Os clássicos da cerâmica que não saem de moda

A imaginação de Raphael Bordallo Pinheiro, multifacetado artista português – ceramista, desenhador, ilustrador, caricaturista político e social, jornalista, professor -, era bastante fértil. Na genialidade da sua cabeça, tudo o que observava na natureza era possível moldar para imitar nas suas criações de cerâmica. Era mesmo e, dessa forma, abriu caminho para uma obra única e intensa feita à mão na Fábrica de Faianças nas Caldas da Rainha. As andorinhas, os centros de mesa, os jarros bustos, os animais agigantados, o mítico Zé Povinho, atravessaram dois séculos. O seu trabalho na cerâmica conquistou medalhas de ouro em exposições internacionais. Tantos anos depois, a Bordallo Pinheiro mantém o ADN do artista entranhado nas peças de texturas vincadas e cores vibrantes.

Couves que são terrinas e candeeiros. Tomates que são pratos de pão, saladeiras, tigelas ou manteigueiras. Melancias que são centros de mesa, meloas que são fruteiras, morangos que são azeitoneiras e taças. Laranjas que são bules, ananases que são molheiras, alcachofras que são saladeiras e pratos de sobremesa. Andorinhas, rãs, sardinhas, animais que se agarram a peças, insetos em vasos, caracóis gigantes, gatos, cabeças de animais, peixes e marisco. Peças decorativas e utilitárias que continuam a ser fabricadas nas Caldas da Rainha e que correm o país e o mundo.

Em 2009, o Grupo Visabeira, dono da Vista Alegre, comprou a Bordallo Pinheiro – antes disso, havia artigos que saíam da fábrica sem a marca Bordallo registada na louça e a cerâmica andava fora do radar do consumidor. A estratégia passou por salvaguardar a identidade histórica da marca de uma figura maior da cultura nacional, manter as peças mais icónicas e artísticas, e renovar produtos, adaptando-os ao mercado. A atenção ao detalhe na modelação das formas e nas texturas, a tradição naturalista e a ligação às artes plásticas são intocáveis. “Com base na obra de Bordallo prosseguimos essa orientação naturalista”, refere Nuno Barra, administrador da Bordallo Pinheiro e da Vista Alegre.

São cerca de 1 300 referências na gama ativa, perto de cinco mil que podem ser feitas por encomenda. São cinco lojas próprias em Portugal, mais uma em Madrid, duas em Paris, e em tantas montras e lojas nacionais. São clientes em vários países, como Espanha, Suécia, Reino Unido, França, Itália, Estados Unidos, África do Sul, Coreia do Sul. São preços acessíveis como mais elevados.

“É uma cerâmica muito transversal e intemporal, são peças muito fortes do ponto de vista visual, com personalidade vincada”, diz Nuno Barra. De cores vibrantes e luminosas que a faiança permite, peças que vivem sozinhas ou que se misturam sem problemas.

“Há uma grande intervenção manual, na ornamentação e na pintura, e a cadeia de produção é lenta”, adianta o responsável. Cerca de 90% das peças da Bordallo têm toque de mãos especializadas. Integridade na tradição, traços de modernidade numa reinvenção que continua a alimentar o imaginário coletivo nacional.

Utilitárias e decorativas

Em Coimbra, também se fazem peças à mão. A Malabar, empresa de comércio artesanal especializada em cerâmicas, produz faiança decorativa e utilitária inspirada na cerâmica tradicional portuguesa do século XVII e XVIII e hispano-árabe. Peças que perduram, vendidas sobretudo em Portugal e nos Estados Unidos. “É uma cerâmica que não cansa. Independentemente de estar um ano ou dez no mesmo sítio, é sempre bonita”, garante Isabel Medina, gerente da Malabar, que tem sete lojas na baixa coimbrã.

Jarras, ânforas, galheteiros, bomboneiras, travessas, pratos, saladeiras, bengaleiros, bules, potes, castiçais, fruteiras. Não há duas peças iguais, todas pintadas à mão com motivos e padrões antigos, retratos de caça, animais, pássaros, florestas. “A cerâmica de Coimbra é uma cerâmica que está sempre na moda, que se consegue conjugar com outro tipo de peças, tanto numa casa de linhas modernas como numa casa de estilo tradicional”, prossegue Isabel Medina.

António Mário, dono da empresa, percebe da arte e deixa um aviso. “É preciso ter mãos para isto. Um modelo não se cria de um momento para o outro, pode levar um mês. Os modelos são muito artísticos, as peças são utilitárias e decorativas.” A Malabar tem cerca de 2 300 modelos e 14 trabalhadores. Cada peça é moldada, vai a secar e é acabada à mão, entra no forno para ser cozida, depois é pintada manualmente e vidrada por emulsão, e volta ao forno as vezes que forem necessárias. “Aliada à tradição acompanhamos as tendências do mercado”, refere o empresário.

Em Lisboa está a fábrica de cerâmica mais antiga de Portugal, e uma das mais antigas da Europa, fundada em 1741. Qualquer peça de faiança Sant’Anna representa a tradicional arte da cerâmica nacional. “É a prova viva de que a cerâmica portuguesa não sai de moda e é reconhecida internacionalmente”, afirma Francisco Tomás, diretor da marca. Cada peça é exclusiva, a diferença de tamanhos e cores é uma característica dos objetos que mostram a genuinidade. São terrinas, chávenas, copos, jarras e jarrões, canecas, castiçais, potes, candeeiros de teto e de mesa, cinzeiros. São cerca de 950 peças diferentes e 85% da produção vai para o mercado externo.

A fábrica mantém os métodos artesanais, da preparação do barro à vidração e pintura. Argila natural, barro moldado à mão, secagem ao ar, cozida a primeira vez, vidrar, pintar manualmente, e novamente no forno a cerca de mil graus. “Cada peça é assinada porque é única.” Francisco Tomás não tem dúvidas de que a cerâmica Sant’Anna não sai de moda e destaca os mais importantes traços para que assim seja. “A unicidade de cada produto; cada produto é único. São produtos com história, feitos à mão numa fábrica com história, com tradição. São produtos exclusivos, com identidade e associados à cultura portuguesa.” É faiança portuguesa, com certeza.