Rui Cardoso Martins

O que ela viu

(Ilustração: João Vasco Correia)

Alguns julgamentos, agora, parecem carros a desconfinar. Tem de se ver se o motor pega, se a bateria não morreu. Uma juíza de máscara no nariz e na boca dizia aos mascarados à volta:

– Interrompemos antes da declaração do estado de emergência.

Queria saber se os advogados prescindiam dos prazos de recurso, para que um dia o julgamento não fosse anulado e tudo tivesse que recomeçar. Os advogados disseram que sim. O arguido, um homem grande, abanou a máscara cirúrgica – eu quero é que isto acabe. Um segurança de discoteca de Lisboa que sempre se disse inocente. Vários homens, oito ou nove, espancaram um cliente às seis da manhã, mas ele não não lhe deixou a cara num bolo, até lhe devolveu o telemóvel caído em combate. A juíza:

– Continuamos onde parámos, ouvindo a testemunha que aqui está presente.

A ajudante de cozinha Maria viu a violência. Mas será que viu bem? Foi em Setembro de 2016, disse Maria.

– É assim, nós já estávamos na discoteca. Entretanto o Hélio e o Júnior foram lá ter. Eu estava com a Célia. Eles ligaram e foram lá ter connosco.

Lá dentro, uma discoteca: pessoas que bebiam, dançavam e se atiravam umas às outras na música, isto acontecia sem se falar (muito) em doenças. Coisas permitidas, outras que podiam correr mal. Às seis da manhã, quando a noite aclarava, Maria quis sair, daí a pouco ia trabalhar. Entrou no carro, tinha fome e o Júnior foi buscar bifanas à rulote.

– Entretanto, eu só vejo tipo uma confusão com o Hélder. Primeiro, vi-o a conversar com um rapaz.

– Onde é que a senhora estava?

– Mais ao fundo.

– Ao fundo é o quê, ali na porta?

– Mais ao fundo.

Apontava pelas paredes de vidro para outro edifício do tribunal.

– Estamos a falar de quanto, 200 metros, 300 metros?

– Não, isso é muito. Estava a 40 metros, 50 metros.

– Aquele edifício está a 200 metros daqui.

– Se calhar é mais perto. Não sei precisar os metros. Levantava a cabeça e conseguia ver. Estava no banco do condutor.

– E porque é que levantava a cabeça?

– Por causa da confusão. Quando a gente está a ver uma confusão, normalmente não ficamos assim [encolheu ombros], não é? A tendência é a gente levantar para ver [esticou a cabeça em modo tartaruga] melhor.

Os enormes olhos negros de Maria brilhavam na pele negra. Por baixo, a máscara verde. Primeiro, duas pessoas a conversar na rua:

– Foi tudo muito rápido, estavam a conversar, e começaram a agredir-se e… o rapaz começa a agredir o Hélder, mas o outro começa a responder. É normal. Depois vieram os outros. Estavam todos em cima do Hélder. Eram oito, nove.

A procuradora da República:

– Sabe como foi que lhe bateram?

– Não. É guerra de homem. Não é de mulher.

Maria não viu o porteiro-arguido a bater em Hélder.

– Havia umas dez pessoas à volta do Hélder, no chão.

– Podiam ter vindo ajudar…

– Bateram-lhe, senhora, bateram-lhe muito. Muito.

– Como é que agrediam o Hélder?

– Como eu disse, é guerra de homem: pontapé, soco…

– Essas pessoas todas a baterem no Hélder. Viu lá o senhor Daniel?

– Como eu disse, eram muitos. Era medo, era tudo junto.

– Não viu, não dá a certeza…

– Uma coisa é eu estar calma, sã. Outra coisa é estar num estado de nervos.

Mais tarde, a cara de Hélder nem se via bem, uma pasta vermelha.

– Nariz e boca, juntou tudo. Ele mal conseguia falar.

– E ele via bem?

– Eu nem sei se ele via alguma coisa.

E como é que isto começou? Dentro da discoteca.

– Não se recorda se houve uma discussão com raparigas?

– Tinha umas raparigas também lá. Se elas estavam a discutir…

– Nem a senhora viu o Hélder junto de umas raparigas?

– Eles têm muitas amizades, os rapazes já se sabe como é que eles são.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)