Demorou, mas aconteceu. Nos últimos meses, o racismo tem estado sob os holofotes do Mundo. Em Portugal, mais ainda nas últimas semanas, com ameaças a deputadas e dirigentes. Da Esquerda à Direita trocam-se acusações. Um assunto em que sobram factos e faltam respostas eficazes.
Da primeira vez ninguém os viu. Aproveitaram a calada de noite para pintar a frase “Guerra aos inimigos da minha terra” nos muros da sede do SOS Racismo, em Lisboa. Na segunda investida, foram mais ousados. Esconderam-se sob máscaras brancas, empunharam tochas e marcharam em frente ao mesmo edifício, numa espécie de parada dos supremacistas brancos Ku Klux Klan, conhecidos pelos linchamentos de afro-americanos nos Estados Unidos. Mas só à terceira carga soaram, verdadeiramente, os alarmes. Dez pessoas – entre elas as deputadas Beatriz Gomes Dias e Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, e Joacine Katar Moreira, deputada não inscrita, ex-deputada do Livre – receberam um e-mail a intimá-las a abandonar o “território nacional” em 48 horas e a rescindir as “suas funções políticas”. Mais: se o prazo dado fosse “ultrapassado”, medidas seriam tomadas “contra estes dirigentes e os seus familiares, de forma a garantir a segurança do povo português”.
A missiva vinha assinada e visava ainda Mamadou Ba, do SOS Racismo, Danilo Moreira, sindicalista, Jonathan Costa e Rita Osório, da Frente Unitária Antifascista, Vasco Santos, do Movimento Alternativa Socialista, e Melissa Rodrigues, do Núcleo Anti-racista do Porto.
Os responsáveis pelas ameaças identificam-se como a “Nova Ordem de Avis – Resistência Nacional”. Uma nova milícia criada para “combater os refugiados”, os “estrangeiros que dirijam o nosso país” e impedir os “negros de mandarem em nós”. Esse movimento neonazi é um dos três grupos de extrema-direita atualmente ativo em Portugal, a par do “Blood & Honour” e do “Portugal Hammer Skins”, segundo os dados da Europol.
Após o episódio do e-mail, o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, encabeçou as condenações políticas e recomendou “tolerância zero” em relação àquilo que é condenado pela Constituição da República Portuguesa. Pediu também “sensatez” para combater o racismo. E frisou, de forma inequívoca, que uma linha vermelha tinha sido pisada. “É tão condenável uma atuação racista que tenha contornos criminosos contra deputados como contra qualquer cidadão português. Não há cidadãos de primeira e de segunda. Evidente que, sendo contra titulares do poder político, ganha outra dimensão.” E de facto ganhou.
A Polícia Judiciária começou a investigar, juntamente com as Secretas, considerando que os eventos são fruto de “uma escalada” de grupos, discursos e narrativas para segmentar pessoas negras, ciganas e imigrantes e veicular “a supremacia branca”. Algo que, no nosso país, ainda não existia. O que fez com que, pela primeira vez em 30 anos, o SOS Racismo recebesse na sua sede um membro do Governo. Rosa Monteiro, secretária de Estado com a pasta da Cidadania e Igualdade, mostrou “solidariedade” e prometeu a Mamadou Ba reforçar o combate ao racismo.
O Ministério Público (MP) abriu um inquérito. No final do Conselho de Ministros, Mariana Vieira da Silva, ministra de Estado e da Presidência, mostrou preocupação com o “agravamento dos discursos de ódio, de coação e ameaças”. E afirmou que “todos os democratas têm o dever de se indignar e de fazer o que estiver ao seu alcance face a este nível elevadíssimo de ameaça”.
Como chegamos aqui?
O processo de uma explosão, grosso modo, é simples de entender. Trata-se de um fenómeno caracterizado pela libertação rápida de energia, geralmente acompanhado por altas temperaturas e um forte estrondo, que provoca ondas de pressão no local onde ocorre. Foi assim com o racismo, depois de anos de silêncio ou de falta de microfones que lhe dessem voz efetiva. Foram os acontecimentos dos últimos tempos que geraram esse aumento de energia, fizeram subir a temperatura e o estrondo das notícias têm produzido a tal pressão, com o fundamental impulso da internet, que tanto atuou como rastilho como serviu de prova. Houve um emaranhado de factos que explodiram nas redes. Primeiro, um. Depois, outro. Tantos que se torna difícil negar: o racismo existe mesmo. É essa a grande herança que a morte filmada do afro-americano George Floyd, sufocado por um polícia durante cerca de nove minutos, nos deixou. Terá sido esse o evento que mudou tudo. O vídeo provocou uma onda de contestação, com manifestações contra o racismo nos quatro cantos do Planeta. Por cá, houve quem o negasse. O presidente do PSD, Rui Rio, disse que “não há racismo na sociedade portuguesa” e que se fosse governante não teria autorizado as manifestações.
Estes são só dois exemplos, portugueses, deste ano. No final de janeiro, o Ministério da Administração Interna abriu um inquérito à “atuação policial” no caso de Cláudia Simões, alegadamente agredida por um polícia na Amadora. O episódio filmado deu que falar. Mais tarde, o MP entendeu que houve indícios suficientes da agressão do agente da PSP Carlos Canha. Em fevereiro, o futebolista do F. C. Porto Marega abandonou um jogo por não aguentar mais ouvir insultos racistas. A reação perante uma claque que o hostilizava com sons de macaco lançou o debate. Nunca se falou tanto em racismo. Nunca tantos condenaram publicamente o preconceito e a discriminação baseados nas diferenças biológicas dos povos. Em Portugal. Na Europa. No Mundo.
A reboque vieram os extremos. Em junho, começou a vandalização, derrube e a destruição de estátuas ligadas ao colonialismo e à escravatura. Os primeiros alvos foram os monumentos de Edward Colston, em Bristol, comerciante de escravos do século XVII, e o memorial de Winston Churchill, em Londres, grafitado com a frase “Churchill era racista”. Nos Estados Unidos, as estátuas do explorador Cristóvão Colombo, também foram grafitadas, derrubadas e decapitadas em várias cidades do país.
Portugal não escapou ao efeito dominó. Quando o monumento em honra do Padre António Vieira, em Lisboa, foi vandalizado com a palavra “descoloniza” pintada a vermelho, Marcelo Rebelo de Sousa declarou o ato “verdadeiramente imbecil”, defendendo que a História deve ser assumida como um todo. Já lá vamos. Para já os factos. Dados do European Social Survery revelaram que 62% dos portugueses manifestam alguma forma de racismo. Está enraizado.
Que História é essa?
Fernando Rosas, professor catedrático no Departamento de História da Universidade Nova de Lisboa e Investigador Integrado do Instituto de História Contemporânea, diz à NM que a explicação para o que está a acontecer assenta em dois pilares. Deve-se ao passado de Portugal e à conjuntura que o Mundo atravessa. “É preciso ver que a sociedade portuguesa acabou com a guerra colonial, mas não com a ideologia que sustentava o colonialismo, que era profunda, com mais de um século.” Um lastro cultural e ideológico que se tornou menos visível com os anos, “mas que nunca desapareceu”.
Por outro lado, o historiador refere que “a Europa e o Mundo atravessam uma conjuntura de revivescência das ideias do ódio, da violência, da discriminação racial”, fruto do “desemprego, da angústia do futuro, do medo”. Sentimentos que ganham mais espaço no atual ambiente de pandemia. Tudo junto “contribuiu para que as ideias racistas venham ao de cima”. Por enquanto, em Portugal “são uma minoria”. No entanto, tem havido condições de progressão. “Basta ter um partido como o Chega com lugar no Parlamento e a ameaça é real”. Fernando Rosas faz questão de frisar que, apesar de tudo, as manifestações contra o racismo têm sido muito superiores, em número, às manifestações convocadas pelo partido de André Ventura. Ainda assim, põe o foco nas presidenciais americanas, que terão lugar a 3 de novembro, “o acontecimento político mais importante deste ano”. Visto que “uma reeleição de Donald Trump pode significar um agravamento radical de todas estas tensões” que já existem. E “uma derrota pode contribuir para a contenção desses movimentos”. A ponto de “influenciar o rumo da História a partir daqui”.
Talvez por perceber uma das maiores fragilidades de Trump, Joe Biden escolheu Kamala Harris como candidata à vice-presidência na corrida à Casa Branca. Tem 55 anos e é a primeira mulher negra a ser nomeada para um dos dois maiores cargos americanos. A decisão cai bem numa sociedade que fez o Mundo despertar para o racismo, após a morte de George Floyd. No entanto, lá como cá, subsiste a dúvida. Ivo Domingues, sociólogo das organizações do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, lança a reflexão: “O político é racista ou vê no racismo uma oportunidade política?”.
O pensamento recai automaticamente em André Ventura, líder do Chega. O sociólogo admite que se trata de uma pergunta sem resposta, “a não ser que se conheça mesmo o homem”. Em todo o caso, “a ciência assegura que as palavras que os políticos usam com frequência tendem a transformar-se em representação da realidade”. Se por um lado a Esquerda chama a si a grande bandeira da luta nacional contra o racismo, no caso da Direita o cenário não é tão claro. Recorde-se que enquanto todos os partidos condenaram as ameaças racistas que há dias visavam deputadas e ativistas, Rui Rio remeteu-se ao silêncio. Acabou atacado por Catarina Martins, líder do BE, que referiu que o caso deve envergonhar quem admite dialogar com as forças que “normalizam criminosos”. Aludindo ao facto de o líder do PSD não fechar portas a futuros acordos com o Chega, o partido que já promoveu duas “contramanifestações” em Lisboa, garantindo que “o racismo é um fantasma criado pela extrema-esquerda”.
No fundo, é este o partido que quase todos acusam de legitimar e fomentar o discurso racista. E para o fazer basta dizer que o assunto não existe, como explica Ivo Domingues. “O Chega está orientado para a negação do problema (diz não haver racismo estrutural na sociedade portuguesa), vá-se lá saber o que isso significa. Um discurso questionável, com base na existência de uma significativa proporção da sociedade que revela ser agente de práticas racistas.” E se por um lado pode parecer difícil sustentar que o Chega seja um partido racista, “uma vez que nos seus princípios não há nada que o associe claramente ao racismo, há muita coisa que o associa à extrema-direita”, alega o sociólogo. Quanto mais não seja, o facto de “o Chega não impedir que os seus eventos públicos integrem elementos publicamente conotados com o racismo e a ala extremista”. E, pelo que vemos, nem todos os que engrossam os eventos do Chega são filhos do saudosismo salazarista. Nas fileiras vemos rostos jovens. Os mesmos que Ivo Domingues diz revelarem atualmente “uma sobranceira desvalorização da política nas suas vidas”. O que deixa aberto o campo para o aparecimento de novos grupos inorgânicos como a tal Nova Ordem de Avis. “Quando os jovens adultos encontram dificuldade em realizar os seus projetos de vida tornam-se facilmente adeptos de discursos que apelam ao nacionalismo e à redução da imigração.”
Para o historiador Fernando Rosas, “só se ataca o problema do racismo resolvendo os problemas sociais”. Para isso, “é preciso dar uma enorme atenção às condições de vida das pessoas, ao desemprego, ao salário”. Já para a psicóloga Fátima Lobo, o momento “de grande conflitualidade social que decorre não tem muito a ver com o Chega”. No ponto de vista da também professora na Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Católica de Braga, “é fácil canalizar para um partido a responsabilidade de uma dinâmica social”. O problema está à Direita e à Esquerda. “Ou não tínhamos manifestações e contramanifestações”. Trata-se “não de um problema político, mas de uma questão mal resolvida do ponto de vista da consciência coletiva. O que perdemos não é ideológico é ético. Perdemos as nossas referências mais profundas, faltam-nos desígnios. A globalização descentrou do humano e colocou o foco no dinheiro, na economia.” Por isso, defende que “enquanto não existir um governo global as fraturas sociais serão muito significativas”. Afinal, “o racismo também é uma questão de recursos escassos, distribuição assimétrica e domínio dos países ricos sobre os pobres”.