O inimigo que rouba a saliva

Manuel Fernandes passou por uma fase de negação, nas conversas falava do seu tumor como uma gripe, como homem alegre, bem-disposto, que acredita na vida (Foto: Paulo Alexandrino/Global Imagens)

O vírus do papiloma humano também é um fator de risco para a saúde da orofaringe. Sangue na saliva e feridas nas amígdalas são sinais de alarme. Dia Mundial do Cancro da Cabeça e Pescoço assinala-se esta segunda-feira, 27 de julho.

Em fevereiro do ano passado, Manuel Fernandes, 47 anos, delegado de informação médica do Montijo, deu conta de um alto do lado direito do pescoço, um papo anormal que não desaparecia. Não perdeu tempo. Telefonou a um amigo médico e nunca mais parou. Consultas, otorrino, exames, oncologia. Cirurgia, radioterapia, quimioterapia. “Foi tudo muito rápido e um bocado estranho”, confessa.

No início, houve suspeita de um linfoma, mais exames, biópsia, até ao diagnóstico final: carcinoma maligno com 0,2 centímetros, provocado pelo HPV, vírus do papiloma humano, com metástases. Tinha cancro da orofaringe. Cirurgia marcada, três semanas depois estava na sala de operações. Retiraram-lhe as amígdalas e as metástases e o tumor primário foi então detetado na amígdala direita, o que nenhum exame tinha conseguido localizar. Um dia nos cuidados intensivos, três dias internado, 37 pontos no pescoço. Um mês depois da cirurgia, começava um ciclo de tratamentos. Radioterapia todos os dias durante dois meses e meio, três sessões de quimioterapia que terminaram em agosto do ano passado. A certa altura, passava mais tempo no hospital do que em casa.

Manuel Fernandes passou por uma fase de negação, nas conversas falava do seu tumor como uma gripe, como homem alegre, bem-disposto, que acredita na vida. Pediu aos médicos que colocassem sempre as cartas em cima da mesa, que pintassem o pior cenário possível, queria estar preparado para tudo o que tinha de enfrentar. Não foi fácil, física e psicologicamente. Aftas no céu da boca e na garganta, mês e meio a comer papas e batidos, dores, não podia dormir para o lado direito, era como se tivesse um escaldão no pescoço. O seu corpo emagreceu, passou de 97 para 72 quilos. Custava-lhe engolir as refeições líquidas, quebrou, ficou fisicamente frágil, sem energia. Tomou medicação para as dores, para tratar os fungos, e soro enriquecido para receber nutrientes.

Quase ano e meio depois do diagnóstico, há sequelas que ficam. A perda de saliva é irreversível. “A salivação é muito inferior à que tinha, a boca seca muito, tenho de comer muito devagar”, conta. Perdeu o paladar e o cheiro, sentidos que pode recuperar sem prazo definido. A voz ficou mais rouca. O pescoço é agora uma zona fotossensível, tem de colocar protetor solar todos os dias de sol. Tem um edema na garganta, que acabará por desaparecer, e o pescoço quase sempre vermelho e inchado. Neste momento está estável, sob vigilância médica, tem de fazer uma ressonância de seis em seis meses.

“Quando se passa por uma coisa destas, a cabeça é muito importante”, garante. Agradece a dedicação da equipa médica, “a disponibilidade e humanidade” de todos os que o trataram no hospital e que foram, realça, “de uma eficiência brutal”. E deixa um conselho. Procurar um médico quando se sente algo estranho no corpo. “Não é entrar em pânico, pode não ser nada, mas pode ser alguma coisa.”

Não fumar, não beber álcool

Todos os anos, em Portugal, há cerca de 220 novos casos de cancro da orofaringe, que inclui as amígdalas palatinas, as amígdalas linguais e a base da língua. O tabaco e as bebidas alcoólicas têm uma grande responsabilidade nesta doença e o HPV, vírus do papiloma humano, é um novo e temido fator de risco.

Uma impressão na garganta durante mais de duas ou três semanas, dificuldade em engolir, dor na faringe e dor na deglutição são motivos de preocupação. “Os sinais de alarme mais frequentes são o aparecimento de sangue na saliva, ferida nas amígdalas, tumefação no pescoço de crescimento progressivo”, adianta Pedro Montalvão, otorrinolaringologista no Hospital CUF Descobertas, coordenador da Unidade de Cancro da Cabeça e Pescoço da CUF Oncologia. “O cancro da orofaringe atinge mais o sexo masculino e se a causa for tabaco ou álcool surge por volta dos 60-70 anos. O cancro da orofaringe ligado ao HPV surge mais cedo, entre os 30-50 anos”, acrescenta.

Manuel Fernandes, 47 anos, recuperou de um cancro da orofaringe. Mas há sequelas que ficam
(Foto: Paulo Alexandrino/Global Imagens)

Entre 35 a 40% dos cancros da orofaringe apresentam a presença de HPV que surge por transmissão vertical (parto), por contacto orogenital, por contacto oral, e por contaminação pelas mãos (autoinoculação). “O HPV constitui a doença sexualmente transmitida mais frequente nos Estados Unidos da América e 75% dos homens e mulheres sexualmente ativos têm uma infeção por HPV ao longo da sua vida. O sistema imunológico em 90% das pessoas elimina naturalmente o HPV em dois anos, mas é aquele que persiste, que não é eliminado, que pode ficar adormecido algum tempo, que vai provocar o aparecimento de cancro”, pormenoriza.

O risco de infeção aumenta com o número de parceiros sexuais e não há um tratamento específico. “Existem cerca de 200 tipos diferentes (genótipos) de HPV, e cerca de 40 tipos que infetam tanto a mucosa oral como a mucosa genital. Destes, cerca de nove podem vir a provocar cancro”, alerta. E a qualidade de vida dos doentes diminui, sublinha, “pela falta de saliva devido à radioterapia, dificuldade ligeira na deglutição, inchaço da pele, reação da pele ao sol e ao calor”.

A prevenção passa por evitar comportamentos de risco, não fumar, não ingerir bebidas alcoólicas, fazer consultas de rastreio em ginecologia, urologia e otorrinolaringologia, para um diagnóstico atempado de lesões relacionadas com HPV.

O Dia Mundial do Cancro da Cabeça e do Pescoço assinala-se a 27 de julho. Em Portugal, o cancro da boca, com cerca de 800 novos casos por ano, o cancro da laringe, com 600 novos casos, e os cancros da orofaringe e da hipofaringe, cada um com 220 novos casos, são os mais comuns. “Quanto maior o número de cigarros, pior. Quanto maior o volume de bebidas alcoólicas, pior. Evitar o consumo de tabaco e álcool é muito importante na prevenção.”

É fundamental escutar o corpo e não ignorar os sintomas. “O diagnóstico e tratamento do cancro não podem esperar, pelo que perante sintomas, as pessoas devem contactar as suas unidades de saúde e solicitar avaliação médica”, aconselha o otorrinolaringologista. Mesmo em tempo de pandemia.

Números e sinais

• Impressão na garganta durante mais de duas ou três semanas, dificuldade ao engolir, dores na faringe e na deglutição são os principais sintomas.
• Sangue na saliva, feridas nas amígdalas, tumefação progressiva no pescoço são sinais de alarme.
• No cancro da orofaringe HPV positivo, com boa resposta terapêutica, a sobrevida aos cinco anos é de 60-90%.
• O cancro da orofaringe não ligado ao HPV, mas sim ao tabaco e álcool, tem um prognóstico pior, com sobrevida aos cinco anos de 20-70%, incluindo todos os estádios.