O pior que há em nós em tempos adversos

Todos teremos de aprender a lidar com o medo sem atacar os outros (Ilustração: M.G./Notícias Magazine)

Os atos de solidariedade multiplicam-se. A união, selada pelo incerto destino partilhado, sente-se. Mas há igualmente relato de gestos nada belos: açambarcamento, violência, estigma, julgamentos sem fundamento. A pandemia também desperta o pior que há em nós.

Quando Lorena Viúla percebeu que havia profissionais de saúde a trabalhar na linha da frente que moravam longe do hospital, ou tinham receio de continuar a vida familiar em casa, decidiu colocar à disposição de quem precisasse o seu apartamento vago em Cascais. Partilhou-o num grupo de Facebook da cidade e, logo no dia seguinte, recebeu o primeiro contacto. Mas não de quem esperava. “Alguém do prédio viu e ligou-me a empresa que faz a gestão do condomínio a informar-me que os moradores tinham medo de ser contagiados e não permitiam a situação”, conta-nos a proprietária que, apesar disso, continua empenhada em ceder a casa a quem dela precisar. Situação idêntica aconteceu no Funchal, onde dois profissionais de saúde do Hospital Nélio Mendonça tiveram de sair de um apartamento cedido depois de queixas e pressão dos moradores do prédio.

Aqui e ali surgem relatos que desafiam tanto a solidariedade como a razão. Na Austrália, uma mulher encostou uma faca ao pescoço de um homem numa disputa por causa de papel higiénico. Em Espanha, ambulâncias com idosos a quem tinha sido diagnosticado o novo coronavírus foram apedrejadas à chegada a uma localidade. No Reino Unido, um estudante de origem asiática foi espancado na rua num ato de xenofobia relacionado com a origem do SARS-CoV-2. Na Ilha de Reunião, um navio de cruzeiro foi recebido sob fortes protestos e ofensas.

“O medo coloca as pessoas em modo de ‘lutar ou fugir’, a mesma condição biológica em que estamos quando somos atacados por um leão. Muitos sistemas corporais mudam: aumenta a concentração de hormonas de stresse no sangue e diminui a capacidade de usar as partes do cérebro que nos permitem pensar com mais clareza. Sob essas condições, fazemos instintivamente o que for necessário para nos sentirmos seguros”, defende David Ropeik, ex-instrutor da Universidade de Harvard (EUA) em perceção do risco e autor do livro “How Risky Is It, Really? Why Our Fears Don’t Always Match the Facts” (Quão arriscado é, realmente? Por que razão os nossos medos nem sempre correspondem aos factos – tradução livre, sem edição em português). O especialista diz que se, por um lado, a maioria de nós se sente segura ao contribuir para uma sociedade em que todos procuram o bem comum, porque esse tipo de mundo também nos protegerá, “algumas pessoas sentem-se tão ameaçadas – em parte por causa de outros fatores das suas vidas pessoais – que este stresse as torna egoístas e interessadas apenas em proteger-se a si próprias”.

Este “modo de sobrevivência” não é ativado da mesma forma em toda a gente, concretiza o médico psiquiatra Diogo Guerreiro. “Apesar destes mecanismos de defesa serem comuns a todos nós, eles crescem por cima da nossa personalidade de base. Em pessoas com maior imaturidade emocional, com dificuldade em gerir os seus medos e angústias ou que de base têm pouca empatia, o modo de sobrevivência mais instintivo decorre sem limites e sem autocontrolo, apenas com o objetivo de aumentar a hipótese de sobrevivência do próprio – quer o perigo seja real, quer seja imaginado.”

Para o psiquiatra, esta situação mostra bem, por um lado, a importância de em tempos de crise investirmos na nossa saúde mental, “alimentando-nos e dormindo o suficiente, fazendo exercício físico, falando com as outras pessoas e limitando o excesso de notícias” e, por outro, mostra a grande responsabilidade que os agentes de informação têm, sobretudo os media e os políticos, “pois está nas suas mãos prevenir uma ‘epidemia de pandemónio’.”

O caso do papel higiénico e outras compras

No início da epidemia emergiu um comportamento bizarro que viria a ser descrito como “toilet paper gate”. Muitas pessoas estavam a açambarcar papel higiénico. Houve brigas e ameaças de morte. As prateleiras dos supermercados ficaram vazias e o Mundo perplexo. Muitos explicaram o fenómeno através da nossa difícil relação com o nojo, mas David Ropeik tem uma leitura mais abrangente do fenómeno: perante uma ameaça com tantas incógnitas, a compra em grande quantidade – seja do que for – parece-nos algo que podemos fazer para nos protegermos, precisamente porque sentimos que não sabemos o que fazer. “Pode parecer ridículo brigar por papel higiénico, mas o que está em jogo, quando as pessoas estão neste estado alterado, é muito mais do que papel higiénico: é a sensação de controlo e segurança que ele representa.”

Mas isto não significa que compras em grandes quantidades – normalmente definidas como açambarcamento – sejam uma reação irracional. Pelo contrário. José Manuel Palma-Oliveira, especialista em análise, perceção e comunicação de risco e professor da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, garante que não há traço algum de pânico neste tipo de ações, antes um processo de tomada decisão que individualmente não é desprovido de sentido, apesar de coletivamente se revelar trágico. “É um fenómeno que está largamente estudado pela economia comportamental a que chamamos ‘dilema social’. Verifica-se quando existe uma contradição entre a racionalidade individual, que é limitada, e a racionalidade coletiva: se fizermos aquilo que nos parece melhor do ponto de vista individual, o efeito do ponto de vista coletivo resulta em que fiquemos todos pior.” O especialista dá um exemplo extremo para ilustrar a ideia: “Quando há um incêndio numa discoteca, individualmente, o comportamento mais racional é correr para a saída. Mas isso significa que as pessoas vão todas ao mesmo tempo para a porta, fazendo com que seja impossível abri-la e morre muita gente”.

José Manuel Palma-Oliveira acredita estes comportamentos estão também a surgir porque a comunicação de risco não está a ser feita da melhor maneira. Por muito contraintuitivo que pareça, explica, “o que a ciência diz sobre a comunicação de risco é que é melhor pecar por excesso do que por defeito. Um gestor de risco é alarmista no início e, depois, se for o caso, desdramatiza. Em Portugal, como numa série de outros países, foi feito o oposto, e, quando se passa da desdramatização ao estado de alerta, as pessoas ficam mais desconfiadas, mais stressadas e mais dispostas a acreditarem em teorias da conspiração sem fundamento”.

Eu, tu, ele, nós

Stephen Reicher é professor de Psicologia na Universidade de Saint Andrews, trabalha ativamente na resposta à Covid-19 no Reino Unido e é uma autoridade mundial em psicologia das multidões. A sua leitura dos comportamentos durante a pandemia foca-se menos no “eu” e mais no “nós” e, para Reicher, toda a evidência aponta para que a observância das regras está a ser elevada. Complicado é quando as pessoas se convencem que esse não é o caso. “É um problema real que os media se foquem nos relativamente poucos exemplos de não conformidade, fazendo-os parecer mais comuns do que realmente são. Isso tem consequências perigosas: as pessoas convencem-se de que os outros são todos egoístas, o que mina a identidade coletiva que une as pessoas e as faz lidar melhor com situações difíceis”, aponta à NM. “Portanto, embora existam algumas pessoas que atacam ambulâncias – e que isso seja impressionante – não devemos fazê-lo parecer comum nem esquecer que a maioria das pessoas está a ser solidária.”

Quando as pessoas não obedecem, continua Stephen Reicher, isso geralmente tem mais que ver com a capacidade prática de cumprir do que com a vontade. Sugerir que é apenas uma questão de fraqueza psicológica individual é procurar explicações no lugar errado. “Sabemos que quando as decisões são vistas como equitativas e boas para o grupo, as pessoas aceitam-nas, ainda que individualmente possam sair prejudicadas. É quando as decisões são vistas como injustas – por exemplo, forçando todos a ficar em casa, mesmo que alguns não se possam dar a esse luxo – que as pessoas começam a ficar tensas. Mas, aqui, tanto o problema como a solução residem menos na psicologia individual e mais em questões políticas. E a disfuncionalidade dos sistemas não deve ser atribuída à disfuncionalidade individual.”

Mas isso tem acontecido. As redes sociais têm-se enchido de denúncias de estabelecimentos “ilegalmente” abertos, fotos de pessoas com carrinhos de compras “demasiado” cheios, comentários irados a imagens que mostram filas de trânsito de gente que anda “a passear”. Estes julgamentos sumários nada nos dizem sobre as pessoas visadas, mas antes sobre quem os profere, sustenta Paul Conway, professor assistente de Psicologia da Universidade do Estado da Florida, que investiga a psicologia da moralidade e da justiça. “As pessoas tendem a usar os seus próprios pensamentos, sentimentos e circunstâncias da vida para entender como os outros pensam, sentem e vivem”, explica em entrevista por email à “Notícias Magazine”. E exemplifica: é difícil empatizar com alguém que está com fome quando nos sentimos cheios ou alguém que está com frio quando estamos com calor.

“O que isso significa, olhando para o tipo de julgamentos feitos durante a pandemia, é que quem faz posts negativos sobre alguém com um carrinho cheio está apenas a pensar, ‘Eu não precisaria de tudo aquilo para mim’. Já uma pessoa que tenha uma família numerosa ou alargada tem menos probabilidade de pensar isso por causa da experiência pessoal de comprar para muita gente.” E por aí fora: quem pode ficar em casa tem dificuldade em pensar que quem anda na rua tem de ir trabalhar. Quem não tem um cão considera os passeios com animais supérfluos, quem não faz desporto acha as corridas ou passeios higiénicos desnecessários. “O medo aumenta essas tendências e leva a essa exposição nas redes sociais, como um castigo a quem se julga que não está a cumprir com os preceitos morais.”

Sempre o medo. Todos teremos de aprender a lidar com ele sem atacar os outros. As consequências desses ataques podem ser graves. Stephen Reicher resume-o bem: “Durante esta pandemia, a resiliência não é uma qualidade dos indivíduos, é algo que alcançamos juntos. Este sentido do ‘nós’ é habitual em tempos de crise, mas também é frágil e pode ser prejudicado por histórias que nos dizem que todos os outros são egoístas e pouco merecedores de confiança. Porque é quando se quebra o sentido de comunhão que começamos a agir de forma egoísta”.