Os bons
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
Admito que estou exausto. Como deixou dito o grande Almada Negreiros, quando nasci todas as frases que salvariam o mundo estavam escritas, faltava apenas salvar o mundo.
Tenho saudades do tempo em que a lisura nos era ensinada por decoro essencial. Talvez seja um defeito isto de que ainda me sobrem gentilezas de menino, a educação antiga para sermos bons e querermos o bem dos outros. E pedirmos licença, jamais nos intrometermos na intimidade dos vizinhos, jamais os impedirmos da sua própria liberdade. Tenho sinceramente saudades da impressão de ver o mundo melhorar, com o muro de Berlim a cair, a democracia a chegar à Rússia, a União Europeia a abrir fronteiras, os portugueses a levantarem a cabeça espanados da miséria que havia até aos anos de 1970 e que se foi esbatendo na década em que cheguei à universidade e me disseram que agora seria irremediável: o mundo aprendera o caminho para a diplomacia e o comércio tinha tudo para começar a ser justo, porque os Estados eram polidos e o sentido podia ser apenas o do convívio e da paz. Nesse tempo, por toda essa conquista e esperança, não desapareceram os mesquinhos preconceitos nem a saudade horrorosa dos que queriam continuar a ser servidos como escolhidos por algum Deus para casta superior. Contudo, era tão claro o grostesco de seus erros que os torpes se deixavam amofinados, bichos do esgoto. Não dávamos por eles.
Como chegamos, pois, ao que vemos em 2020? Como chegamos à normalização da agressão? Em que instante decidimos existir confusão entre agressão e liberdade de expressão? Como legitimamos partidos erguidos na disciplina do ódio cuja acção se faz por instrumentalizar o eleitorado gozando com suas emoções, galvanizando opiniões a partir dos impropérios mais desumanos? Por que raios havemos de ter uma democracia que legitima o concurso dos antidemocratas? Existe sentido nisto?
Esta foi uma semana difícil. Com a indisciplina perante a pandemia, as autoridades permanecendo em seus discursos imprecisos; mais o caso ascoroso de Mariana Ferrer, a brasileira estuprada inconsciente e culpada por ser vítima; o PSD nos Açores a ratificar o horror, inaugurando em Portugal o pior nojo da política actual; e a tortura das eleições norte-americanas, com a performance de um déspota psicopata que instalou uma perigosa palhaçada no cimo de uma das nações mais poderosas do mundo.
Quando o primeiro filósofo de todos, Zaratustra, define há mais de dois mil e quinhentos anos a essencial distinção entre Bem e Mal terá julgado, certamente, que em algumas gerações o elementar da ética estaria apreendido por todos os humanos minimamente sensíveis, minimamente educados. Como se enganou. O que pensaria o brilhante persa se soubesse que a esta eternidade de distância ainda se escolhem governantes cuja promessa é a de perseguir, oprimir, punir, por costumes íntimos, convicções de fé, cultura e ciência?
Admito que estou exausto. Como deixou dito o grande Almada Negreiros, quando nasci todas as frases que salvariam o mundo estavam escritas, faltava apenas salvar o mundo. Não entendo como acumulado tanto pensamento, tanta beleza, tanta memória, estejamos ainda dominados por poderes que não chegaram sequer a Zaratustra. Como se toda a história da civilização não houvesse feito rigorosamente nada por certas almas.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)