Jorge Manuel Lopes

O racismo e o voo da cotovia

“To kill a Mockingbird” é da autoria de Harper Lee

“To kill a Mockingbird” chegou aos leitores americanos há 60 anos, a 11 de julho de 1960, e fixou-se no imaginário. No imaginário e nas salas de aula, onde se tornou leitura quase obrigatória. Transformou-se também num êxito de vendas, de prémios (entre eles o Pulitzer), de adaptações ao cinema e aos palcos.

Escreveu-o Harper Lee (1926-2016), e uma parte importante do Mundo gosta de imaginá-lo como o seu único livro – e assim seria, não tivesse chegado às lojas em 2015 “Go set a watchman” (“Vai e põe uma sentinela”), retirado dos arquivos da autora e publicado entre abundante controvérsia – a corrente maioritária defende que não se trata de mais do que o primeiro esboço da obra clássica que em português ficou com o nome “Mataram a cotovia”.

A narrativa remexe numa ferida que a realidade dos 60 anos passados desde a publicação original prova sistematicamente não ter cicatrizado. De alicerces autobiográficos q.b., “…Mockingbird” recua até à década de 1930 e à infância de Harper Lee nas profundezas do sul dos Estados Unidos e da Grande Depressão. Num lugarejo no Alabama, é pelos olhos de uma criança, Jean Louise Finch, que se assiste ao julgamento de Tom Robinson, homem negro acusado de violar Mayella Ewell, uma jovem branca. A defesa de Tom reside nas mãos de Atticus Finch, pai de Jean, e o processo, veredito e rescaldo trágico lembram que o vírus da segregação racial é matéria entranhada, não eliminável por decreto.

O próprio legado e linguagem de “To kill a mockingbird” vêm adquirindo novas relações com a realidade no correr das décadas. Em alguns estados americanos (Minnesota, Mississíppi), o livro vem sendo retirado dos programas escolares – à semelhança de, e por razões similares, “The adventures of Huckleberry Finn” (1884) de Mark Twain. Porque o poder também tem de passar pelo direito de todos poderem contar a sua própria história. lm