As rotinas adaptam-se em função da bicharada. Aspirar a casa, limpar, tratar da alimentação, brincar, passear. Todos os dias. Há custos, mas ninguém faz contas. As alegrias compensam as contrariedades.
Todos os dias, Spike e Cuca, cães de casa, vão várias vezes à rua. Faça chuva, faça sol. Os 11 gatos andam por todo o lado, fora e dentro, à-vontade. Iuka tem 16 anos e é a mais velha, Chita foi amamentada por Iuka, Ice encontrada no pinhal, Gim resgatada perto de um ginásio, Sushi abandonada num saco na rua, Estelinha é amarelada, Mini veio de casa de um familiar, Idris e Nikk são fêmeas, Tico e Blue os únicos machos. Alice Sardo não consegue ver animais abandonados. “A partir do momento que colocamos uma coleira e damos um nome, acabou-se.” A ligação é para a vida.
Alice Sardo, educadora de infância, e Pedro Viçoso, enfermeiro, conduzem as rotinas de casa, em Ílhavo, em função dos animais. “Sem sacrifício, é uma opção de vida”, diz Alice. Doseadores de comida espalhados por várias divisões, cestos de palha transformados em camas, fontes de água em miniatura e sanitas à escala dos gatos, sofás protegidos com cobertas, casa aspirada todos os dias, lista de compras com rações para bichos. Os gatos estão esterilizados, as contas no veterinário nunca assustaram, a bicharada tem sido saudável. O jardim é um paraíso ao ar livre, por onde anda Lira, a cadela que ainda não se habituou aos humanos.
Os dias organizam-se consoante os turnos que Pedro faz no hospital. De manhã, antes do trabalho, Alice trata da alimentação e dá um passeio com os cães. Vai a casa à hora de almoço, pousa a carteira, outra volta com os cães, verifica comidas, come em dez minutos, volta para o trabalho. Com Pedro, tudo depende dos horários. “Uma das coisas boas é que nunca parece que estamos sozinhos, a companhia é tanta. Tratar dos animais é uma coisa natural”, destaca o enfermeiro.
Os animais dão trabalho, o peso das despesas no orçamento familiar nunca foi calculado. “O dia a dia é trabalhoso, mas dá-nos 100% de gratificação”, garante Alice. “Ter animais só faz bem e emocionalmente tem muitas vantagens”, acrescenta. Há dissabores também. Alice e Pedro têm álbuns de fotografias dos cães Speed e Jolt. Quando ficaram doentes, mal conseguiam andar e usavam fraldas, Pedro construiu um andarilho para quatro patas.
Hugo Barbieri, empresário na área da construção civil, e Daniela Clemente, podologista, compraram uma casa na Maia a pensar nos animais e, embora haja espaço lá fora, os cães Messy e Tobias passam muito tempo no sofá. Lá fora, na horta, anda um sapo que só aparece à noite, no aquário mora o peixe Óscar, do tamanho de um isqueiro. Dois passarinhos nas gaiolas que saem e andam atrás dos donos. No andar de cima, está o lagarto varano Topázio com um quarto à disposição. Chegou com pouco mais de um palmo, tem agora 90 centímetros, no início comia baratas vivas e ratos congelados, agora é alimentado com carne sem gordura, bifes de frango, ovos cozidos. Hugo é o único que lhe faz festas e brinca com ele, Daniela dá-lhe comida quando Hugo não está. Há um amigo que trata dessa parte e da restante bicharada quando o casal vai de férias, exceto os cães, que ficam com os pais de Daniela.
“Despendemos muito tempo com os animais. Vivemos a nossa vida à volta da bicharada”, admite Hugo. Ir a casa brincar e dar-lhes comida quando há jantares de amigos, olhar para o relógio para não chegar a casa muito tarde. Dão despesa também. Tobias apanha tudo o que é doença da bicharada. Hugo e Daniela não fazem contas ao que gastam, sabem que é bastante, não somam essas parcelas. “Nunca fizemos essas contas”, revela Hugo. A alimentação de Topázio pode ultrapassar os 20 euros por mês, há ainda as lâmpadas que mantêm uma temperatura a rondar os 27 graus no inverno e simulam a luz solar, no terrário.
“Sempre vivemos à volta dos bichos, é tudo normal”, confessa Hugo. Daniela ainda pensou num terceiro cão, mas desistiu da ideia. “O Messy e o Tobias são os melhores amigos, um terceiro cão poderia estragar a relação dos dois.” Os animais fazem parte da família e Hugo não tem dúvidas. “Quem tem animais é mais feliz.”
12% do orçamento familiar
O número de animais de estimação no nosso país, 6,7 milhões (2,5 milhões de cães e 1,4 milhões de gatos), aproxima-se do número total da população, que ronda os 10 milhões. Segundo a GfK, empresa de estudos de mercado, 58% das famílias portuguesas têm pelo menos um animal de estimação, percentagem superior aos 54% que têm filhos. As prioridades mudam com o tempo.
“Há uma evolução muito positiva e rápida quer no dinheiro que as pessoas estão dispostas a gastar nos cuidados para os seus animais, quer de alimentações e de cuidados de toilette, quer acessórios, quer da parte de saúde”, adianta Jorge Cid, bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários. “Nota-se que as pessoas fazem o que podem pelos seus animais”, sublinha, adicionando que hoje os donos dos animais investem mais em exames médicos e cuidados de oncologia.
Dilen Ratanji, diretor-geral da VetBizz Consulting – Consultoria de Gestão Veterinária, diz que as despesas de saúde e de alimentação com os animais de companhia pesam, em média, 12% no orçamento familiar. É um valor expressivo. No entanto, a noção de que os animais contribuem para o bem-estar físico e psicológico dos donos é uma das razões que explica mais bichos em casa. “A humanização dos animais é muito vincada em Portugal. Somos uma das sociedades com mais idosos, mais divórcios, com menos filhos e com maior número de famílias monoparentais”, lembra Dilen Ratanji.
Desde que acordam até que se deitam Manuel Alves e Sandra Silva vivem para os seus animais. Exóticos, na sua maioria, com as devidas licenças. “É a nossa vida”, sintetiza Sandra. “Um animal não é uma coisa, tem de ser bem tratado, e é uma responsabilidade”, acrescenta Manuel, que, desde pequeno, tem inclinação para a bicharada. Perdia-se num rio atrás da escola na apanha de peixinhos. Usava baralhos de cartas para fazer casas com divisões, que iluminava com as luzes do pisca-pisca de natal, para as sardaniscas que apanhava. Aos 12 anos, pediu uma iguana e o seu desejo foi satisfeito.
Manuel e Sandra têm cinco cães, várias tartarugas, um gato, a arara Pipoca, mais dois papagaios, a porca Piggy, a lama Carlota de pelo branco, cabras anãs, uma kinkajou, a Kika, o lagarto que resgataram sem alguns dedos e queimaduras. Os cães dão-se bem com Kika, Carlota aproveita o terreno ao ar livre para libertar energia antes de pedir mimos.
Mudaram de casa, de uma freguesia para outra em Santa Maria da Feira, plantaram bananeiras e aloé vera para alimentar alguns animais, os bichos são seguidos por um veterinário de animais exóticos, as compras são feitas semanal ou mensalmente – carnes, frutas, rações, congelados. A primeira coisa a fazer de manhã é mudar as águas e tratar da alimentação.
“É impossível algum dia ficarmos ricos”, ironiza Sandra. Não há contas na cabeça e não há cálculo que demova o casal em nome do bem-estar dos animais. Nem na doença da cadela Channel, que esteve 18 dias internada e levou três litros de sangue, nem no problema nos olhos do Golias, tartaruga gigante, que precisou de toda a dedicação de Manuel para lhe tirar a cabeça da carapaça para aplicar soro e pomadas.
Manuel tem gravado no peito os animais que mais o marcaram, Sandra tem os mesmos bichos no braço: a iguana Dina, o lagarto varano Lacoste, o coati West, as doninhas americanas Tomás e Matilde.
Não são brinquedos, sentem como a gente
A lei diz que “os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza”. Há regras estabelecidas. Num apartamento não podem morar mais de três cães ou quatro gatos adultos. E a identificação animal é obrigatória para cães, gatos e furões.
Este é o mundo em expansão. O país tem cerca de 1 400 Centros de Atendimento Médico-Veterinários (CAMV), o dobro de há dez anos. Em 2011, o volume de negócios desses centros era de 89 milhões de euros, em 2019 estava nos 215 milhões, crescimento médio de 12% ao ano. E 6 422 membros ativos, o que traduz uma média de quatro a cinco veterinários por centro. Nem a pandemia conseguirá desacelerar esse crescimento. Para este ano, Dilen Ratanji prevê um crescimento de 8% a 12% no negócio dos centros veterinários, o volume de negócios global poderá ascender aos 240 milhões de euros. “A tendência de crescimento manter-se-á, seja no rácio de animais por lar, na abertura de novos CAMV ou na faturação.”
O setor veterinário tem apresentado, no entender do especialista, uma “dinâmica muito interessante, cada vez mais maduro e profissionalizado”, e no contexto da pandemia foi dos menos afetados. “Não nos podemos esquecer que o animal é um membro da família e se tiver de ir ao médico veterinário por questões de saúde e/ou bem-estar, irá. É apenas uma questão de tempo.” Além disso, o conceito “animal wellness” continua a crescer, serviços como estética animal, banhos, tosquias, fisioterapia, creche canina e hotel animal têm conquistado importância no setor.
Bárbara Nabo tem a situação controlada, alimentação orientada e ração comprada a peso para os dois pássaros e a gata, antes de sair para o trabalho. Liebe, a cadela pastora-alemã, sai habitualmente consigo para a escola de Cascais ou para a Associação São Francisco de Assis, que atua na proteção de animais de companhia, abandonados ou perdidos do concelho. Tem o corpo magrinho, uma descompressão na anca, adora andar na rua, não gosta de chuva, sente as mudanças de temperatura, é a mascote do abrigo. “É simpática, dá muitos beijinhos, muito sociável.” É o centro das atenções logo que entra numa escola quando Bárbara, que trabalha no centro de proteção de animais de Cascais, no programa de formação e sensibilização em educação para a saúde e bem-estar animal do Município, vai falar da vida diária do abrigo, da linguagem corporal dos animais, da responsabilidade de ter e cuidar de um bicho. “Os animais não são brinquedos, sentem como nós.”
O Paco é um papagaio inteligente, canta ópera, fala inglês, um pouco de espanhol e de alemão, é capaz de manter uma conversa, voa quando sai da gaiola, está com Bárbara Nabo há sete anos, depois da morte dos donos. Zuca, a gata, foi encontrada abandonada com 48 horas, biberão de duas em duas horas, muita vontade de viver. Quando são muito pequenos, Bárbara leva os animais consigo para todo o lado, seja para um workshop de cozinha, seja para jantares ou encontros de amigos. Pipo, uma caturra, chegou há dois meses, também foi encontrado, no início só comia e dormia e não piava.
Há três anos, numa paragem de autocarro, Bárbara resgatou uma cadela, pegou nela, levou-a ao veterinário, batizou-a de Gi. Vive com a sua mãe. “São as melhores amigas, um amor incondicional.”
Há pouco tempo, teve em casa um coelho que amamentou à colher. Não faz contas ao que gasta com os animais, a logística está entranhada, quem já esteve em piquetes e resgates de animais vivos e mortos não faz cálculos destes. “É uma missão, os animais não escolhem dia nem hora para serem abandonados.” É um trabalho feito de alegrias e tristezas. “É um trabalho que nos põe à prova.” A Zuca já anda por toda a casa, o Paco gosta de meter conversa, o Pipo começa a ambientar-se ao espaço, continua a comer imenso e a sujar a gaiola. Nada que não se resolva. Porque é tudo natural.