Valter Hugo Mãe

O humor de Herman e a família

Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens

Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Eram as primeiras palavras bravas ditas em horário nobre, e a primeira vez que se dizia “merda”, ali depois da telenovela.

A vida fazia-se de um cansaço tremendo, com os adultos num esforço demasiado que não permitia grandes entusiasmos. Vi os meus pais em alegrias de vez em quando, porque a normalidade era trabalho e preocupação, quatro filhos para sustentar num país de dificuldades e tão escassa igualdade. Por assim ser, sobrava quase nada para certa festa familiar. Claro, a importância gloriosa das visitas aos avós, os natais ou o canto nos aniversários, de resto, o pouco da paz vinha de nos podermos manter juntos e esperar que alguma sorte inventasse melhor futuro.

Para tão adiado país foi fundamental o humor de Herman José, que se libertou da pacovice dominante e arriscou quanto pôde no espaço mais exposto da nação. Quando Herman José inventou o “Tal Canal”, inventou também outra portugalidade, uma que se preparava para ser da nova Europa, a discutir os complexos que nos feriam e tanto pareciam diminuir, e a reclamar que nos deixassem ser mais à solta. Eram os primeiros desabafos a sério a que a minha geração assistia. A subversão das personagens que criava não obedecia senão a um protesto pela liberdade, pelo fim da hipocrisia numa sociedade que aspirava tanto a ser do primeiro mundo quanto conservava ainda os tiques bafientos da ditadura.

Eram as primeiras palavras bravas ditas em horário nobre, e a primeira vez que se dizia “merda”, ali depois da telenovela, quando toda a gente de bem se reunia diante da televisão antes de dormir. Com a desculpa do humor, passava o protesto para um novo tempo, a espanar de cima dos ombros o jugo burguês, tão recatado e puritano. E, no país do pouco, o Herman desfazia os cenários à pancada, a esborrachar legumes e frutas, a bater na professora enquanto deitava abaixo mais e mais que me parecia sempre o abate do autoritarismo, a prepotência que ainda abundava de uma sociedade violentamente hierarquizada, feita de classes que se policiavam e se proibiam umas às outras, como manchas que não se misturavam e comunicavam em solenes distâncias.

Para os que viviam em cansaço e adiamento, naquela réstia de esperança por um futuro melhor, que o Herman José viesse dizer a palavra “merda” na televisão era um sinal de identificação e vingança popular. O país fremia de Lisboa a Paços de Ferreira, de Faro a Vila do Conde e Monção. Toda a gente achava alguma coisa acerca do assunto. Aquele rapaz que agora se ria de tudo colocava o país a rir de tudo e, sobretudo, a sarar. Vínhamos de um passado recente de temor e perseguição, era imperioso rir dos poderes, dizermos ao poder que não voltaríamos ao jeito submisso de outrora.

Como havia sido antes com o Jô Soares, o Herman e seu humor justificou instantes de ouro na minha família. Éramos juntos à hora dos seus programas e éramos na felicidade possível. Quando a vida me permite reencontrá-lo, tenho a compulsiva necessidade de lhe agradecer por isso. No momento certo, pela minha adolescência, ele deitou por sobre nós a ideia de que ia ficar tudo bem. Deitávamo-nos depois, com a convicção de que não perderíamos a sabedoria de voltar a sorrir.

Rubrica “Cidadania Impura”, de Valter Hugo Mãe.

E é com horror que leio pelas redes os impropérios jocosos e aziados daqueles que, num trágico costume, são incapazes de reconhecer em mulheres a valentia que só se espera dos homens.

A Doutora Graça Freitas impende sobre nós como uma senhora professora dos tempos de escola. Depois de meses de “aula” diária, sinto que criamos por ela essa visão emotiva que procura um pouco resistir ao que nos diz ao mesmo tempo que sabe que precisamos de aprender.

Como é natural, não é absolutamente pacífica a relação de um professor com seus alunos, sobretudo quando não há verdadeiramente um manual e a sala de aula é um campo aberto ao ruído.

Tenho para mim que Graça Freitas ocupou por vezes um lugar político quando seria esperado manter-se num registo estritamente técnico. Em muitos momentos, esteve em causa encobrir certa incapacidade do Governo e das instituições mais do que francamente expôr o que a ciência já tinha competência para expôr. O caso das máscaras, por si só, é paradigma de uma instrução que jamais esperaríamos balizar-se numa franca opinião técnica. A instrução para preterir a máscara só se entende enquanto súplica política.

Dito isto, considero fundamental a lealdade profunda entre a DGS e o Governo. Por mais que nos tenham parecido em estéreo as conferências conjuntas com a ministra Marta Temido, essa sintonia é também a chave do clima de calma que se tem conseguido manter, ainda que os dados sejam alarmantes e o SNS pareça tão perto de colapsar. Essa lealdade é um equilíbrio de que todos auferimos, e radica numa força de espírito impressionante que Graça Freitas e Marta Temido revelam. Por maior irritação, que é sobretudo uma irritação com estarmos subjugados a um predador invisível e ubíquo, não podemos jamais deixar de reconhecer o empenho militante e incansável que estas duas mulheres levam a cabo e o quanto a sobriedade que mantêm nos serve de diapasão para a dita calma.

É, por isso, com solidariedade que recebo a notícia de que Graça Freitas testou positivo para a covid-19, fazendo votos para que se conserve assintomática e possa, inclusive, manter-se em funções. E é com horror que leio pelas redes os impropérios jocosos e aziados daqueles que, num trágico costume, são incapazes de reconhecer em mulheres a valentia que só se espera dos homens.

Haverei sempre de pensar livremente acerca do mundo que me rodeia e daquilo que me afecta a vida, mas não quero confundir meu cansaço ou frustração com a dignidade das pessoas e a alegria de que estejam bem. Assim, é genuinamente o que desejo, que todas as pessoas que adoeçam se curem o mais rápido possível, passando por sofrimento nenhum ou muito pouco, e regressando às suas missões no cumprimento da boa fé que lhes reconheço ou espero.

Como com professores que nos pareceram mais severos, que nos chumbaram ou com os quais não conseguimos aprender aquele bocado de matemática, devemos retribuir com a humildade de reconhecer que não faríamos melhor. Precisamos deles. Precisamos muito deles.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)