Os diários de guerra de Graça e Marta

Sábado, 21 de março. Pela primeira vez em muitos dias, a cientista Graça Freitas tem uma hora disponível para as orquídeas de que tanto gosta. “Há semanas que não regava as plantas, coitadas, estão a ficar amarelas. Depois do almoço estive a cortar as folhas velhas”, confidencia, ao telefone, a diretora-geral da Saúde. O boletim epidemiológico das últimas 24 horas revela números crescentes. Em Portugal, o dobro das mortes da véspera – de seis para 12 – e mais 260 infetados, num total de 1 280. Nesse dia, o Mundo conta, pelo menos, 12 725 perdas humanas e 291 mil pessoas atacadas pelo vírus que lhe tira o sossego e o sono. Todas as noites recomeça “Memórias de um Gato Viajante”, de Hiro Arikawa, leitura para dias de preocupação, propositadamente leve. “Mesmo assim” – diz – “ainda não consegui sair da página dez. Esqueço-me do que já li.”

Dorme da uma às cinco e meia da manhã. Na mesa de cabeceira, deixa os dois telemóveis, que nunca desliga. Quando dão sinal fora de horas, seguramente uma urgência, tenta não ceder ao sobressalto, mas vive em disponibilidade permanente para a função que desempenha, “que é apenas aquilo que se espera de um bom profissional”. Quer deixar clara a ideia. “Não estou a fazer nada de extraordinário.”

(Foto: José Sena Goulão/Lusa)

Dia seguinte, domingo. Portugal soma 14 mortos, são confirmados mais 320 contágios. É de manhã cedo e já Marta Temido está no Ministério. Na ausência de fins de semana, chega ao gabinete antes das 8 horas sem saber quando poderá regressar a casa, percurso que agora, contra o que é hábito, não pode ser feito a pé. Os telemóveis, sempre prontos – dezenas de telefonemas e mensagens de apoio, mas também propostas de negócio oportunistas e impensáveis -, acompanham-na para onde quer que vá. “Já dei com eles dentro da cama.” Desligar é verbo proibido.

A resistência

Ao telefone, da voz firme da ministra da Saúde não transparecem estados de alma. “Como estou eu? Deixe cá ver. Estou bem. Preocupada, mas a resistir, sempre, e preparada para o que é preciso fazer todos os dias.”

Dentro dos dias, momentos “muito, muito difíceis”. Alguns deles com dura carga simbólica – a primeira confirmação de contágio, no seu quadragésimo sexto aniversário, vivido longe da família e dos amigos. A primeira morte (Mário Veríssimo, de 80 anos). A assunção do estado de emergência, decretada a 19 de março. “Foi duro ouvir essa declaração. Nunca pensei que um dia passaria por tal.”

(Foto: Miguel Marques/Global Imagens)

Difícil tem sido também “a sensação de quase impotência” perante a escassez no mercado de material essencial, falta que tem obrigado à procura de artigos “em lugares do Globo que nem sabíamos que existiam”.

Quem a tem acompanhado de perto descreve a segunda reunião do Conselho Nacional de Saúde Pública, até agora a mais complicada das reuniões. “Muito descontrolo e confusão, ninguém se entendeu. Nunca a vi tão desesperada.” Ela, que no primeiro encontro do Conselho “esteve perfeita a coordenar e a resumir a conclusão em cinco pontos, numa ótima síntese”.

“Como estou eu? Deixe cá ver. Estou bem. Preocupada, mas a resistir, sempre, e preparada para o que é preciso fazer todos os dias”
Marta Temido
(Ministra da Saúde)

Também Graça Freitas não esconde preocupação e cansaço. Porém, tranquila. “Encontro-me a viver uma época única nas nossas vidas e a fazer o melhor que posso, e que sei, a parte pequenina que me compete.”

Quando a China identificou, em janeiro, cadeias de transmissão quadrinárias (um doente pode infetar até quatro pessoas), tomou consciência do drama exponencial que ia chegar. “No entanto, nunca pensei que fosse tão duro e atingisse tais proporções sanitárias, económicas e sociais.”

Os primeiros receios de Marta Temido datam da mesma altura. Se tivesse de escrever o diário da crise, começaria pelas notícias que chegaram da China, em dezembro, vistas pela ministra já com temor. “Sabia que ia chegar uma pandemia, e que seria apanhada no quadro das minhas responsabilidades.”

Duras quarentenas familiares

No dia 16 de fevereiro, no âmbito de um perfil para a “Notícias Magazine” e ainda sem registo de sintomas da Covid-19 em Portugal, a diretora-geral da Saúde descrevia um dia perfeito. “Acordar sem dores, tomar longamente um bom pequeno-almoço com café, pão, iogurtes, fazer uma caminhada, visitar a mãe, tratar das plantas e ler. Ouvir Jorge Palma. O que eu gosto de ‘Estrela do Mar’”, dizia.

Da música tem andado arredada. Refeições longas são um luxo nos dias de hoje e, sobretudo, estão proibidas as visitas à mãe. “Tem quase 90 anos, e em quarentena mal soubemos que um familiar nosso esteve em contacto com um doente.” Também as netas, logo que a escola que frequentam registou a presença do vírus, cumpriram o confinamento obrigatório.

(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

Em casa, o marido assegura a logística. “Com muita competência, devo dizer.” Preocupada com o tempo que o companheiro passa nas filas, vai optar pela entrega das compras ao domicílio. A alimentação é simples. “Sem a senhora que nos ajuda nos trabalhos domésticos, tenho feito saladas, com feijão encarnado ou abacate, e uns grelhados.”

Em casa de Marta Temido é igualmente o elemento masculino quem se ocupa das compras. As visitas aos pais e à cidade onde nasceu, Coimbra, estão interrompidas há muitas semanas. Como todos, teme pelos seus. Pela irmã e a pela enteada, médicas do Serviço Nacional de Saúde, que não vê há muito. “Só contacto com o meu marido e com as pessoas do Ministério”, garante. “Um gabinete forte, gente amiga e solidária, que são quem me mantém.”

Nos últimos dias, as reuniões decorrem em videoconferência. Com exceção dos briefings diários, que juntam vários agentes (Infarmed, INSA – Instituto Ricardo Jorge, ou INEM) no Ministério. Cumprindo o protocolo: desinfeção anterior e posterior do espaço e distância adequada. “Há muito tempo que não abraço nem beijo. E que tento não falar de frente para as pessoas”, diz Graça Freitas, recordando os comentários irónicos quando há umas semanas pediu pela primeira vez distanciamento social.

Críticas, chocolates, lágrimas e flores

Está preparada para as críticas, ainda que sejam cruéis. “E algumas são. Vindas de alguns afetam nada, de outros, um pouco.” Dá um exemplo: “Fui muito criticada por ter dito na Assembleia da República que as pessoas, para evitar açambarcamento, podiam recorrer à horta de um amigo. Como se quem vive num apartamento não pudesse ter um amigo com horta. Pois bem, mandaram-me agora a notícia de que alguém arranjou maneira de distribuir cabazes de frutícolas e hortícolas, chamando ao projeto a horta do amigo”. Não cultiva ilusões. “Sei que há dias em que as pessoas vão gostar mais de mim e outros em que vão gostar menos.” Na vida, passou por demoradas adversidades. “Nem tudo são picos, nem tudo são vales.” Assume a resiliência. “É também demasiado condescendente com quem a maltrata”, acrescenta o professor catedrático e amigo Jorge Torgal. Graça Freitas sorri. “Santa não sou.” Os vizinhos deixam-lhe mimos na porta. Uma caixa de chocolates, bilhetes gratos, ramos de flores.

Há sensivelmente um ano, em entrevista à NM, Temido dizia: “Quem pensa que a ministra da Saúde fica fragilizada por aquilo que se escreve sobre ela, engana-se. Não sou surda nem sou cega. Como pessoa, sinto-me. Mas, como ministra, o que dizem de mim não me faz mossa”.

O que dela se diz nas redes sociais, que não frequenta, chega-lhe através dos assessores e da irmã. “Neste momento só atendo a críticas construtivas no sentido de ver em que é que podemos melhorar. Este não é tempo para mágoas.” Faz questão de agradecer “o enorme apoio dos profissionais de saúde, da Ordem dos Médicos e da dos Enfermeiros. O apoio dos veterinários e dos biólogos”.

Destes dias, guarda o gesto que mais a marcou: um e-mail reenviado por um amigo, em que uma médica do Hospital de São João, no Porto, descreve a reação de um doente no momento da alta. “As lágrimas de um homem com idade avançada, até ali convencido de que não iria sobreviver.”

Essa médica acrescenta que não consegue deixar de abraçar a família quando chega a casa. Abraços: “A senhora ministra da Presidência (Mariana Vieira da Silva) está sempre a lembrar que um dia voltarão a ser possíveis”.

Pior do que a guerra

Graça Freitas fala em “maratona no Evereste”. Cautelosa e pragmática, promete fôlego: “Como sociedade ainda estamos na fase inicial. Chegará o tempo de ficarmos cansados das restrições sociais e aí não podemos desistir. Uns dias estaremos mais cansados e desanimados, mas temos de reagir para ultrapassar esta prova”. No final, haverá “muito a aprender com o que foi este tempo”.

(Foto: José Sena Goulão/Lusa)

“Quem alguma vez pensou que andar na rua era uma coisa extraordinária?”, pergunta Marta Temido, para concluir: “Depois disto não serei a mesma pessoa”. O vírus, muito competente, coloca-lhe enorme responsabilidade nos ombros. “Calhou-me este contexto, vamos a isso. A vida é o que é.”

Rejeita cedências à adversidade ou à euforia. Aos que comparam a pandemia a uma guerra, responde que não. Que é pior. “Uma guerra envolve a vontade humana. Aqui é a natureza a confrontar-nos com um imenso desafio.” Não sendo crente, lembra, a propósito dos tempos que vive: “Deus perdoa sempre, o homem às vezes, a natureza nunca. Não estou a dizer que estamos perante um castigo, mas há uma emergência da natureza em que se misturam clima e ambiente. Se alguém tinha dúvidas de que isto anda tudo ligado, penso que agora as desfez”.

Saber ouvir

A ministra não esconde – é dura e muito teimosa. Assume-se “pespineta” e resoluta, mas humilde e capaz de ouvir. Os críticos, que em tempos negavam essa capacidade, agora concordam. “Fartei-me de a criticar severamente, mas, reconheço, tenho gostado da atitude. Parece-me serena, muito sensata, preocupada em fazer as perguntas certas para decidir com segurança.” Filipe Froes, responsável pelo gabinete de crise da Ordem dos Médicos, dedicado à Covid-19, vai mais longe: “Tenho encontrado uma pessoa empenhada e determinada em vencer isto”. Para o pneumologista, “isto” é “o teste de algodão de um país inteiro”. E recorda que é em momentos de crise, como esta, que temos a “noção real da importância de um Serviço Nacional de Saúde forte”.

Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros (OE), vê a ministra “mais tranquila”. Elogia “o esforço, bem-sucedido, no sentido de transmitir calma”. Reconhece a aparência cansada, mas pergunta “quem não estaria?”. Depois da tensão entre o Ministério e a OE, “é com muito agrado” que toma nota da gratidão da ministra.

(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Na linha da frente, há quem encontre uma Marta Temido mais cautelosa na gestão da imagem. “Resguarda-se, tenta não dar as notícias com o sorriso rasgado habitual, ainda que esse sorriso seja uma defesa perante o stresse.”

Graça Freitas autodefine-se em duas palavras: “Absolutamente normal”. Discordam amigos e subordinados. “Interessada, aplicada, estudiosa, rigorosa.” O médico e especialista em Saúde Pública Jorge Torgal, que foi quem a convidou para a DGS em finais dos anos 1990, tem estado em contacto com a amiga. “Ambas têm feito um papel muito importante. De tal maneira que andam com um ar muito cansado. Já o disse à Graça. Mas a verdade é que, quando começa a falar, o cansaço desaparece. ‘Como vai a canseira?’, perguntei-lhe há dias. Respondeu-me que ‘o desafio é maior do que o cansaço’.” O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, normalmente parco em elogios, salientava à NM, há pouco mais de um mês, “a serenidade e a confiança que transmite sempre que fala” e o trabalho “excecional” na DGS.

Podia estar mais bem aconselhada, defendem algumas vozes. “Graça é das pessoas que depressa se torna a colaboradora ideal”, sublinha Jorge Torgal. Que o diga também Francisco George, antigo diretor-geral, que teve em Graça Freitas, diz Torgal, “o braço direito e o esquerdo”.

“Ambas têm feito um papel muito importante. De tal maneira que andam com um ar muito cansado. Já o disse à Graça. Mas a verdade é que, quando começa a falar, o cansaço desaparece”
Jorge Torgal
(Médico, professor catedrático e especialista em Saúde Pública)

Francisco George não fala sobre a mulher que lhe sucedeu no cargo. Mas foi dar-lhe um abraço. “Nestes dias, visitei-a uma única vez. Fui à DGS abraçá-la e deixar uma mensagem de força.” Sobre Marta Temido, garante que não falta ânimo à amiga. “Ao longo deste processo, entre conselhos de ministros e outras reuniões demoradíssimas, que por vezes aparentam não ter fim, em bom estilo português, nunca lhe ouvi qualquer desabafo desanimador. Eu próprio fico espantado.” Quando lhe diz “vamos para frente”, recebe por resposta “não me falta energia”.

Críticas? “Estamos num país onde todos criticam todos. Mas nesta fase, [a Marta] recebe-as com um sorriso e o sentido de humor que nunca perdeu.”

Salgadinhos e batatas fritas

Reuniões matinais longas, conselhos de ministros de horas e horas, conferências de imprensa diárias, dezenas de e-mails a exigirem resposta rápida. Acima de tudo, o vírus competente, de contágio fácil. “Basta olhar para elas para ver que andam cansadas. Estão até a ficar magríssimas”, comenta Filipe Froes, dando-se a si como exemplo: “Ainda ontem regressei a casa às dez da noite e fui diretamente para a cama. Para acordar com igual cansaço, até porque levo logo com centenas de e-mails e mensagens. Imagino o estado de fadiga das duas”. Este é provavelmente, conclui, “o maior desafio da vida pessoal e profissional de todos os envolvidos e acima deles de Graça Freitas e Marta Temido, que têm a coordenação desta luta”.

A diretora-geral da Saúde confirma. “Já emagreci cinco a seis quilos desde o coronavírus. Mas como sou muito pragmática e sei que tenho de estar fisicamente bem, nesta semana incluí na dieta produtos que habitualmente não como.” Batatas fritas, por exemplo: “E que bem me souberam”.

Marta Temido tem dúvidas: “Sem balança em casa e com o ginásio fechado, não tenho como pesar-me. Cansada, sim, mais magra não sei. Tenho comido mal, não faço exercício físico, portanto, não sei”. Vários cafés, sobretudo durante a manhã. “E muitos salgadinhos, muitos, para enganar os nervos”, confessa a ministra.

“Já emagreci cinco a seis quilos. Mas, como sei que tenho de estar fisicamente bem, incluí na dieta produtos que habitualmente não como”
Graça Freitas
(Diretora-geral da Saúde)

“Não somos heroínas, nem mártires, nem supermulheres, nem magas”, dizem ambas. Há semanas em julgamento público, Marta Temido e Graça Freitas, os rostos da resposta à pandemia, obrigadas à verdade e a evitar a disseminação do pânico, assumem a responsabilidade tamanha que lhes caiu em cima, sabendo que nunca mais serão as mesmas. Corredoras de fundo, vivem dias sem fim. Duas mulheres pequenas, aparentemente frágeis, que fazem parte do dia a dia dos portugueses. “São pequenas, mas agigantam-se. Foi o que vi nas reuniões em que estive com ambas. O verdadeiro tamanho delas não é físico.” O elogio vem de quem tem acompanhado o trabalho de ambas nos últimos tempos. E tem resposta: “Estamos a fazer apenas o nosso trabalho”.