Jorge Manuel Lopes

O velho Portugal está a morrer

Escolha de um filme, por Jorge Manuel Lopes.

Na abertura, “O mal amado” explica-se de forma singela. É uma “história portuguesa vista de Campo d’Ourique”. Depois, passa noventa e tal minutos a provar como uma narrativa que não transborda fisicamente de um pedaço da geografia lisboeta pode ter uma ressonância sem fronteiras.

E há a História dentro da história. O filme de Fernando Matos Silva, agora lançado em DVD pela Academia Portuguesa de Cinema, calhou de ser a última fita nacional proibida pela censura do regime velho e a primeira a chegar ao grande ecrã após o 25 de Abril, logo a 3 de maio de 74. E não há como ignorar esse contexto, que em “O mal amado” se pressente amiúde: entre outras coisas, é uma obra de fim de linha, a esperança de um mundo exterior à ditadura e à rotina da vida adulta empurrada para um beco. As personagens não sabem, mas algo estava prestes a rebentar.

Não passam muitos minutos até ficar claro porque é que “O mal amado” jamais conheceria público durante o Estado Novo. Veem-se cartazes de Che Guevara e Angela Davis, discute-se estruturalismo, lê-se em voz alta sobre a história dos movimentos sindicais. No epicentro João (João Mota), 25 anos, de classe média, para trás um curso de Económicas, no horizonte a guerra colonial. No entretanto, vai trabalhar para uma empresa de estudos de mercado, tem um caso com a chefe, Inês (Maria do Céu Guerra), ao mesmo tempo que engraça com uma colega de escritório, Leonor (Zita Duarte). Inês projeta em João a fixação incestuosa pelo irmão morto em combate no ultramar; o erotismo dos seus encontros teria chegado para provocar o chilique da censura.

Há abismos geracionais, políticos e filosóficos, em “O mal amado”. Há vapores de humor nonsense. Há um filme inconformado e que pensa como João, receoso da aproximação da “normalidade das coisas repetidas”.