O novo normal que nos espera

São três e meia da tarde em Portugal, onze e meia da noite na China. André Zhou, 34 anos, filho de pais chineses, natural de Famalicão e desde 2007 residente em Xangai, acaba de chegar a casa, depois de mais um dia de trabalho no restaurante que abriu no centro da cidade, há mais ou menos cinco anos. “Desculpe, deixe-me só lavar aqui as mãos. [uns segundos de silêncio] Diga.”

Soa bem-disposto, ainda que o negócio não lhe dê motivos para isso. Reabriu o “Viva!” em finais de fevereiro, mas estima que no último mês a faturação não chegue sequer a 30% do que era habitual. Antes da Covid-19, e do rasto de mortandade e medo que a maldita doença inculcou no Mundo (já lá vão perto de 500 mil casos confirmados e mais de 20 mil mortes), André tinha quase sempre casa cheia.

Agora não. “Há muita gente que ficou sem trabalho. É normal que também tentem gastar menos. Além disso, de alguma forma, as pessoas ainda têm medo de consumir fora. Ainda há alguma preocupação.” O famalicense vai fazendo o que pode para enxotar os fantasmas. Para isso, redobra os cuidados. À entrada, todos os clientes têm de preencher uma ficha com os dados pessoais. E que ser submetidos a controlos de temperatura. Entre os funcionários, o procedimento repete-se de duas em duas horas. A mesma periodicidade com que desinfetam o espaço.

André Zhou, natural de Famalicão, tem um restaurante de comida portuguesa no centro de Xangai

“Algumas destas medidas são impostas pelo Governo. Outras são iniciativa minha, para toda a gente se sentir em segurança. Até porque, quando reabri o restaurante, tive de assinar uma declaração de responsabilidade, garantindo que teria todos os cuidados.” Os dias não têm sido fáceis. Em tempos de agruras, de receios que resistem e de receitas à míngua, valem-lhe os clientes assíduos, entretanto feitos amigos, que fazem questão de continuar a passar lá para petiscar ou beber um copo. “Têm sido os primeiros a querer ajudar nesta situação muito difícil.” E a bonança ainda vem longe. André estima que só a partir de maio as coisas comecem a melhorar.

Entretanto, a vida em Xangai vai retomando o trilho. “Diria que as ruas já voltaram ao normal. As pessoas querem sair, respirar. Sente-se muita energia. Andam mais relaxadas. Numa primeira fase, parece que toda a gente tinha medo de tocar no que quer que fosse. Agora já não.” A máscara é que lhes continua a ser indispensável. “A exceção são umas miúdas novas aqui e ali. Mas é raro. Diria que aqui 98% das pessoas continuam a usar a máscara.”

No país que serviu de berço à abominável Covid-19, e a que ela respondeu com o que a Organização Mundial de Saúde classificou como “o plano de contenção mais ambicioso, ágil e agressivo da história” – que é como quem diz, uma quarentena maciça -, o tempo é agora de envidar esforços para voltar à vida como ela era. Sabendo-se e percebendo-se, a cada hora e a cada esquina, que nada é como era dantes. Há boas notícias, contudo. Nas duas últimas semanas, foram vários os dias em que não se registou qualquer caso de contágio local. A própria Comissão de Saúde da China anunciou, na segunda-feira, 23, que a transmissão comunitária tinha desaparecido.

Em Portugal, o cenário não podia ser mais distinto. Com o pico da doença projetado para meados de abril, o número de casos (e mortes) continua a escalar perigosamente. Em declarações feitas no Parlamento, o primeiro-ministro, António Costa, estimou o final da curva epidemiológica para final de maio, “no melhor dos cenários”. Ora, isso permite-nos olhar para os testemunhos dos portugueses na China como diretrizes do que pode vir a ser a nossa vida em dois meses.

Certo, salvaguardem-se as diferenças. Salvaguarde-se que a China tem um regime comunista, de forte pendor nacionalista e ditatorial, com repercussões óbvias nas liberdades individuais e nos direitos humanos. Salvaguarde-se que as medidas adotadas pelo regime chinês foram bem mais duras do que as aplicadas em Portugal. E que a população do país a elas respondeu com uma profunda devoção. Entre outras coisas. E agora prossigamos, para que possamos ter uma ideia do que nos espera no “regresso à normalidade”. Com aspas. Obrigatoriamente.

“O pior já passou”

É sábado, 21 de março. O sol exibe-se com desfaçatez em Dalian, grande cidade portuária da província de Liaoning, ali resvés com a Coreia do Norte. Após semanas a fio de confinamento, que permitiam apenas fugazes idas às compras, Ângelo Dias, 26 anos, treinador de futebol das camadas jovens do Zhichuan Football Club Dalian, aventura-se, por fim, num passeio de duas horas pelas redondezas. Vai até ao parque. Já há crianças a brincar, a jogar badminton, gente a caminhar, a correr, a passear o cão, a andar de bicicleta. Pessoas mais velhas também. Pais e filhos, avós e netos. “Vi muito mais pessoas na rua do que estava à espera”, conta-nos, dias depois, a partir de casa.

Entretanto, já voltou a sair. Para cortar o cabelo, por exemplo. “Finalmente”, graceja. Em Dalian, a maior parte dos restaurantes já reabriu. Os ginásios fá-lo-ão a 1 de abril. “Nota-se que o pior já passou. E que as coisas estão aos poucos a voltar ao normal. Até as pessoas estão um bocadinho mais simpáticas e amigáveis. Antes, andavam de cara mais fechada.”

Ângelo Dias é treinador de futebol em Dalian

Para trás, vão ficando algumas situações draconianas que transformaram Dalian num lugar estranho para se estar. “No princípio de fevereiro começaram a fechar tudo e mais alguma coisa e a controlar tudo de uma maneira muito maluca. De cada vez que saíamos do prédio tínhamos de preencher uma ficha com o nome e a hora a que saíamos. E depois a hora a que entrávamos. Até as pessoas que iam entregar comida a casa foram proibidas de entrar nos prédios.”

Por lá, também faltaram as máscaras e o álcool. E, nos supermercados, chegou a haver prateleiras completamente vazias. Entretanto, o equilíbrio foi reposto. E as medidas mais duras foram esmorecendo. Há cuidados que se mantêm, ainda assim. Nos prédios, quase todos com porteiros encarregues de zelar pelo cumprimento das ordens e restrições, as visitas ainda estão sujeitas a rigoroso controlo.

Nos elevadores, continua a haver uma película de plástico a cobrir os botões. E controlos de temperatura em tudo o que é local público. Além da máscara, que continua a ser usada religiosamente. Também porque, importa realçar, os chineses há muito se habituaram. Já desde a crise da SARS, em 2003, que ela lhes entrou no quotidiano. Daí que, mesmo fora dos tempos de epidemia, não é incomum vê-la cravada ao rosto de quem passa na rua.

Entretanto, Ângelo continua sem ter que fazer. Não há qualquer previsão de quando os treinos do Zhichuan Football Club Dalian vão recomeçar. Nem sequer uma previsão quanto à data em que as escolas vão reabrir. “É um regresso à normalidade que está a ser feito, mas muito controlado no tempo”, resume João Pimenta, correspondente da agência Lusa em Pequim. Na capital chinesa, onde se registaram perto de 600 casos, já se vai sentindo um assomo de alívio. “Há uma sensação de um certo festejo, de o pior já ter passado.”

Mas o controlo continua a ser especialmente rigoroso. O jornalista dá o exemplo da quarentena imposta aos estrangeiros que lá cheguem. “O voo não é direto. Os aviões param em cidades vizinhas, no norte da China, onde os passageiros são sujeitos a rigorosos exames de saúde. Se não acusarem o vírus podem seguir.” Chegados a Pequim, seguem para hotéis transformados em centros de quarentena, onde têm de cumprir o isolamento – no caso dos estrangeiros, a expensas próprias.

A normalidade difícil de definir

Anthony Tao, jornalista sino-americano, editor da plataforma SupChina.com, traça um retrato curioso, a propósito do regresso à normalidade. “As pessoas estão a tentar retomar as suas vidas, mas a normalidade é difícil de definir. Aliás, é difícil dizer quando é que as coisas vão (se é que vão) voltar à noção de normalidade que estava convencionada antes da pandemia. Há seguramente mais gente nas ruas, nos parques, a sair para o trabalho, mas há ainda muito controlo.”

Desde logo nos bairros, quase todos “cercados” por seguranças que teimam em impor controlos de temperatura à entrada. Quem tiver febre, está obrigado a ficar de quarentena. O rigor das medidas varia consoante as províncias e as cidades. Também consoante a prevalência da doença em cada região. Variáveis que determinam a cadência do regresso à normalidade.

Se em Pequim continua a haver restrições aos restaurantes e transportes públicos, a realidade testemunhada por Maria Ribeiro, 25 anos, e Luís Lopes, 27, casal português a viver em Zhuhai (101 casos), paredes-meias com Macau, é bem diferente. “Nos transportes públicos, as pessoas já andam outra vez como sardinhas em lata”, partilha a designer de comunicação, a atestar o regresso à normalidade. Há outros sinais encorajadores. Tirando as escolas, que continuam fechadas, já quase tudo reabriu. Restaurantes, bares, até ginásios. “Só não têm aulas de grupo. Nos restaurantes é preciso fazer reserva antecipada e não aceitam mesas com mais de seis pessoas”, ressalva Luís, gestor de projeto numa empresa que faz exportação de produtos promocionais.

Maria Ribeiro e Luís Lopes vivem em Zhuhai e, aos poucos, estão a voltar à vida “normal”

Tanto Luís como Maria já há muito voltaram a deslocar-se para o trabalho diariamente. Mas em Zhuhai, onde a vida de outrora parece querer impor-se num ritmo mais acelerado, nem tudo é normalidade. A cidade continua a ser uma multidão de gente de máscara. E os controlos de temperatura ainda estão por todos os lados. Nos transportes, nos restaurantes, nos centros comerciais, até nas empresas, que estão obrigadas a controlar os funcionários duas vezes ao dia.

E há os fantasmas, claro. “Há alguma desconfiança, sobretudo em relação aos estrangeiros. Parece que pensam sempre: ‘Será que chegaste de fora? Que podes estar infetado?’.” Maria conta uma situação vivida na empresa em que trabalha, quando um dos funcionários recebeu a visita da namorada russa, que trabalha no Reino Unido. “A primeira reação foi pensar: ‘Se ela estiver infetada vamos ter de ficar todos de quarentena’.” Há uma preocupação latente, garantem. Luís avança com outro episódio elucidativo. “Costumava jogar futebol aqui com um grupo de chineses e, apesar de estar tudo a regressar ao normal, ainda não quiseram voltar.”

Quer isto dizer que na China ainda se vive num estado de medo permanente? O sino-americano Anthony Tao defende que não. Diz até que naquele país nunca sentiu o medo que se vai vendo agora no resto do Mundo. “Há várias razões para isso. Desde logo, o facto de as pessoas confiarem em quem manda. Além disso, a Internet aqui é censurada, o que permitiu ao Governo ir controlando ativamente o nível de pânico espalhado online. E quem viveu a SARS [em 2003] já passou por tudo isto. Isso provavelmente também ajuda na resposta emocional a esta pandemia.”

Trancas à porta no epicentro

João Pedrosa, 58 anos, diretor técnico de uma empresa alemã de tecnologia, em Wuhan, tem uma versão algo diferente. “Uma pessoa assusta-se, claro. É impossível não sentir medo.” Em janeiro, quando 16 portugueses que estavam na cidade foram repatriados, ele optou por ficar por ali, em pleno epicentro da pandemia. Na província de Hubei, onde se engloba a cidade de Wuhan, houve quase 68 mil casos confirmados. Por isso, a região parece resistir mais à flexibilização das medidas de contenção. João, que no último fim de semana pôde, por fim, passear pelo bairro em que vive (depois de um confinamento de dois meses), ajuda-nos a puxar a fita atrás.

João Pedrosa é diretor técnico de uma empresa de tecnologia alemã, em Wuhan

Primeiro, a 23 de janeiro, as portas de Wuhan foram fechadas ao mundo. À exceção dos serviços de saúde e dos supermercados, tudo parou. Depois, a 15 de fevereiro, foram os bairros. Os portões foram encerrados e a polícia passou a fazer questão de não deixar ninguém entrar nem sair (exceção feita a médicos, enfermeiros, voluntários e pouco mais). João ainda tentou ir ao supermercado mas já nem isso conseguiu. Mesmo os bens essenciais começaram a ser entregues à porta. Por fim, a 24 de fevereiro, até os prédios foram bloqueados.

Quase dois meses depois, a dureza das medidas começa, por fim, a esbater-se. Lentamente. “Na semana passada já começou a haver autorização para algumas empresas retomarem a atividade, com todos os cuidados e mais alguns.” A de João deverá reabrir neste fim de semana. Entretanto, as restrições nos prédios também foram levantadas. E já se vão vendo transportes públicos a circular. Mas continua a haver muito pouca gente na rua. Enquanto isso, por toda a China, a máquina do regime vai cantando vitória, alto e bom som. “Não nos podemos esquecer que este é um país cuja base de legitimidade política é o nacionalismo. Há uma clara narrativa de vitória do partido e da nação, uma vaga de orgulho patriótico”, contextualiza João Pimenta, correspondente da agência Lusa.

Mesmo que as notícias do ponto de vista económico sejam tudo menos animadoras. Setores cruciais fortemente afetados. Quebras brutais de atividade. Negócios em risco de colapso iminente. O jornalista português traça um retrato preocupante. “De uma forma ou de outra, quase toda a gente está a pagar a fatura. A atividade do setor manufatureiro caiu para os mínimos dos últimos 30 anos. Não é uma crise sistémica, e os chineses têm muito a cultura da poupança, o que ajudará a garantir alguma liquidez, mas há negócios praticamente falidos. Acredito que muitos não vão sobreviver.”

Para os trabalhadores, a situação pode ser ainda mais ingrata, garante o jornalista Anthony Tao. “Tenho ouvido relatos perturbadores de empresas que se aproveitam dos funcionários, fazendo-os trabalhar horas extra a partir de casa sem lhes pagar mais. Sabem que é um período péssimo para procurar novos trabalhos e os trabalhadores acabam por não ter grandes opções. Conheço muita gente que não foi paga durante este período ou que viu o salário cortado.”

E no meio de tudo isto, na enxurrada de uma pandemia que nos impõe a todos fortes restrições na proximidade e no contacto físico, como ficam as relações sociais? Evitam-se cumprimentos? Mantém-se a distância? Para nós, portugueses, tão dados a afetos, o assunto é premente. Na China nem tanto. “O asiático já não é de si muito expansivo na sua forma de estar”, ressalva João Pimenta. Ou como explica Anthony, os chineses “não têm por hábito cumprimentar-se com apertos de mão ou beijinhos”. Daí que, por lá, a questão não se coloque nesses moldes. Mas, explica João Pimenta, o impacto social também se faz sentir. “Aqui as pessoas gostam muito de conviver à mesa e de partilhar os pratos. Neste momento isso é inviável. Aquilo dos jantares de grupo e das mesas circulares é algo que, para já, não existe.”

Para Anthony, a grande questão, daqui para a frente, passa em grande parte pelas liberdades individuais. “Acho que em algum momento (talvez não agora, mas em algum momento), o desafio vai ser traçar a linha entre o medo do vírus e o medo da nossa resposta ao vírus. Muitas liberdades foram suspensas durante este período e, sobretudo na China, há uma grande incerteza em relação à forma e à extensão com que essas liberdades vão ser repostas. Ou será que estamos condenados a ter as nossas movimentações condicionadas?” Quanto a Portugal, e aos portugueses, o sino-americano deixa uma mensagem de tranquilidade e otimismo. “Quando passar, vão sentir um profundo suspiro de alívio coletivo – que vai saber tão bem. Aguentem, por agora. As coisas vão ficar bem.”