O grito de liberdade do cabelo das mulheres negras

O que está no cimo das nossas cabeças pode dizer muito do que somos. Dá-nos autoestima, frustração, ódios e amores. Para a maioria das mulheres negras, o cabelo tornou-se a viagem de uma vida. Este é o mundo do cabelo crespo, das tranças e das extensões.

Já não é a primeira vez que Sara se olha ao espelho e não se sente bonita. “Até me custa dizer isto, mas eu só penso: ‘Que desfasada, o que é que te aconteceu? Vai alisar esse cabelo. Vai pôr umas extensões’.” A assistente de bordo alisou o cabelo pela primeira vez aos 16 anos, depois de muitas tentativas junto da mãe para ser igual às amigas, já com cabelo liso e brilhante há mais tempo. Quando desfrisou o cabelo sentiu que fazia parte do Mundo. “Até arranjei um namorado”, confidencia, entre risos. Desde cedo que as mulheres negras se habituaram a mudar a estrutura do próprio cabelo: as progenitoras ocupavam-se dos penteados quando eram crianças, mas a determinada altura só fazia sentido tê-lo de outra forma. Cabelo liso, suave, quase como seda: “Cresci nos anos 1990, as Barbies tinham todas o cabelo assim”.

Enquadrar num padrão de beleza, que muitos consideram ser o eurocêntrico, o da figura feminina com cabelo liso, fez sentido durante décadas para milhares de mulheres espalhadas pelos quatro cantos do Mundo. “É uma questão identitária, houve uma construção de um ideal, de que nós, mulheres negras, tínhamos de nos aproximar do modelo branco europeu. Daí o desfrisar o cabelo e o submeter desde muito cedo as raparigas a um processo doloroso”, explica Angella Graça, técnica superior de Recursos Humanos e presidente do Instituto da Mulher Negra em Portugal (INMUNE).

“O meu cabelo é o meu cabelo e faz parte da pessoa que eu sou”, conta Angella Graça, técnica superior de Recursos Humanos e presidente do Instituto da Mulher Negra
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Nos últimos anos, já não é bem assim. A valorização do cabelo natural, seja ele crespo, com caracóis ou trançado, cresceu e inspirou muitas a deixarem de lado os alisamentos químicos, as perucas e as extensões. “Começou a surgir uma vontade de deixarmos de fazer isto, porque o que é bonito aos olhos de uns, pode não ser bonito aos olhos de outros”, esclarece. Angella diz que o seu cabelo se emancipou aos 14 anos: nunca alisou, fez tranças e outros penteados na adolescência, até que começou a usá-lo completamente solto. “Viesse quem viesse tecer comentários, o meu cabelo é o meu cabelo e faz parte da pessoa que eu sou. Não vou estar a mudá-lo”, diz hoje, com 31 anos.

Para outras mulheres, a mudança veio mais tarde e por fruto do ocaso. Carla Moura e Telma Gonçalves são o rosto por detrás do projeto “We Love Carapinha”, que promove a valorização do cabelo crespo em todas as suas formas. As duas amigas fizeram o processo da transição capilar ao mesmo tempo, sem que tivessem combinado previamente. Por diferentes razões decidiram pôr um fim ao alisamento químico que faziam desde a infância (Telma desfrisou pela primeira vez aos quatro anos) e a adolescência (Carla aos 16 anos). “O meu cabelo estava danificado e afetava a minha autoestima”, recorda Telma Gonçalves, de 34 anos. “Deixei de alisar porque, quando fiquei noiva em 2014, pensei que gostaria de fazer um penteado para o meu casamento. Comecei a procurar tutoriais e foi assim que encontrei vários vídeos sobre o cabelo crespo natural”, revela Carla Moura, assistente de bordo, 35 anos.

“O meu cabelo [alisado] afetava a minha autoestima”, garante Telma Gonçalves, assistente de backoffice
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

A jornada conjunta fez com que ambas percebessem a quantidade de mitos que existem sobre o cabelo natural das mulheres negras. “Difícil de pentear, difícil de lavar, difícil de controlar, não é apresentável”, eram alguns dos argumentos que as duas amigas preservavam como dogmas durante anos, alimentados ao longo de gerações de mulheres, para quem o alisamento era visto como um “tratamento” para o cabelo. “Estas ideias são o resultado de uma comparação com aquele que era visto até recentemente como o único padrão estético aceitável ou desejável: o eurocêntrico”, opina Carla.

O “We Love Carapinha” quer demonstrar o contrário: o cabelo crespo é tão bonito e aceitável como o cabelo liso. Carla e Telma fazem vídeos e escrevem textos sobre esta realidade desde 2015, altura em que o tema era muito debatido no Brasil e nos Estados Unidos, mas pouco em Portugal. “É conveniente contextualizar que se perdeu muito conhecimento ao longo de vários séculos, sobre como cuidar adequadamente de cabelos crespos”, justificam. Para as duas mulheres, os ensinamentos sobre o afro foram-se perdendo, pelo que as novas gerações devem recuperar as mágoas de um passado doloroso, que começa no cabelo, mas que pode terminar na deterioração do amor-próprio. “Queremos ajudar a erradicar estas ideias deturpadas”, aponta Telma, assistente de backoffice.

Os comentários dos outros

Conceição Queiroz entra regularmente na casa de milhares de portugueses através da televisão. A jornalista da TVI está consciente de que tem uma “espécie de imagem de marca”, o cabelo. “No início esticava, mas nas férias deixava natural. Pouco depois, percebi que não havia problema algum em assumir o cabelo crespo”, afirma à “Notícias Magazine”. Foi até no local de trabalho que a incentivaram a usá-lo daquela forma. Alguns colegas chegaram mesmo a dizer-lhe que devia usar sempre o cabelo natural e apostar no que tinha de “diferenciador”. Assim foi. “A maioria [dos telespectadores] habituou-se à minha imagem. São muitos anos”, refere.

Porém, se os comentários dos outros servem, por vezes, para enaltecer as características pessoais e até físicas, as observações constantes podem tornar-se desconfortáveis. “Praticamente todos os dias ouço comentários. Não me incomodam. Dispensava, mas, já que se verificam, lido com a situação”, assinala a jornalista. Por seu lado, Angella Graça também é veterana nesses episódios. “Houve um dia em que uma colega passou à porta do meu gabinete e perguntou: ‘O que é que se passa com o teu cabelo?’.” A presidente do INMUNE ironizou, dizendo que o cabelo tem “personalidade jurídica” e que, por vezes, “acorda mais nervoso”.

“A maioria [dos telespectadores] habituou-se à minha imagem. São muitos anos”, afirma Conceição Queiroz, jornalista
(Foto: Jorge Amaral/Global Imagens)

Apesar de desvalorizar os comentários, sabe que nem todas as mulheres conseguem fazê-lo. “Eu olho e sei que o padrão dela [da colega] não é o meu, mas estas questões podem ter um efeito nocivo em idades mais prematuras”, reconhece, lembrando o dia em que soube que chamaram “esfregona” à afilhada na escola devido ao cabelo natural. “É de uma grande violência.”

Os sítios onde as mulheres negras se movem todos os dias, seja um local de trabalho ou um qualquer serviço, são muitas vezes palco de comentários, conscientes ou inconscientes, que provocam momentos infelizes, que nenhuma delas quer ou merece receber. E tudo começa na cabeça. “Tive de reduzir o volume do meu cabelo várias vezes para conseguir tirar uma foto apropriada [para a renovação do cartão de cidadão], uma vez que os próprios funcionários o descreveram como ‘um problema’ por ter demasiado volume”, conta Telma Gonçalves. O que leva a outro ponto: pode o cabelo ser um instrumento de discriminação?

Carla Moura, do projeto “We Love Carapinha”, realça que “a dita discriminação se faz presente através de micro agressões disfarçadas de piadas, curiosidades, opiniões ou pareceres não solicitados”. E dá um exemplo: quando foi renovar o passaporte, um dos funcionários fez “comentários desagradáveis e em tom de reprovação”. “Acabei por ter de voltar ao local para tirar uma nova fotografia com o cabelo preso”, especifica. Algumas das mulheres ouvidas pela NM para esta reportagem confirmam existir casos de pessoas que são incentivadas a alisar o cabelo por causa de um emprego. Mónica Santos, proprietária de uma loja de produtos para cabelo natural no Lumiar, em Lisboa, e coordenadora do grupo “Crespas e Cacheadas de Portugal” no Facebook admite ter clientes que amarram ou fazem tranças para “controlar” o cabelo afro no trabalho.

“Tive de prender o cabelo para tirar a foto do cartão do cidadão”, conta Carla Moura, assistente de bordo
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Sara, assistente de bordo, nunca se sentiu confortável o suficiente para usar o cabelo natural na área da aviação. “Nunca fui obrigada, mas senti uma grande necessidade de ter o cabelo liso” ao trabalhar em Portugal, confessa. Depois de passar uma temporada na Arábia Saudita, em 2018, teve oportunidade de ver como eram os “cabelos” por lá. E ficou surpreendida. “Não sei se era por ter de usar um chapéu ou um lenço, mas senti que podia mudar”, enfatiza. Alguns manuais das companhias aéreas da Arábia Saudita tinham páginas dedicadas aos vários tipos de cabelo e as mulheres negras estavam representadas.

Algum tempo depois de estar no Médio Oriente, Sara fez a transição capilar além-fronteiras: cortou o cabelo muito curto, porque estava danificado e tinha de crescer de forma saudável. Apanhou inclusive um susto numa das muitas avaliações da empresa aos colaboradores. “A pessoa que me ia avaliar disse-me: ‘Tira o chapéu para vermos como está o teu cabelo’. Eu só pensei: ‘Vou receber uma represália, porque estou de cabelo curto e natural, ainda por cima, meio afro’.” Mas a superiora encarou com normalidade o corte de cabelo e disse que estava tudo bem.

De regresso a Portugal, os manuais das assistentes de bordo tinham apenas um padrão, um velho conhecido de Sara: o cabelo liso. Quando começou a pandemia da covid-19, deixou temporariamente de voar e as extensões ficaram guardadas. “Senti um alívio por poder tirá-las.”

A liberdade de usar o que quiserem

Amália Augusto tem um salão de beleza há 19 anos, dedicado especialmente às mulheres negras. O “Amália Beauty”, no Porto, além de funcionar como uma loja de produtos para o cabelo, tem também um cabeleireiro. No estabelecimento reina a diversidade: há quem faça tranças, quem aposte no natural e quem use cabelo humano vindo da Índia. “O cabelo é muito importante numa mulher, dá beleza e modifica totalmente uma pessoa. As mulheres investem mais no cabelo do que na própria roupa”, realça a proprietária, de 50 anos, à NM.

Os salões de beleza são, por norma, o encontro dos amores e frustrações de quem quer mudar ou melhorar algo no aspeto físico. Amália, nascida na Guiné-Bissau, faz regularmente viagens à Índia – interrompeu devido à pandemia – para adquirir cabelo e depois vendê-lo na loja. Comercializa de todo o tipo: curto, médio, comprido, liso, ondulado, afro e até loiro. Os preços para um cliente podem custar até um euro por grama, ou seja, um cabelo com 300 gramas pode chegar aos 300 euros. Mas o valor varia consoante o tamanho e a tonalidade. E porquê da Índia? “Tem mais qualidade”, responde a cabeleireira.

Por outro lado, Amália vende também produtos para as mulheres fazerem a transição capilar: passar do cabelo liso para o natural. A proprietária do “Amália Beauty” constata que a tendência está a aumentar e que “muita gente quer ficar com os caracóis naturais”, até porque “as mulheres negras com o cabelo bonito fazem parar o trânsito”, exclama, orgulhosa.

Para Chiara Pussetti, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL), isso só vem demonstrar que, para algumas mulheres negras, é “mais uma questão do estilo do que uma não aceitação do próprio cabelo”. A antropóloga considera que é “simplista” considerar que uma mulher negra por alisar o cabelo, usar perucas ou extensões está a aderir a um “padrão eurocêntrico” e que quando outra usa tranças ou afro é uma “forma de resistência”. “É tentar forçar uma dicotomia que nem sempre existe”, defende.

“O cabelo é muito importante numa mulher. As mulheres investem mais no cabelo do que na própria roupa”, reconhece Amália Augusto, comerciante
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Após falar com várias mulheres negras para um projeto chamado “Excel: Em busca da excelência – biotecnologias, melhoramento e capital corpóreo em Portugal”, Chiara Pussetti concluiu que existe uma “descolonização da prática do alisamento dos cabelos”. Isto é, as mulheres não o fazem porque o “cabelo é um problema”, mas por uma “imitação de modelos de beleza”, como as cantoras Rihanna e Beyoncé ou a top model Naomi Campbell. “É o mesmo que dizer que existe uma valorização do cabelo loiro. Claro que existe. Muitas mais mulheres fazem madeixas loiras ou claras do que as que pintam de escuro”, observa a antropóloga. Um valor estético com História tornou-se num valor para cada um de nós, mesmo que inconscientemente.

O tema do cabelo pode ser fraturante. Que o diga Mónica Santos. Quando cocriou o grupo “Crespas e Cacheadas de Portugal” no Facebook em 2013, os produtos para cabelos naturais não eram abundantes no mercado. No entanto, ao longo dos anos, a situação mudou, a oferta aumentou e a página na rede social quis ir mais fundo. “Começámos a pôr informação sobre empoderamento negro, porque consideramos que o cabelo estava ligado à aceitação”, salienta. Porém, nem todas as mulheres reagiram bem. “Era um tema sensível porque algumas mulheres negras não viam o cabelo como uma afirmação da cultura africana e do negro. Depois tínhamos outras pessoas no grupo, que não eram negras, e aquilo não fazia sentido para elas.” Os conteúdos com este teor são, por isso, raros no grupo para não criar animosidades.

“Para as mulheres negras, o cabelo com mais caracol, mais aberto, é bonito. Mas o crespo, mais fechado, é ruim”, explica Mónica Santos, comerciante
(Foto: Jorge Amaral/Global Imagens)

Com uma loja em Lisboa, Mónica ainda vê muitas mulheres negras que não aceitam o seu próprio cabelo. “Para elas, o cabelo com mais caracol, mais aberto, é bonito. Mas o crespo, mais fechado, é ruim. Chegam aqui e querem mudar a estrutura do cabelo”, relata. “Eu acredito que tem muito a ver com o passado”, acrescenta. Uma parte das que usam cabelo natural quer inspirar outras a orgulharem-se das suas cabeças, mas sem se coibir de falar das dificuldades. “É preciso dizer que é difícil de tratar. Já levei horas a desembaraçá-lo”, reconhece Conceição Queiroz. “Eu gosto do meu cabelo natural, só que não é maleável. Eu aliso porque posso tratá-lo de outra maneira e ter um aspeto mais adulto”, confessa Sara.

A emancipação do cabelo, usá-lo como se bem entender, tornou-se importante para várias gerações de mulheres negras, cujas cabeças foram desde sempre definidas pelos ideais de beleza que outros criaram para si. Com extensões, liso, crespo, tranças ou perucas, cada uma irá definir que coroa carrega. Mesmo tendo a plena consciência de que o cabelo nunca deixará de ser uma questão na vida delas.

Lá fora

Califórnia na frente
A senadora Holly Mitchell do estado da Califórnia, nos Estados Unidos, redigiu a “Crown Act”, uma lei que proíbe a discriminação com base no cabelo natural num local de trabalho ou numa escola, por exemplo. O documento foi aprovado pela primeira vez no verão de 2019 na Califórnia, mas já consta também da legislação de Nova Iorque, Nova Jérsia e Virgínia. Outros estados americanos estão tentar aprovar a lei.

Aulas no Canadá
Nancy Falaise, dona de um salão de beleza em Montreal, no Canadá, dedica mensalmente uma manhã de domingo a ensinar jovens raparigas a tratar o cabelo natural. A iniciativa foi filmada pela cineasta Aïcha Diop para a CBC, canal de televisão pública no Canadá, cujo vídeo alcançou milhões de visualizações no YouTube. Falaise recebeu mensagens de mulheres de várias idades após a divulgação do documentário e espera agora replicar o workshop a outros países, assim que a pandemia permita.

Celebrar no cinema
O filme “Hair Love”, que retrata a história de um pai negro a pentear a filha pela primeira vez, ganhou um Oscar de Melhor Curta de Animação em 2020. A curta foi considerada uma celebração dos cabelos naturais. No discurso da cerimónia dos Oscars, o realizador Matthew A. Cherry disse que o objetivo do filme era “aumentar a representação na animação” e “normalizar o cabelo negro”.