O silêncio ensurdecedor das discotecas

Do Minho à costa algarvia, centenas de empresários do setor da diversão noturna vivem no limbo à espera de respostas (Foto: Igor Martins/Global Imagens)

O som das colunas foi o primeiro a desligar-se. Está escuro e a pista está vazia. Agora, a dança é outra. Fintar o vírus para reabrir não é tarefa fácil, mas os empresários estão dispostos a fazer o esforço. Com esperança de que em breve a bola de espelhos possa voltar a girar.

A programação do mês de março permanece intacta na montra de vidro. Quatro semanas, três dias de festa, interrompidas por um vírus que chegou sem avisar e obrigou a anular a agenda. Parou no dia 7. Desde então, o letreiro na porta do número 18 da Rua de Cândido dos Reis, no Porto, dita a longa sentença. “Fechado.” Uma artéria abaixo da famosa Rua das Galerias de Paris, que dá nome a uma das zonas mais concorridas da animação noturna portuense, o Plano B é uma das discotecas mais emblemáticas da cidade e está encerrada há cinco meses por causa da covid-19. A decisão de fechar portas foi tomada antes de ter sido decretado o encerramento pelo Governo. “Se o espaço fosse um ponto de contágio iríamos sentir-nos mal. Claro que foi um tiro no escuro porque pensámos que fosse coisa para durar um mês ou dois e que talvez conseguíssemos abrir em junho. Com os casos a crescer exponencialmente, também em Itália e Espanha, começámos a perceber que iria ser mais demorado”, relata à NM Filipe Teixeira, um dos proprietários do Plano B, no interior do edifício centenário talhado de história.

Durante a manhã, o sol que irrompe pelas janelas altas revela pormenores impercetíveis durante a noite. Uma clareza que não existiu nas reuniões semanais dos quatro sócios para tentar traçar o ponto da situação. “Chegámos a pensar em setembro, mas achamos que é impossível. Neste momento, pensamos em reabrir no final do ano ou no início do próximo. Este ano já contamos como perdido.”

Filipe Teixeira projetou o Plano B há 14 anos para festas com amigos, mas o espaço cresceu e ganhou vida própria
(Foto: Rui Oliveira/global Imagens)

O encerramento forçado pela pandemia não fez dissipar as contas-correntes. Não despediram ninguém. A equipa de 25 funcionários está em lay-off e é o fundo de reserva construído para obras e melhorias que ajuda a suportar as despesas. “Claro que nos custa ver desaparecer o dinheiro que juntámos”, confessa Filipe.

Sem a habitual azáfama de uma noite no Plano B, descer as míticas escadas para o piso inferior, onde se localiza a área de dança, é uma tarefa concluída em segundos. Despida de gente, a sala principal parece mais pequena. Avaliar a dimensão do impacto do fecho das discotecas também não é fácil. “Há um ecossistema que vai muito além do que é o nosso staff fixo. Os DJ e as bandas estão numa situação muito complicada, por exemplo. Estarmos fechados não nos prejudica só a nós, há toda uma série de layers que estão interligadas”.

Plano B, no Porto
(Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

O anúncio do Conselho de Ministros de que bares e discotecas poderiam abrir a partir do início de agosto com regras idênticas às estabelecidas para os cafés e pastelarias, sem pista de dança e com horário de funcionamento até à uma da manhã, não animou o empresário. A hipótese foi automaticamente descartada. “Nós vivemos de música e para a música, não queremos estar a perder a nossa identidade. Os estabelecimentos já estão com uma taxa de ocupação bastante inferior e vamos nós fazer mais concorrência? Não me parece uma solução muito agradável”, justifica Filipe Teixeira.

Um ano de sucesso abalado pelo vírus

Apesar da indefinição quanto ao futuro, Hélder Leite tem a mesma certeza: abrir a Boîte como café ou pastelaria não faz sentido. “É atirar areia aos olhos. Eu quero abrir no meu horário normal, até às seis da manhã, que trabalhei e investi muito para o ter. É esse o core do meu espaço, não vale a pena inventar ou tentar disfarçar”, atira o proprietário da discoteca localizada na Rua de Passos Manuel, junto ao Coliseu do Porto.

Entrar na Boîte durante o dia não anula o cenário noturno da discoteca urbana nascida em fevereiro de 2016. O preto da sala principal é pincelado pelo colorido do mobiliário e os espelhos criam um jogo com as luzes de tons diferentes. Apesar da limpeza continuar a ser feita uma vez por mês, uma fina camada de pó cobre as mesas altas junto à pista de dança. Sinais do tempo longo sem público. “Venho cá com frequência ver o correio. Ainda no outro dia estive a ver as bebidas e temos algumas a ficar fora do prazo”, conta Hélder.

A Boîte, de Hélder Leite, recebe mais público entre outubro e maio, muitos turistas e amantes de hip-hop, funk e r&b
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)

A ideia de que 2020 seria um excelente ano para a Boîte desvaneceu e perspetivar o futuro é, para já, uma incógnita. Sem orientações por parte da Direção-Geral da Saúde (DGS) é difícil equilibrar a balança de pensamentos. “O meu maior interesse é a saúde pública, não quero de forma alguma sentir que ao abrirmos vamos prejudicar seja quem for. Vou estar fechado até abrir com segurança”, explica Hélder, proprietário ainda de outros estabelecimentos na cidade.

Se há cinco meses o aparecimento de um vírus desconhecido justificou a prevenção, o mentor da Boîte considera que já deveriam estar definidas linhas de ação para a reabertura das discotecas no horário noturno, tal como foram criadas para outras áreas de atividade. O empresário lamenta que o setor seja visto como o “patinho feito” e lembra que o investimento dos bares e discotecas no Porto ajudou ao crescimento da movida. “A noite não é uma brincadeira. Não se traduz só em divertimento, há uma equipa a trabalhar para as coisas acontecerem.”

Boîte, espaço portuense
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)

No piso superior do espaço que já funcionou como bingo, os cadeirões e os sofás de veludo fazem lembrar o convívio. Hélder Leite quer acreditar que poderá receber clientes na Boîte em outubro, mês em que normalmente arranca a época forte da discoteca, mas as hipóteses vão esmorecendo. Desde a reação das pessoas à forma como se podem controlar as pistas de dança, há muitas dúvidas e poucas certezas. Uma das únicas convicções é mesmo a necessidade da ajuda do Estado para suportar um período tão turvo. “A certa altura teremos de ter um apoio para conseguirmos dar resposta e termos uma previsão de retoma consciente. Quando chegar o fim das moratórias vai haver o tempo todo que estivemos fechados e não faturámos, mas acumulámos dívidas.” À semelhança do Plano B, a Boîte abriu portas pela última vez no primeiro sábado de março. Na pista de dança ainda há vestígios das festas que só eram possíveis antes da pandemia. Um balão vermelho do Dia dos Namorados reside no chão da pista, presságio do que poderá acontecer no futuro. “O balão acabou por cair depois de tanto tempo no teto. Vai ser como a maioria dos negócios.”

Ação e apoio para evitar a rutura

“Ao manter este ritmo podemos estar a falar de 80 a 90% da animação noturna a fechar. Os espaços que trabalham no verão para sobreviver no inverno já vão ter grandes dificuldades mesmo que consigam reabrir em setembro. Os restantes, que trabalham o lado académico, se não lhes for permitida a abertura no inverno, farão com que tenhamos quase uma aniquilação total da noite”, alerta José Gouveia.

O presidente da reativada Associação de Discotecas Nacional (ADN) acredita que “não há razão para que as discotecas não abram” com regras estruturadas, nas quais poderão assentar o desaparecimento temporário da pista de dança, o uso permanente de máscara, a lotação reduzida, o controlo de temperatura à entrada, a anulação do bengaleiro e o encerramento da discoteca mais cedo. “É só questão de dar oportunidade às pessoas para mudar os hábitos”, defende o representante.

A falta de definição para retomar a atividade tem provocado, de acordo com José Gouveia, uma forte ansiedade nos trabalhadores do setor, que exigem ainda saber se e que linhas de apoio serão abertas para fazer frente às perdas. “O Estado tem que apoiar a fundo perdido, já não conseguimos ir lá com moratórias ou créditos com taxas de juro baixas.”

“É um caso único e é a primeira vez que acontece. Tem que estar enquadrada nas diretivas da União Europeia, não podem ser medidas avulsas muito simples”, realça António Fonseca, presidente da Associação de Bares da Zona Histórica do Porto (ABZHP).

De norte a sul do país chovem pedidos de ajuda na caixa de correio da organização com duas décadas de existência. Fonseca frisa ser urgente aliviar a angústia dos empresários, mas lamenta a falta de comunicação por parte da DGS. “Temos seis pedidos e não conseguimos nenhuma reunião.” A DGS confirma o contacto, diz que está “para apreciação” e promete dar resposta “brevemente”.

A associação propõe a abertura dos bares e discotecas de forma faseada e já entregou a proposta ao Governo. “Se o estabelecimento X acha que tem condições para abrir pede um parecer à DGS, que fará uma visita ao estabelecimento e verificará in loco se tem condições. A partir do momento em que esse parecer for favorável, o Governo, que por norma usa as recomendações da DGS, autoriza que aquele estabelecimento abra. Após a abertura seria feita uma vistoria à discoteca através dos chamados clientes-mistério para verificar se está a agir em conformidade”, resume à NM António Fonseca. O presidente da ABZHP alega ainda que o encerramento dos bares e das discotecas fez disparar o fenómeno do botelhão, que, apesar de proibido, continua a acontecer, e das festas privadas, onde “há risco de surto, mas depois vai dizer-se que a culpa é da noite”.

Confiar nos empresários

Há semanas que não sobe nenhum DJ à cabine do Europa. O clube noturno mais antigo da popular rua cor-de-rosa, no Cais do Sodré, em Lisboa, está habituado a acompanhar os tempos. Em 1947 abriu como danceteria e já foi morada de marinheiros, nos anos em que a artéria à beira-rio estava degradada e com fama de receber criminosos e prostitutas. “Nós chegámos em 2005 ao Europa para relançar a zona”, avança Pedro Vieira.

Pedro Vieira levou mais de 700 DJ à cabine do Europa, um clube lisboeta que relançou a zona do Cais do Sodré
(Foto: Ricardo Ramos/Global Imagens)

No espaço de 100 metros quadrados aberto sete dias por semana é a música eletrónica que marca o ritmo. Além da diversão, o Europa é uma casa que dá voz a novos talentos e faz-se ouvir além-fronteiras. “Só nesta semana recebi mais de dez telefonemas de estrangeiros a perguntar se estávamos abertos.”

Para o coproprietário do Europa, as interrogações dos últimos meses só podem ser respondidas com ações. Não há uma fórmula fechada. É necessário preparar, analisar e reagir para alcançar a luz no fundo do túnel. “Se não pusermos a bola a rolar, nunca vamos perceber se estamos a fazer bem ou mal”, assinala.

Europa, no Cais do Sodré
(Foto: Ricardo Ramos/Global Imagens)

Avaliar a reabertura das discotecas tem de ser feito, de acordo com o empresário, ouvindo os profissionais que estão no terreno habituados a lidar com “a noite”, com os excessos e os aglomerados. Desde as regras à sensibilização, o que é mesmo preciso é agir porque gerir “um negócio sem datas está a tornar-se insustentável”.

“Em vez de termos uma indústria a contribuir para a solução, temos uma indústria parada a ser destruída de dia para dia”, constata Pedro Vieira. Há 73 anos que o Europa vive de ciclos. Transforma-se com o tempo, adapta-se ao público e molda-se às circunstâncias. Desta vez não será diferente.

Tecnologia pode ser a chave

Abrir uma discoteca durante uma pandemia é difícil de perspetivar, mas o maior desafio de todos será reconquistar os clientes. “A questão da confiança é muito importante, há que transmitir credibilidade ao público para que possa voltar num futuro próximo”, vinca à NM Marco António, concessionário do Pacha Ofir. O conceito viajou de Ibiza nos anos 1990 e instalou-se no meio do extenso pinhal junto à praia minhota. A discoteca, conhecida por ter um par de cerejas como imagem de marca, tornou-se uma das mais badaladas do país, e até da Galiza chegam visitantes para dançar ao som de artistas de topo mundial.

Marco António tinha a agenda fechada com Giulia Be, Black Coffee ou Melim para o verão no Pacha Ofir
(Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

A última noite com casa cheia foi há precisamente 174 dias. Agora, o silêncio toma conta das seis áreas de animação. O vazio é arrepiante. Consciente do obstáculo criado pelo vírus, mas sem prever uma pausa tão prolongada, a discoteca “pôs” logo mãos à obra para voltar a brilhar mesmo em contexto de pandemia. “Como temos muito espaço exterior, pensámos em conceitos como cinema e concertos ao ar livre. Estudámos vários cenários, mas falhou o suporte das entidades para que tal se tornasse possível”, elucida Marco António.

O empresário guia-nos pelo labiríntico recinto recheado de texturas e ambientes. O pesado portão vermelho da entrada está fechado, mas isso não impede que internamente se estudem mudanças e estratégias. O Pacha não entrou em quarentena e até já pensou numa solução para as discotecas do futuro.

Pacha Ofir, em Esposende
(Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

A ideia não é nova e há mais de um ano que Marco ouve falar na ferramenta. Uma aplicação tecnológica, descarregada para os telemóveis, poderia ajudar a monitorizar os clientes nas discotecas e gerir os fluxos de afluência dentro dos espaços. “Vivemos todos com o telemóvel na mão e essa componente tem que entrar na diversão noturna”. O desenvolvimento de uma “app” poderia ajudar na solução, mas antes é necessário que o Governo valorize o setor e dialogue com os empresários. “Estamos todos a perder dinheiro e com prejuízos muito avultados. É impraticável pensar que, quando for possível retomar, seremos nós a pagar essa fatura. É essencial que haja apoios porque estamos a falar de um negócio que pode demorar anos a estabilizar”, avisa o responsável do Pacha Ofir.

Renascer com criatividade e otimismo

Sem grandes esperanças nas ajudas do Estado e sem tempo a perder, Fernando Pacheco está a viver o maior desafio profissional à frente do Pecado Karnal. Apesar de estar envolvido desde sempre na produção de festivais internacionais e da animação fazer parte do seu ADN há mais de 30 anos, abrir um restaurante nunca tinha feito parte dos seus planos. “O mundo do espetáculo e da oferta de ócio noturno têm que estar sempre a procurar alternativas. Os empresários da noite sempre se reinventaram porque o público e a cultura musical estão sempre a mudar.”

Fernando Pacheco instalou-se no Algarve em 2017 para transformar a antiga discoteca Kadoc na renovada Lick
(Foto: André Vidigal/Global Imagens)

Detentor do Lick, uma das principais discotecas algarvias, o empresário espanhol reinventou-se uma vez mais para fazer o que melhor sabe. “A minha especialidade é fazer as pessoas curtirem.” A sazonalidade e a enorme área exterior de que dispõe permitiram reagir com tempo e adaptar o espaço para inaugurar no verão, mas com a intenção de ficar. Num conceito que alia a gastronomia à música, no Pecado Karnal há concertos intimistas com artistas como o Badoxa e um selo “Clean & Safe” do Turismo de Portugal que confere confiança. “Ter uma casa aberta é mostrar às pessoas que a vida continua e que se respeitarmos as normas conseguimos sair à noite com amigos e família.”

Debaixo das grandes palmeiras e das luzes néon, a magia das noites algarvias acontece sem esquecer todas as regras de higiene e segurança. Bem-disposto e otimista, o madrileno garante à NM que desistir não entra no seu dicionário. “Podemos sempre queixar-nos de tudo. Eu abri a confiar que metia aqui todas as noites 500 pessoas e há noites em que tenho 60. Nunca tive 500, mas 60 já tive muitas vezes.”

Lick, no Algarve
(Foto: André Vidigal/Global Imagens)

Enquanto não é possível regressar às noites de festa no Lick, o objetivo é afirmar o Pecado Karnal como espaço de gastronomia e animação no roteiro algarvio. Desistir não é opção. Como sublinha o empresário espanhol, “no esta muerto quien pelea”, ou seja, não está morto quem luta. E todos estão dispostos a enfrentar a batalha.

Do Minho à costa algarvia, a funcionar no verão ou o ano todo, centenas de empresários do setor da diversão noturna vivem no limbo à espera de respostas para poderem regressar ao trabalho. Por entre a nuvem de dúvidas há uma convicção: a diversão e a interação humana não podem simplesmente desaparecer. Afinal, foi a necessidade de convívio entre amigos que fez nascer há 14 anos o Plano B na Baixa do Porto. As festas privadas foram recebendo cada vez mais público e hoje é um projeto de vida, como tantos outros, à espera de ordem para continuar.