O pesadelo americano

A Segunda Guerra Civil americana

Opinião de Germano Almeida *

Os anos 20 do século XXI começaram de modo incrivelmente parecido com o centénio anterior: emergência sanitária global, disrupção política, atos raciais violentos nos EUA (Tulsa, 1921; Minneapolis, 2020).

Há menos de quatro meses, se nos dissessem que iríamos viver a maior pandemia num século não acreditávamos. E, no entanto, estamos nela. Há menos de quatro anos, se nos dissessem que os Estados Unidos iriam eleger para a Presidência alguém com o comportamento de Trump não acreditávamos. E, no entanto, ele está a poucos meses de buscar a reeleição.

Entre 1861 e 1865, os EUA travaram a mais arriscada e fratricida das batalhas: uma Guerra Civil, entre Norte unionista, que defendia a Constituição, e Sul confederado, a advogar a escravidão. Século e meio depois, as ruas de centena e meia de cidades norte-americanas receberam a prova de que a ferida não está curada.

James Fallows, na “The Atlantic”, fala no “pesadelo americano”: “Ser negro é olhar no espelho a sua própria extinção na sociedade”. Não é exagero: os negros são só 12% da população americana, mas representam quase 30% das vítimas policiais.

O momento pandémico (com os negros, apenas um oitavo da população, a totalizarem um quarto dos infetados e um terço dos mortos por covid nos EUA, pela desigualdade social e obesidade galopante) e a derrocada económica – em dois meses os Estados Unidos passaram do menor desemprego em 50 anos para o maior em 80 – geraram caldo explosivo.

O carrossel de acontecimentos após o brutal assassinato de George Floyd (filmado e isso faz toda a diferença nesta sociedade da emoção da imagem) mostra o melhor e o pior daquele grande país: tensões raciais mas generosidade inter-racial; violência policial mas solidariedade.

Trump invocou uma lei de 1807 (“Insurrection Act”) para ameaçar mobilizar os militares para confrontarem os seus próprios concidadãos e foi para a frente de uma igreja com uma Bíblia na mão. Chamou “fracos” aos governadores e incitou à “prisão por muitos, muitos anos” a quem provocou desacatos e pilhagens. Obama, primeiro negro a chegar à Casa Branca, escreveu: “Não podemos desculpar a violência, ou racionalizá-la, ou participar nela. Se queremos uma sociedade americana em todas as suas dimensões e a operar no seu código ético mais amplo, temos que aplicar esse código a nós próprios”.

As duas Américas têm barricadas bem delimitadas.

Do mesmo modo que uma pandemia passou de ideia distante para realidade dominante, devemos olhar para a Guerra Civil Americana de 1861/65 como episódio que dá sinais de estar próximo de se repetir. A mais que provável recusa de Trump em aceitar pacificamente derrota nas urnas em novembro pode ser o gatilho fatal. No preciso dia em que os norte-americanos retomavam a conquista do Espaço, as piores feridas de racismo e divisão rebentavam no solo do país (ainda) mais influente e poderoso do Mundo.

O grande problema dos momentos históricos é que são muito interessantes de analisar à distância – mas bem mais duros e arriscados de se viver.

A Segunda Guerra Civil americana já começou.

*Autor de “Isto Não é Bem um Presidente dos EUA – Diário dos Anosda Perturbação Americana”, sobre o mandato de Donald Trump, e de outros três livros sobre presidências americanas