O valor de “merdas”
Há muitos anos – lembro-me disto com arrepio temporal, foi antes da mudança da moeda e do milénio e de tudo o que nos caiu em cima – escrevi uma crónica de tribunal com o título: “O valor de ‘cabrão'”. Um texto com uma moral prática e simples: quanto custava a um português adulto, ao homem médio tal como previsto na ordem jurídica da altura, chamar cabrão a um polícia na rua?
Depois, cada um podia fazer os seus cálculos, ponderar vantagens e inconvenientes, psicologias libertadoras e a noite passada numa enxerga de esquadra (com mais duas lambadas escorregadas do braço do agente da PSP), mas chamar cabrão a um polícia na rua custava 400$00, foi o que o meu arguido pagou na altura. Em câmbio directo, daria hoje dois euros (2€), nalguns sítios da Baixa de Lisboa ou da Baixa do Porto quase não daria para um café.
Foi no que pensei quando ouvi a sentença de João. Mas com as devidas distâncias: desde os ofendidos (não eram polícias) ao meio de injúria (não presencial, mas em rede social) e no preço (barato é que não foi, como verão). João, o consultor que resolveu dizer sobre dois colegas de trabalho, no WhatsApp: são “uns merdas”.
É mais um dos efeitos da conspiração da época digital, das grandes companhias de “partilha de redes” pelo controlo dos nossos gostos, consumos, amores, viagens, desejos, eleições e, finalmente, a nossa cabeça e as nossas vidas. É já grande a fatia reservada nos tribunais criminais aos litígios com ameaças feitas no Facebook, às difamações pelos caminhos irreparáveis (dificílimos de apagar, mesmo quando falsos) do Google, chantagens sexuais e outras no Instagram. Alguns casos já os contei aqui, dando parcial razão a um amigo, Alexandre Melo, que resolve este miserável problema, sempre que fala ou escreve, substituindo os termos normais da nossa era por “redes anti-sociais” e “pocilga digital”.
Vai também longe, foi na pré-história do correio na Internet, o caso de um Carlos que sempre achei desonesto, até porque apregoava a sua honestidade a despropósito, que é o que fazem os aldrabões, e um dia este Carlos mandou ao sócio principal um mail com queixinhas a dizer o pior possível dos outros. Mas enganou-se no botão, ou na setinha, e enviou para todos os envolvidos, percebendo o grupo em simultâneo que ele andava há semanas a rodar insultos nas costas de cada um. Ainda não havia aquele comando que dá dois ou três segundos para desfazer o mal feito, a última hipótese de repensar. Ele é que foi posto na rua.
João tropeçou na versão mais actual do drama: o grupo de WhatsApp, a rede encriptada que tem sido usada por políticos desonestos e redes de desinformação… e também por mim e pela minha família e pelos meus amigos e se calhar por si, caro leitor… Era um grupo da empresa que estava a montar um negócio na Colômbia. O tribunal não apurou se eram 12, se 18, mas era coisa importante até ao dia em que João resolveu escrever a outro sobre dois colegas: são “uns merdas”. Julgou ser privado entre os dois.
“Não se provou que o arguido e J. R. iniciaram a conversa no grupo WhatsApp sabendo que a conversa estava disponível para todos os participantes do grupo pequeno, não se provou que ao enviar as mensagens elencadas, as colocava disponíveis neste mesmo grupo”, disse a juíza ao ler a sentença. João, consultor que trabalha por conta de outrem, divorciado, dois filhos, um já autónomo, outro estudante no Técnico. Mas provou-se que “os demandantes se sentiram envergonhados, humilhados e ofendidos, que as conversas deram origem a conversas e boatos entre funcionários e colaboradores do demandante”, além de interpelações e conversas directas.
Um ofendido era mecânico, o outro, director financeiro. Dizia a juíza: “declarações do arguido concertadas com um juízo de exigência comum tendo como referência o homem médio tal como visto pela ordem jurídica na sua globalidade”, coisas assim. Resumindo, João tentou convencer o tribunal de que a expressão “uns merdas” era utilizada por si de uma forma corriqueira, sem qualquer ofensa.
“Não só é ofensivo como absolutamente gratuito e desnecessário, ainda que o arguido quisesse expressar o seu desagrado quanto ao desempenho profissional dos assistentes.” Bom, a multa da parte penal chegou aos 130 dias a 10 euros por dia (1 300 euros), mais a indemnização também de 1 300 euros (a cada um!), de maneira que João vai pagar – fora juros e custas – 3 900 euros. Em escudos, 780 000$00 isto é, 780 contos no milénio passado.
Merdas caras.