o emprego por ter de ficar em isolamento me apanhava na rua e não havia polícia que me valesse”, partilha o delegado de saúde, encolhendo os ombros.
Na verdade, percebe-se a complexidade de certas situações. Na tentativa de contactar e identificar quem esteve em contacto com infetados, ou possíveis infetados, apanham-se diversos motivos para ocultar a verdade. “Há quem nos minta porque estiveram num evento com mais pessoas do que é permitido e não querem que se saiba. Porque estiveram onde não deviam e não querem que saiba. Porque têm medo que não sei quem perca o emprego se ficar em isolamento. Porque o emprego não está legalizado e se ficarem em isolamento não vão receber dinheiro e há filhos para alimentar.” A intuição vai-se apurando. “Felizmente, a maioria das pessoas diz a verdade. E, se não dizem, muitas vezes as instituições ajudam-nos nesse trabalho de identificação.”
Há outro problema mais frequente. Os que negligenciam os sintomas – “Já é normal ficar doente no outono”, ou “é só um pingo no nariz”. Entretanto, passadas duas semanas, os médicos de saúde pública correm atrás do prejuízo, para identificar o máximo possível de pessoas que precisam de ser testadas e postas em isolamento. “Há dias em que entram 93 casos novos. O que se torna completamente impossível de recuperar.” Um trabalho diário, de grande responsabilidade, que vai gerando ansiedade. “O telefone continua a tocar, às 22, às 23 horas.” Com dúvidas sobre máscaras, sobre eventos, sobre procedimentos. Com situações críticas que urgem decisões. “Temos noites em que nos custa adormecer por estarmos a pensar no que temos para fazer no dia seguinte, ou naquela situação mais complicada que aconteceu num lar ou numa fábrica. E também acontece ter o despertador programado para as sete horas, mas acordar antes com a angústia do muito que ainda está para fazer.” E as horas do relógio que não esticam.
Cada caso é uma caixinha de surpresa
Mário Rui Salvador, que por estes dias zela pela Guarda, diz que deixou há muito de contar as horas. “Passámos a contar casos positivos. E há sempre mais casos positivos do que horas nos dias.” O que não deixa espaço para mais nada. “Nem em termos pessoais, para nos dedicarmos à nossa família ou a ter momentos de lazer, que a todos fazem falta. Nem para termos formações complementares, muito importantes na nossa área.” A família e os amigos não o veem há meses. O mesmo podem dizer os docentes do doutoramento em que se matriculou. “Não encontro tempo para assistir às aulas.” E, mesmo assim, vivendo exclusivamente para a covid-19, “tem sido impossível dar resposta a todas as solicitações que chegam”. De 15 a 29 de outubro, 422 novos casos. Multiplicados por cinco a dez contactos próximos, são 1 500 a três mil pessoas para acompanhar. “Os inquéritos epidemiológicos são a nossa função nobre. Temos de contextualizar o caso positivo: saber com quem esteve, quando e onde, desde que os sintomas começaram.” Cada telefonema é uma caixinha de surpresa. “Podemos ter pessoas que geram pouquíssimos contactos próximos. E depois há as que, por não acatarem as recomendações, tiveram 10, 20, 30 contactos.” Mais. “Uma chamada tanto pode durar 15 minutos a resolver, se a pessoa se tiver resguardado, como há situações nos lares, nas empresas, nas escolas, que podem dominar todo o nosso dia.” Longas jornadas, para tentar quebrar as muitas cadeias de transmissão.
Mário Rui tem horário de entrada, por volta das 8.30 horas. A saída é imprevisível. A pausa para as refeições é espremida. “Há colegas a entrar em burnout. Tenho consciência que quando chegam as 22/23 horas não vale a pena continuar aqui. É preferível descansar e no dia seguinte voltar a trabalhar com mais ânimo. Sobretudo, com a cabeça fresca. Os profissionais estão a fazer um esforço notável.” Não há tempo para nada, a não ser para trabalhar em casos de infeção. “Quando esta especialidade salta para o palco da vida é porque a situação é séria”, constata Mário Rui Salvador e o eco ouve-se em Baião.
“Tenho a certeza que estamos todos 100% dedicados. Temos de liderar o processo de maneira forte e confiável. O que fizermos tem de ser na obtenção dos ganhos da saúde e na prevenção eficaz da doença.” O que não significa que por serem da área tomem sempre as melhores decisões. Se há coisa que este coronavírus nos fez ver é que sabemos ainda muito pouco sobre ele. É por isso que Gabriela assume com humildade que estes meses têm sido de aprendizagem. “Por vezes, através de tentativa-erro. Nem sempre as estratégias dão o resultado que esperamos. É preciso limar arestas, o que faço basicamente todos os dias no terreno.” As vitórias caminham lado a lado com as frustrações. “Nem sempre conseguimos passar as mensagens necessárias, nem sempre conseguimos obter os resultados necessários porque este concelho não é uma ilha. Existem populações móveis e, portanto, não depende só de nós.”
Quando os dedos se apressam a apontar falhas, a fraqueza humana toma a dianteira nas emoções. “Vou-me abaixo, não escondo. Nós, que estamos na luta diária, à secretária ou no terreno, sabemos o quanto nos empenhamos. Pomos todos os outros à nossa frente. Por isso, quando me deito, seja a que hora for, sei que fiz o melhor que sabia e podia. As pessoas nem sempre compreendem ou aceitam as nossas decisões. Nem sempre têm noção do trabalho que fazemos. O que pode ser duro. Mas, no dia seguinte, acordo e digo a mim mesma: vamos para a luta. Continuo. É complicado. Temos de nos ir animando mutuamente.”
Espera-se que depois deste inverno, e com o eventual surgimento de uma vacina segura e eficaz, a pandemia estabilize. Quanto mais não seja, no próximo inverno. Até lá, os delegados de saúde vão continuar a ser protagonistas desta tragédia. Com máscaras, os seus olhos vão mirando o futuro. No fim, diz Gabriela, “vamos ter um esgotamento”. No fim, diz Mário, “vamos ter muitas lições para tirar”. No fim, diz Gustavo, “e depois do relatório da pandemia, que ainda vai dar muito trabalho, vamos precisar de uns bons meses de descanso”. No fim.