O extraordinário mundo dos negacionistas

Existem fortes forças psicológicas – incluindo alguns vieses cognitivos – que nos ajudam a ver apenas o que desejamos (Ilustração: Manuel Granja)

Acreditam em factos alternativos mirabolantes e em cabalas mundiais. E descobrem essas “verdades” em fóruns online, grupos de Facebook ou canais de YouTube que não são controlados por aqueles que os querem enganar. Quem são estes negacionistas e conspiracionistas? E como falar com eles?

Durante o mês de abril, só no Reino Unido, foram reportados mais de 50 ataques, quase sempre incêndios, em torres de telecomunicações por todo o país. Além das investidas contra as estruturas físicas, houve ainda vários relatos de técnicos agredidos verbalmente durante trabalhos de manutenção das torres. Com alguma perplexidade, as autoridades cedo perceberam que estas investidas estavam relacionadas com uma teoria da conspiração que já tinha começado a ganhar forma nas redes sociais no início do ano: que foram as redes móveis de quinta geração (5G) que causaram o aparecimento da pandemia de covid-19 e que estavam a acelerar a propagação do surto.

Por bizarra que a teoria pareça, não é um caso isolado. Os negacionistas – pessoas que contestam uma realidade verificável e rejeitam conceitos incontestáveis e apoiados pelo consenso científico – e os conspiracionistas – indivíduos que alegam que há uma manipulação alargada para esconder uma verdade – estão por todo o lado e há-os para todos os gostos: os que acreditam que a Terra é plana, os que insistem que as alterações climáticas são uma invenção, os que alegam que os rastos dos aviões são químicos que os governos despejam sobre as populações para as controlar, os que insistem que as vacinas são prejudiciais e um meio para nos inserir microchips ou aqueles que defendem que o Holocausto nunca aconteceu.

“Há crenças negacionistas sustentadas tanto por pessoas de Esquerda como de Direita”
Lee McIntyre, investigador universitário

Não há nada que suporte qualquer uma destas teorias e há centenas de evidências capazes de as desmentir. Acontece, e é por isso que este é um problema difícil, que não se convence alguém que não acredita nos factos dando-lhe mais factos. “É importante lembrar que a negação da ciência não tem que ver com a argumentação racional. Se fosse, fornecer evidências seria suficiente para mudar a opinião dos negacionistas e conspiracionistas”, defende Lee McIntyre, investigador no Centro para a Filosofia e História da Ciência da Universidade de Boston, professor de Ética na Harvard Extension School e autor de vários livros, como “The scientific attitude” (A atitude científica – tradução livre, sem edição em português) que se tem dedicado a pensar e investigar sobre pseudociência e conspiracionistas. “O negacionista conhece os ‘factos’, mas simplesmente recusa-se a acreditar neles. Porquê? Porque interferem com outras coisas em que deseja acreditar, entram em conflito com a sua identidade, ou porque não confia nas pessoas que lhes fornecem esses factos.”

Muito se tem discutido se este fenómeno é político ou individual. Mas não há uma resposta única: algumas alegações negacionistas são influenciadas pela política, outras não. “Um exemplo óbvio de influência política é a negação das alterações climáticas. Mas é importante lembrar que o tema é político, na medida em que foi politizado por pessoas com interesses em jogo, que querem criar dúvidas por meio da desinformação”, considera Lee McIntyre. Existem outros exemplos em que não parece haver qualquer politização. “Para ser mais preciso, há crenças negacionistas sustentadas tanto por pessoas de Esquerda como de Direita”, garante o investigador. E esse parece ser o caso do movimento antivacinas nos Estados Unidos. “Os últimos números mostram que o movimento é constituído quase em igual número por conservadores e liberais, apesar de os motivos de uns e outros serem diferentes.”

Um clima de desconfiança global

Vários grupos de psicologia social que investigam o tema têm identificado alguns fatores sociais envolvidos. “Muitos dos negacionistas e conspiracionistas são pessoas que estão numa situação de isolamento social e desconfiam da autoridade, dos governos e da sociedade em geral. Encontram nestes movimentos o seu grupo, a sua família e a sua tribo”, sustenta Diana Barbosa, bióloga, comunicadora de ciência e atual presidente da Comcept (Comunidade Céptica Portuguesa), uma organização que promove o uso do pensamento crítico e racional, com apoio no método científico.

Existem fortes forças psicológicas – incluindo alguns vieses cognitivos – que nos ajudam a ver apenas o que desejamos. “O mais generalizado, e a que todos estamos sujeitos, é o viés da confirmação: é mais fácil aceitarmos uma alegação que vai ao encontro daquilo que acreditamos, pensamos saber ou sentimos, do que algo que contrarie a nossa perceção”, explica. Acontece que as redes sociais alimentam mais este desvio, ao criarem bolhas em que o algoritmo mostra ou sugere aquilo que já sabe que são os interesses do utilizador. “Assim, há um efeito de feedback positivo que vai reforçando os preconceitos e as crenças que já temos.”

“O mais importante é explicar às pessoas como é que a ciência funciona”

Para a comunicadora de ciência, não é novidade que existam indivíduos com crenças estranhas, mas as proporções que o fenómeno hoje tomou são preocupantes. “Sempre houve pequenos grupos com teorias conspirativas sobre temas específicos como os óvnis, a ida à Lua ou o assassinato do John F. Kennedy. Mas, nos últimos anos, as redes sociais potenciam o encontro destas pessoas e passamos a ter movimentos globais com consequências muito perigosas.”

Diana Barbosa, bióloga, comunicadora de ciência

Um dos exemplos mais recentes, além dos movimentos antivacinação e negacionistas das alterações climáticas ou das várias formas de negacionismo da covid-19, é o movimento QAnon. Os seus apoiantes acreditam que Donald Trump está a travar uma guerra secreta contra um “Estado profundo” – uma cabala de membros do Partido Democrata e estrelas de Hollywood, envolvidos numa rede de pedofilia e tráfico sexual. A teoria foi espalhada por elementos da Direita americana no Twitter e no fórum 4chan e, em agosto, segundo o jornal inglês “The Guardian”, a rede envolvia já cerca de quatro milhões de membros a nível mundial.

As teorias negacionistas e conspiracionistas encontram terreno fértil num certo clima de desconfiança e antissistema que se instalou. Os dicionários britânicos Oxford elegeram “pós-verdade” como a palavra do ano 2016. A definição alude às “circunstâncias em que os factos objetivos têm menos influência na formação da opinião pública do que os apelos emocionais e as opiniões pessoais”. E uma das circunstâncias que permite isso é o facto de muitos cidadãos terem deixado de se sentir apoiados pelas instituições tradicionais, encarando-as agora como suas inimigas. Segundo Tom Nichols, especialista do Senado americano em questões de estratégia e autor do livro “A morte da competência”, também o populismo tem um papel nesta teia: para serem eleitos e governarem, os líderes procuram estabelecer um vínculo emocional com os eleitores, o que levou as pessoas a acreditarem que ter direitos políticos iguais significa que a opinião do cidadão comum vale tanto como a de um especialista.

Neste ambiente, feito de apelos sentimentais e opiniões pessoais, os factos são pouco importantes. A frase “é a minha opinião” tornou-se um ponto final parágrafo que remata qualquer conversa. A questão, salienta Tom Nichols, não é as pessoas não saberem – afinal, ninguém pode ser especialista em tudo –, a questão é que rejeitar a opinião dos especialistas equivale agora a uma proclamação de autonomia de que muitos se orgulham. A competência e o saber dos outros são encarados não só com desconfiança mas também com raiva, e muitas pessoas acusam especialistas de estar errados, não com base no que eles defendem, mas com base no facto, precisamente, de serem especialistas.

Como falar com um negacionista?

Por estas razões, no contacto com os negacionistas, mais do que debitar factos é importante explicar os métodos. “Saber ou não saber os factos científicos é o menos relevante, o mais importante é explicar às pessoas como é que a ciência funciona, como avança, o que é o consenso científico”, sublinha Diana Barbosa. E estes últimos meses de pandemia, acredita, têm sido apesar de tudo bons para isso: “Estamos a assistir à ciência a funcionar quase em tempo real. O público está a ver o que geralmente acontece apenas nos laboratórios, podendo perceber como os estudos vão permitindo que se mudem as recomendações, como aconteceu com a máscara. E isso é a ciência a funcionar”.

Por outro lado, vários estudos mostram que a regra essencial sobre como falar com um negacionista é precisamente essa: falar com ele. E isto é válido para todos, mas sobretudo para cientistas e divulgadores de ciência. “Os cientistas não têm qualquer responsabilidade direta pelo facto de as pessoas acreditarem em teorias da conspiração, mas têm a responsabilidade de não dizer ‘não vale a pena conversar com essas pessoas’ e ir embora. Esta é a pior coisa que se pode fazer”, frisa Lee McIntyre.

“Os especialistas em determinadas áreas científicas devem comunicar as suas conclusões e evidências”

O que a investigação tem mostrado é que ignorar alegações erradas que são feitas no espaço público, deixando-as sem contraditório, não é uma boa política. O psicólogo Philipp Schmid, investigador da Universidade de Erfurt, na Alemanha, e coautor do estudo “Estratégias eficazes para refutar a negação da ciência em discussões públicas”, publicado o ano passado na revista científica “Nature Human Behaviour”, insiste nisso mesmo: vale a pena desmascarar e dialogar, e há duas formas de fazê-lo. “Por um lado, os especialistas em determinadas áreas científicas devem comunicar as suas conclusões e evidências. Por outro, os especialistas em comunicação de ciência devem desmascarar as técnicas retóricas que estas pessoas usam. Tanto uma coisa como outra atenuam os danos das mensagens negacionistas.”

Philipp Schmid, psicólogo e investigador universitário

Esta última estratégia, segundo o investigador, tem uma grande vantagem. Pode ser aplicada a qualquer forma de negação da ciência, já que todas usam as mesmas técnicas retóricas: citar falsos especialistas, usar teorias da conspiração, usar expectativas impossíveis, seletividade e deturpação. “Qualquer um que esteja familiarizado com estas técnicas pode refutar a maioria dos negacionistas, independentemente do domínio científico específico.” E isto é importante, realça o investigador, porque nem todos aqueles que negam em determinado momento um facto científico são negacionistas convictos. Muitos estão apenas a ter uma reação emocional ao medo e à incerteza e a boa informação pode desviá-los desse caminho.

Por fim, iniciado um diálogo, a melhor forma de falar com o negacionista não parece ser muito diferente da melhor forma de falar com qualquer outra pessoa: através de um envolvimento humano direto e genuíno. “É necessário tentar construir um relacionamento com a pessoa, ouvir as suas razões, construir alguma confiança e depois começar a fazer perguntas”, aconselha Lee McIntyre. “Afinal, é mais fácil para um terraplanista pensar que todos os pilotos comerciais estão envolvidos numa conspiração se nunca conheceu nenhum piloto comercial.”