Ofícios modernos em vias de extinção

Há profissões que morrem e outras que nascem. É o percurso normal da História. Sempre assim foi, sempre assim será. O presente constrói-se de novas tecnologias que mexem no trabalho e o futuro está ao virar da esquina. Há quem sucumba, há quem resista. Será que as máquinas darão conta do recado?

Muita coisa mudou desde 1997. Mais carros nas autoestradas, menos funcionários nas portagens, mais máquinas de pagamento automático, a comodidade da Via Verde. Uma profissão que deixou de existir, outra que está em vias de extinção. Não há ilusões, vive-se um dia de cada vez. Marco Barrancos, 45 anos, é portageiro em Pinhal Novo, Setúbal, no acesso à ponte Vasco da Gama. Entrou na Brisa nesse ano de 1997, com o 12.º ano, para operador de laboratório no estaleiro da empreitada de construção precisamente do acesso à ponte Vasco da Gama. Foi fiel de armazém durante cinco anos, tratava da reposição de stocks, do material de segurança, apoio ao escritório e refeitório. Entretanto, essa função foi descontinuada, há 16 anos que está na cobrança de portagens. “Antigamente, privilegiava-se a qualidade do serviço, em todas as barreiras havia portageiros, qualquer necessidade do cliente tinha uma resposta imediata”, recorda. As máquinas, dizem-lhe, dão conta do recado. Marco Barrancos tem dúvidas. “Os clientes gostam de ver ali alguém, o atendimento humano é sempre diferente de uma máquina.”

A empresa tem sofrido vários processos de reestruturação nos últimos anos, há quilómetros e quilómetros de estrada sem ninguém nas cabines, os portageiros concentram-se nas zonas de elevado tráfego, junto aos aglomerados urbanos. É o seu caso. Não está sozinho na portagem, tem mais colegas, é sítio de movimento. Há momentos para sair da cabine e esticar as pernas, beber um café, para almoçar e lanchar. Tem turno fixo das 11 às 19 horas, não trabalha aos fins de semana, está a pouco mais de dez minutos de casa. Nem sempre foi assim, já teve de fazer 100 e 200 quilómetros para chegar ao trabalho.

Marco Barrancos, 45 anos, é portageiro em Pinhal Novo, Setúbal, no acesso à ponte Vasco da Gama
(Foto: Carlos Pimentel/Global Imagens)

Já pensou mais no dia de amanhã, agora olha para a realidade de frente e sem floreados. Portageiro é uma profissão em desuso. “Percebe-se que as pessoas são cada vez menos, quem vai ficando adquire funções mais polivalentes, não há reconversão dos postos de trabalho. Aceita-se que é inevitável, que é um processo gradual ao longo dos anos. E não temos ilusões, é uma coisa que vai acontecer, mais cinco ou dez anos, não sabemos.” O que importa é o presente. “Enquanto aqui estivermos, sejam muitos ou poucos anos, é importante que as nossas condições de trabalho continuem a ser asseguradas.”

Íris Lourenço e Pedro Alexandre são irmãos, ela tem 35 anos, ele 37, e são a terceira geração da Tipografia Gráfica Sintrense, em Sintra, fundada pelo avô Arlindo Simões em 1955 e que, à sua morte, passou para o pai António Simões. Pedro sabe fazer tudo ali dentro, tanto manuseia máquinas de impressão offset como a guilhotina, o que for preciso fazer, faz. “Sempre me interessei por todas as áreas”, confessa. Em pequeno, saía da escola e ia diretamente para a oficina tipográfica, sempre à volta das máquinas mais velhotas e dos carateres de chumbo.

Íris, técnica de massagens de reabilitação, estudava e trabalhava a meio tempo na gráfica, entrou para dar apoio quando o sistema de faturação foi informatizado. “Comecei a ganhar o gosto, a sentir que era útil, que precisavam da minha ajuda.” Está a tempo inteiro desde 2006 no negócio familiar que se ajusta à medida do tempo.

O papel tem perdido terreno, a tipografia já não faz, nem de perto nem de longe, a quantidade de livros de faturas e de recibos verdes, guias de remessa, inventários, papelada de contabilidade, envelopes timbrados de outros tempos. “Já não se gasta tanto papel, é certo”, comenta Pedro. O negócio vira-se para outros lados, atualiza-se e adapta-se aos pedidos mais coloridos, mais miudinhos, mais exigentes. Convites e envelopes personalizados, cartões de visita, sacos e pastas para exames de clínicas médicas, cadernetas e cadernos com os logos de colégios, serviço de design do início ao produto final, composição gráfica, paginação, encadernação de livros, criação de conteúdos. A montagem tradicional adaptou-se às tecnologias modernas, investiram na impressão offset. “A tecnologia é a nossa aliada”, garante Íris. Sempre uma amiga, nunca uma inimiga a abater.

Íris Lourenço e Pedro Alexandre, irmãos, são a terceira geração da Tipografia Gráfica Sintrense
(Foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

Em fevereiro, pouco antes da pandemia, compraram mais uma máquina para produzir embalagens de alimentos, caixas para bolos e garrafas. As caixas das queijadas e dos travesseiros de Sintra saem dali. A readaptação é constante, satisfazem-se desejos de clientes e leem-se necessidades do mercado. Íris e Pedro não sentem que os seus ofícios têm os dias contados, apesar de tudo. “Queremos manter esta linha de qualidade, receber as pessoas, dar resposta aos clientes. Crescer, se calhar, não será possível, manter é possível”, adianta Pedro. “Queremos dar o que os clientes precisam e não o que queremos vender. É um bocadinho como o serviço do alfaiate, vestimos o produto à medida e temos algo único”, diz Íris. Pedro atira uma comparação: “Há quem continue a gostar de ir à mercearia e não ao supermercado”.

São cinco funcionários num espaço em que as velhas máquinas convivem com aparelhos tecnológicos com os olhos postos no futuro. O negócio está estável, há clientes fiéis. Íris não tem medo do futuro. “Há qualidade, há confiança. Trabalhamos com várias profissões, não estamos na nossa bolha. Estamos bem e confiantes.”

Repensar negócios, investir nas redes sociais

Os momentos de mudanças tecnológicas sempre existiram e continuarão a existir ao longo da História. Não é nada de novo. “A economia é, no seu todo, um sistema vivo. Há profissões que morrem e que emergem e outras que se tornam mais fortes”, afirma Hugo Pinto, economista, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, mestre em Economia Regional e Desenvolvimento Local, professor na Universidade do Algarve. A introdução de artefactos, de tecnologia e de inovação explicam que assim seja. Os lampiões que acendiam as luzes nas ruas, os relógios de alarme humanos que de manhã davam sinal para acordar, os operadores de telefone passaram à história. É o que os economistas chamam de destruição criadora que, por um lado, gera novidades e, por outro, destrói o passado. Profissões deixam de existir, outras aparecem no mercado. É um processo relativamente pacífico, o problema está na estrutura da própria economia e nas mudanças que isso representa.

Pedro Alexandre sabe fazer tudo na Gráfica Sintrense, tanto manuseia máquinas de impressão offset como a guilhotina
(Foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

Miguel Pina e Cunha, professor catedrático na Nova School of Business & Economics, um dos mais conceituados especialistas na área de liderança e comportamento organizacional, autor de mais de 30 livros, refere que essa destruição criativa não pode parar, seria mau sinal, sintoma de se estar a perder inovação e do regime económico ser pouco dinâmico. “Há sempre aquela visão distópica do fim do trabalho, o que não tem acontecido. A destruição de algum trabalho começa com a criação de novos trabalhos.” O que inevitavelmente tem custos, nem todos conseguem apanhar o comboio. “Entre o passado e os avanços tecnológicos, há pessoas que ficam algures no meio e não conseguem fazer essa transição”, reconhece. “O problema destas transições é que há pessoas que não conseguem reconverter as suas qualificações e ficam de fora do mercado de trabalho.”

Essa transição é fundamental. José Coelho, 41 anos, agente de viagens há 16 anos, com agência aberta em Santa Maria da Feira, sempre soube que parar no tempo não era opção. Poucos minutos antes de falar com a NM, enviou uma mensagem por WhatsApp com sugestões de locais para visitar a um casal que está em lua de mel nos Açores.

Estudou Inglês/Português durante dois anos, mudou para Guia e Intérprete, ficou com o bacharelato, licenciou-se em Técnico Superior de Turismo. Em 2003, na tese de final de curso, decidiu analisar se as novas tecnologias seriam uma ameaça ou uma oportunidade para as agências de viagens tradicionais. Foi há 17 anos, não havia redes sociais e havia ainda agências a trabalhar sem computador, só com fax. Concluiu que a ameaça seria grande e teria impacto se as agências não alterassem o modus operandi. A realidade de hoje mostra-lhe que estava certo.

Não vê nuvens cinzentas no céu, nem um ofício que desaparecerá no horizonte, apesar da reação imediata à pandemia ter sido semelhante a um comboio a passar-lhe por cima. Respirou, manteve a calma, tentou tranquilizar os viajantes, tratou de repatriamentos, reembolsos, cancelamentos. De um ano de 2019 com a melhor faturação de sempre passou para um ano com quebras superiores a 80%. O último verão adivinhava-se negro. “Não foi tão mau, não foi um verão completamente perdido”, minimiza. Pragmatismo e otimismo, acima de tudo.

Mais marcações online, tudo tratado via digital, menos procura das agências de viagens? O futuro até poderá caminhar por aí, mas José Coelho vê-o noutra perspetiva. Há pormenores que fazem com que não perca quota de mercado, a criação de valor das próprias viagens, ou seja, surpresas em dias e ocasiões especiais, packs feitos à medida, dicas, conselhos, consultadoria. “Não é só vender as viagens, é tudo o que está à volta.”

“Esta paragem forçada pela pandemia fez-nos pensar no negócio”, admite. Mantém a calma e o otimismo, tem mais de uma dezena de clientes há 16 anos. O turismo abrandou, é certo, a retoma será lenta, espera-se que o setor volte a entrar nos eixos. Seja como for, um vírus obrigou a travar a fundo, mas também mostrou, na sua perspetiva, a importância de um agente de viagens na resolução de problemas que se verificaram nos últimos meses, de voos cancelados a hotéis fechados, de regressos suspensos a viagens desmarcadas. E a reserva de voos em motores de busca retraiu-se.

Os agentes de viagens ainda têm muita estrada para andar? “Alguma estrada para andar, mas depende de como nos adaptamos aos novos tempos, precisamos de nos tornar mais visíveis em termos de redes sociais”, responde. “O mercado de viagens é muito dinâmico.” E o gosto por viajar, acrescenta, “é unânime e tornou-se democrático.”

As crises transformam e também destroem

Luís Graça tem 49 anos, é bancário, são 31 anos de banca, costuma dizer que é casado com o BPI, passou por várias funções, hoje está no trade finance, área mais ligada às empresas. Os bancos informatizaram muitos serviços, os clientes já podem tratar de várias transações a partir de casa, há cada vez mais ferramentas eletrónicas ao serviço do sistema bancário para facilitar a vida. Várias reestruturações nos últimos anos e mais mudanças à vista. “Estamos a adaptar procedimentos de utilização de mais ferramentas tecnológicas, há muita coisa que está a ser alterada”, revela. Os telemóveis, por exemplo, são cada vez mais um aliado dos serviços e produtos da banca.

O bancário está em vias de extinção? Luís Graça não concorda e faz questão de esclarecer que um bancário não se resume a um homem ou a uma mulher ao balcão, há muitos outros setores por onde os funcionários se dividem. “Há mais serviços eletrónicos e menos pessoas na rede comercial que derivam para outras funções. Não se pode perder a personalização, mesmo os atendimentos à distância não deixam de ser personalizados”, assegura. “Há muitos serviços para além do que as pessoas imaginam, há sempre coisas para fazer, não é uma profissão em desuso”, ressalva.

Luís Graça, 49 anos, está há mais de três décadas ligado à banca. Até costuma dizer que é casado com o BPI
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

A banca não é um sistema estático. Assistiram-se a fusões de bancos, fechos de balcões, reestruturações de recursos humanos, readaptações constantes. Luís Graça sabe que uma nova vaga de mudanças pode acontecer a qualquer momento. Sente-se um homem da casa, vive um dia de cada vez na dependência do BPI na Avenida da Boavista, no Porto, com os pés assentes no chão, e sente-se motivado. “Estamos sempre a aprender, há muito serviço para fazer, o know-how cresce, fazem-se reajustamento em vários setores. Não é uma profissão em risco, é uma profissão que está a readaptar-se, como todas as outras.”

As crises, que se sucedem a um ritmo cada vez mais acelerado, forçam a reconversão da força de trabalho, da economia. A pandemia, por exemplo, veio mudar perceções na própria hierarquia laboral. Os profissionais de saúde, dos serviços de entregas e do apoio social, por exemplo, passaram para o topo da lista das profissões mais bem vistas.

Há, no entanto, o lado mais sombrio. O discurso e a lógica da inovação e da introdução de novas tecnologias são, regra geral, assimilados de uma perspetiva acrítica, isto é, que tudo será bom e benéfico e não se olha para o outro lado da moeda. “Um país e uma região têm características específicas. A automatização de um setor pode ser nefasta para uma região muito intensiva nessa área”, salienta o economista Hugo Pinto, que analisou a resiliência dos sistemas de inovação face à turbulência económica no seu pós-doutoramento.

“Trocam-se recursos humanos por tecnologia. O que acontece a essas pessoas? Estas trocas são difíceis de gerir.” Há a questão das competências, de uma sociedade qualificada, e de um mercado de trabalho que também precisa ser alterado. “Os trabalhos do futuro são baseados em competências, se temos só trabalhadores precários, não vamos conseguir reter talento”, sustenta.

Ora as situações laborais são muito rígidas, ora os regimes são demasiado flexíveis. Na opinião do especialista, é necessário renovar a economia com setores que comuniquem uns com os outros, não esquecer competências e capacidades endógenas, saber onde o país e a sua massa produtiva estão no Mundo, não perder saberes que fazem parte da memória coletiva. “As crises têm essa potencialidade de transformar, mas ao transformar, também destroem”, sublinha.

As tecnologias abrem portas a novas profissões, as máquinas fazem algum trabalho e as pessoas dedicam-se a outras funções, mais criativas, de resolução de problemas. “Com toda a sofisticação tecnológica, há coisas que as pessoas fazem melhor”, refere Miguel Pina e Cunha, licenciado em Psicologia Social e das Organizações, mestre em Comportamento Organizacional, doutor em Marketing. A questão é requalificar e preparar para o futuro. “É proteger as pessoas, não é proteger o posto de trabalho.” Ou seja, preservar o que já não é viável, como empresas que deixaram de ser sustentáveis, deixou de fazer sentido e não contribui para uma economia saudável. Tudo mudou e hoje os empregos não são para a vida. O problema já não é perder o emprego, mas sim arranjar outro. Uns desistem, outros resistem.

Profissões do futuro, profissões do passado

A economia pula e avança e o mercado de trabalho readapta-se a um ritmo acelerado. Os analistas vão apalpando o pulso à realidade e há profissões relativamente recentes que podem estar em perigo por vários fatores, desenvolvimentos tecnológicos, sistemas de inteligência artificial, automatização. Ofícios do futuro podem, de repente, tornar-se ofícios do passado. Há algumas atividades a pisar a linha vermelha.

Os economistas têm apontado vários exemplos. Operadores de telemarketing que não conseguem fazer face à concorrência das redes sociais. Vendedores do retalho, caixas de supermercado, que têm sido substituídos por máquinas e mecanismos que leem códigos de barras sem ser preciso mãos de carne e osso. Agentes imobiliários que podem perder fôlego perante as perspicazes capacidades tecnológicas de mostrar uma casa por dentro, a 3D, a qualquer hora, em qualquer lugar, sem sair de casa. Pilotos de avião de rotas traçadas que podem ser feitas por pilotos automáticos. Condutores de autocarros ou de minibus citadinos que, com os avanços na indústria automóvel, cada vez mais informatizada e manobrável pela tecnologia e sem intervenção humana, podem ser substituídos por um painel de controlo completamente informatizado.