Valter Hugo Mãe

O homicídio cometido pelas boas pessoas


Já vejo quem se despeça com dois beijinhos na rua com promessas de novo encontro amanhã na praia.

As boas pessoas ficam com pruridos em dizer à família e aos amigos que podem estar positivas e, com discrição católica, oferecem a doença. Já com sintomas, ali à espera do resultado do teste, com muita esperança na Nossa Senhora de Fátima, fazem a vidinha muito normal mas de voz baixinha, como se estivessem subitamente afónicas, já com um bocadinho de falta de ar que é mais da vergonha do que dos pulmões. Com tanto pudor e tanta Nossa Senhora de Fátima, calam-se, mexem aqui e ali, deixam os outros entrar na roleta russa que, no pior azar, chama a morte. As boas pessoas, de cabeça inclinada como os santos muito castos, perpetram esse homicídio potencial, criam a hipótese concreta da morte de outrem. O quererem sobreviver parece que não lhes permite o remorso.

As pessoas positivas começam a ter nomes. Sabemos de que festas vieram suas sentenças, de que precipitada folia se gerou a partilha do vírus. Bem que andamos todos a refilar contra o desconfinamento à bruta, já vejo quem se despeça com dois beijinhos na rua com promessas de novo encontro amanhã na praia. Já andam em grupos grandes, a pedir boleias nos carros uns dos outros, a rir em franca maravilha como de regresso à plena liberdade, à impune liberdade dos encontros.

Quando sabemos o nome dos positivos ficámos incrédulos acerca do quanto demoraram a criar cuidado pelos que amam. O decoro é tanto, esse recatozinho que aposta tudo na fé, que parece impossível não terem imediatamente recolhido a avisar aqueles de quem mais gostam para não chegarem perto. Não querer ser culpado só tem uma solução: é não ser.

Como previa, é muito pouco fiável aquela promessa de que as autoridades saem no encalço dos que coincidiram com quem testou positivo. Vou sabendo sobretudo do modo como as pessoas são gentilmente deixadas numa indefinição que as empurra para os testes privados. O procedimento por aqui: hospital privado, fila pela ordem de chegada nas urgências (o que também leva a crer que quem não vá positivo tenha grande probabilidade de vir positivo), cerca de 50 euros pela consulta e 120 pelo teste. Se houver um P1, o teste é grátis. Os que conseguem um P1 são cada vez mais raros. Não se consegue atendimento, não se é tão facilmente elegível.

Subitamente, saber os nomes dos positivos cria esta revolta que os exemplos podem gerar por historiarmos a leviandade. Claro que não são todas as pessoas assim, são apenas aquelas de quem passamos a saber o nome, perto de nós, covardes, sem nos avisarem, fazendo com que fiquemos também em xeque, como feridos. Um pequeno golpe já no coração, que não consegue sequer acreditar. Bom seria que houvesse uma Nossa Senhora de Fátima que viesse aos berros explicar procedimentos a estas boas pessoas, porque a imprensa em peso não lhes serviu de solução.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)