O fruto proibido é o mais apetecido. Porquê?

"Adão e Eva", gravura de Albrecht Dürer (1504)

Vontade de desafiar as regras, adrenalina gerada pelo risco e até défices de várias ordens ajudam a explicar esta propensão. E há que desconstruir tudo isso.

Fernando Rocha lembra-se bem do conselho que lhe deram quando há 15 anos, mais coisa menos coisa, foi convidado a integrar o elenco do programa de humor “Levanta-te e Ri”, da SIC. “Disseram-me que não devia começar a minha carreira a dizer palavrões na televisão.” Ele fez ouvidos moucos. Insistiu que não abdicava do estilo que haveria de o caracterizar. Mesmo que para isso tivesse de entrar em cena só a partir das duas da manhã, como acabou por acontecer. “Sempre tive um fascínio pelo que é proibido.” Ainda hoje, durante os espetáculos, não resiste a desafiar as convenções, mesmo que para isso roce a provocação. “Quando estou em palco, se digo um palavrão e vejo que há na plateia alguma pessoa mais pudica ou que faz um ar mais nojento, pois a partir daí não vou tirar os olhos daquela pessoa e vou dizer o triplo dos palavrões”, partilha, divertido.

A predileção pelo interdito tem, para ele, pelo menos duas explicações. “Detesto ser o carneirinho que faz tudo como mandam as regras”, começa por apontar. Mas não é só. “Quando me dizem que não posso fazer algo é como se me ligassem o botão da curiosidade. Se me dizem que não posso entrar num determinado quarto, a minha cabeça vai começar a pensar: ‘Mas não entro naquele quarto porquê?’ Já sei que vou entrar, que tenho de entrar, senão aquilo não me vai sair da cabeça.”

O humorista, conhecido por ser avesso ao socialmente correto, é só um exemplo mediático de uma propensão que é inerente à condição humana. Ao ponto de a sabedoria popular a ter condensado numa máxima assaz reproduzida: a de que o fruto proibido é o mais apetecido. A ideia tem barbas, milhares de anos. No mínimo tantos quantos os do livro do Génesis, da Bíblia, em que se retrata a forma como Adão e Eva, uma vez no Jardim do Éden, não resistiram a provar o fruto da única árvore em que nunca poderiam tocar. Mas o conceito atravessa a História. “É uma questão transversal ao desenvolvimento humano. Desde sempre temos um grande fascínio pela testagem dos limites”, resume Lígia Ferreira Gomes, psicóloga clínica.

A especialista lembra que esta propensão se faz sentir ainda em criança, quando “tudo é novo e fascinante” e há uma tentação para desafiar o que é imposto pelos pais. Acentua-se depois com particular incidência na adolescência. “É a fase em que esta questão se torna mais patente. Há quase um comportamento que a adolescência impõe, que passa muito por contrariar os pais e procurar o instinto da independência e a afirmação do eu.” Tânia Teixeira, também psicóloga, dá o exemplo das pequenas fugas dos adolescentes, que justifica com “a necessidade da novidade, do desconhecido”. A rebeldia encerra uma dose de perigo, mas, ressalva Lígia Ferreira Gomes, pode também redundar em algo construtivo. “Importa salientar que este comportamento de ir contra as proibições também ajuda a fomentar a imaginação dos miúdos.”

A adrenalina que se torna viciante

Com o fim da adolescência e o início da vida adulta, cresce a responsabilidade. A noção das consequências de determinados atos também. Daí que possa parecer mais simples filtrar determinadas atitudes e distanciarmo-nos do perigo. Mas a questão está longe de ser tão linear. Desde logo porque, seja em que fase da vida for, há fatores que continuam a impelir o ser humano para o terreno do proibido, qual íman. Um deles é a adrenalina. “Tem tudo a ver com a necessidade de o ser humano correr riscos. Há mecanismos fisiológicos que, perante o risco, geram uma descarga de adrenalina que por sua vez se traduz numa sensação agradável”, enuncia Lígia Ferreira Gomes. A psicóloga clínica dá o exemplo da traição na relação conjugal, baseando-se em casos que volta a meia lhe chegam ao consultório. “Não é a primeira vez que em conversa tenho pessoas a dizerem-me que, mais do que a vontade de ir contra o conforto e a estabilidade familiar, o fazem pela adrenalina deste jogo de poderem ser apanhados. Mesmo que depois haja um arrependimento e não se sintam bem com isso.” Só que este frenesim pode tornar-se um vício. O jogo é um bom exemplo disso. “Há uma descarga de adrenalina que acaba por viciar a pessoa naquilo.”

Mas a queda para o fruto proibido não é igual em todos. Características como os traços de personalidade ou o nível de satisfação que experimentamos no dia a dia podem ser determinantes para ditar a propensão para o que é interdito. Tânia Teixeira destaca outras condicionantes, realçando a forte relação entre esta questão e as experiências passadas. “Também tem muito a ver com a nossa formação. Há pessoas que, por força da educação, se tornam mais aventureiras, e outras que têm mais dificuldade em apostar no incerto.” Sendo que uma educação rígida não é sinónimo de uma aversão ao proibido. Pode até suscitar o efeito oposto. “O facto de existir uma grande pressão durante o crescimento gera muitas vezes uma necessidade de afirmação da liberdade da pessoa. Há uma necessidade de se fazer mostrar.”

Eventuais défices – de afetos, de atenção, até de situações potenciadoras de satisfação e gratificação pessoais – são outro catalisador possível. E mesmo a questão da ansiedade. “Pessoas com níveis de ansiedade mais altos têm tendência para ser pessoas com comportamentos mais compulsivos. O facto de terem uma gestão emocional mais desequilibrada repercute-se em dados comportamentos que podem ter precisamente a ver com esta questão do proibido”, sublinha Lígia Ferreira Gomes.

Desmistificar, desmistificar

E afinal, quando a sedução pelo proibido se torna uma infindável fonte de problemas, há forma de a contrariar? Há. Curiosamente, Diogo Soares, psicólogo, defende que um bom ponto de partida pode ser a desmistificação da necessidade… de lutar contra ela. “É preciso desmistificar a noção de combate. Há que naturalizar as vontades, os desejos e os impulsos. Humanizar a situação. Depois, há que aprofundar quem sou eu naquilo que vou decidir e o que é que pode acontecer mediante isso. Imaginar a médio e longo prazo as consequências, perceber o que a minha decisão pode trazer à forma como vejo o Mundo, perceber de onde vem isso, eventualmente estabelecer um paralelismo entre aquele desejo e os que ficaram por resolver um bocadinho lá atrás.” Em suma, não se focar no problema mas na solução.

Educar para a inteligência emocional também é importante. Diogo Soares especifica. “É muito fácil distinguir entre uma coisa boa e uma coisa má. Mais difícil é entre duas coisas boas. O fruto proibido gera uma grande cisão entre duas coisas boas. A grande dificuldade está em decidir. Daí que seja importante promover desde cedo a ideia de termos de tomar opções, sabendo que outras ficarão sempre de fora. Mesmo que ambas sejam boas.” Mais uma vez, desmistificar. Neste caso, a própria vontade. “Não há mal nenhum em nos apetecer determinadas coisas. Temos é de tomar decisões e ser felizes com isso. É muito importante na construção da nossa personalidade possuirmos uma base de valores universais e de valores relativos, que nos permita organizar tudo o que se nos apresenta e a partir daí tomar uma decisão.”

Quando a queda para o interdito é uma doença

Se esta tendência para o proscrito é frequentemente comportamental, também pode ser bem mais do que isso. Rui Araújo, neurologista do Centro Hospitalar de São João, no Porto, dá conta disso mesmo. “Na neurologia temos várias doenças que se caracterizam por perturbação de controlo de impulsos. Isso pode ocorrer por destruição ou funcionamento errado de certos neurónios cuja função é modular e inibir certos comportamentos. O doente torna-se incapaz de deixar de fazer algo, passando a ter uma atração irresistível ou por comida, ou por doces, ou pelo jogo, ou mesmo por questões relacionadas com a sexualidade. Acaba por haver uma tendência para comportamentos que dão prazer a curto prazo.” Rui Araújo dá o exemplo das demências, em que existe um compromisso do lobo frontal, que inibe certo tipo de conduta. “Há determinados instintos que antes davam jeito, até para a reprodução da espécie, e que depois foram sendo domesticados por novas estruturas cerebrais que apareceram e que foram refreando estes comportamentos automáticos.” O clínico refere ainda o exemplo dos doentes de Parkinson. “Como a medicação interfere com a dopamina, a pessoa fica mais atreita a este tipo de atuação. Procura a gratificação pessoal muito rápida.” Neste caso em concreto, no entanto, há solução. “Ou gerindo essa própria medicação, ou introduzindo outra.”