O enigma do irmão do meio

A partir da esquerda: Manuel, o irmão do meio; a mãe, Francisca Guimarães; José Maria, o mais novo; e Sebastião, o primogénito (Foto: Igor Martins/Global Imagens)

Diz a sabedoria popular que o filho mais velho é o responsável, o mais novo o divertido, e que o do meio pode ser o mais imprevisível dos irmãos. Será mesmo assim?

Não deram (ainda) lugar a um conto infantojuvenil, mas as aventuras dos três filhos de Francisca Guimarães – Sebastião de nove anos, Manuel de oito e José Maria com quatro – poderiam ser transcritas para o papel para mais tarde recordar. Juntos, na companhia dos pais, já percorreram de autocaravana vários países da Europa e atravessaram Portugal, saltando em cascatas e adormecendo a ver estrelas. São histórias dignas de livro, até porque as personagens parecem corresponder aos estereótipos associados à ordem de nascimento. Sebastião, o primogénito, é, na descrição da mãe, o “mais responsável e também o mais complexo dos três”. Manuel é o “independente” e aquele com que Francisca assume preocupar-se menos, “pela personalidade fácil que tem”. Já o mais novo, Zé Maria para a família e amigos, é o “eterno bebé e o mais meiguinho” dos irmãos.

De fisionomia nórdica e um temperamento que alterna rapidamente entre o sobrolho franzido e a gargalhada estridente, a pequena Madalena é, à semelhança de Zé Maria, o centro das atenções da família de Inês Camaño Garcia. “É a autêntica baby boss”, revela a também mãe de Dinis, de dez anos, e Sebastião, de oito. A sabedoria popular tem prova viva em casa de Inês onde Dinis, o mais velho, é descrito como “doce, delicado e extremamente preocupado com o que o rodeia”, e Sebastião, o enigmático filho do meio, é considerado o mais tímido e introspetivo dos três filhos.

Descrições que, de acordo com Magda Gomes Dias, especialista em parentalidade e educação positivas e autora do livro “Pára de Chatear a Tua Irmã e Deixa o Teu Irmão em Paz!”, dedicado às relações fraternas, são coincidentes com a dinâmica de grande parte das famílias. Magda recorre a uma metáfora para explicar a influência da ordem do nascimento na personalidade: “Por norma, o filho mais velho é o que é feito à luz dos pais, partilha os seus valores e é eventualmente o sucessor. Quando nasce o segundo vai à ‘biblioteca’ e já lá não encontra os livros do ‘certinho’ ou do ‘responsável’ e por isso pega noutros livros, como o do ‘cómico’ ou do ‘popular’. Quando nasce o terceiro, que é naturalmente o fator novidade, o segundo, que era até então o último, sofre grandes transformações”.

“O filho do meio é o que mais sofre silenciosamente, mas pode muitas vezes transformar-se num excelente mediador dentro e fora das relações familiares”
Magda Gomes Dias
Especialista em parentalidade e educação positivas

Visão ligeiramente diferente tem a psicóloga clínica Sara Barbot, para quem a ordem do nascimento não tem qualquer impacto per si na formação da personalidade. A também diretora da Clínica de Saúde Infantil e Familiar do Porto defende que “a dinâmica familiar estabelecida, nomeadamente o lugar e funções atribuídos a cada membro familiar, é que podem interferir de modo significativo com a formação e funcionamento de cada um”, colocando assim nas expectativas dos pais grande parte da responsabilidade pela criação destes estereótipos.

O simpático, o sanduíche e o “chuchu”

Na família alargada de Francisca Guimarães, é Sebastião, o mais velho, quem faz as delícias. “É socialmente o mais adaptado dos três: dá beijinhos ao cumprimentar, é simpático e gosta muito de agradar”, conta a mãe, que já perdeu a conta aos “muito bons” e às referencias ao facto de o filho ser “extremamente bom aluno”.

Mas nem tudo são rosas. Na verdade, Sebastião revela também uma personalidade “muito insegura e desestabilizadora, sobretudo quando se trata de obedecer a regras simples como ir jantar ou tomar banho”. Já Inês Camaño Garcia, ela própria a mais velha de cinco irmãos, não esconde ter um olhar mais atento ao seu primogénito, portador “de um grande conflito interior” motivado por alguns medos e por grandes causas como as preocupações ambientais.

Uma forma de encarar a vida que, para Inês, corresponde “a traços intrínsecos aos irmãos mais velhos”, mas onde Sara Barbot acrescenta um fator: os pais. De acordo com a psicóloga, por norma, os progenitores tendem a incutir, “muitas vezes sem que disso se apercebam”, uma responsabilidade acrescida ao filho mais velho. O risco, realça, é o do primogénito “desenvolver quadros de grande insegurança e ansiedade. Portanto, mais uma vez, essa eventual insegurança está mais ligada às relações que estabelece com os progenitores do que com os irmãos”.

O sorriso largo de Manuel não denuncia o que se preveria quanto à típica descrição dos irmãos do meio que, ainda de acordo com Sara Barbot, podem ser “os mais frágeis emocionalmente, pois nunca tiveram tempo exclusivo de investimento por parte dos pais e rapidamente deixam de ser o mais novo, ou seja, rapidamente deixam de ser o centro das atenções aquando do nascimento de outro bebé”.

E a verdade é que, “pelo feitio fácil e pelo facto de estar sempre feliz”, Francisca Guimarães escuta várias vezes conselhos familiares sobre a atenção que dedica a Manuel quando comparado ao tempo que dedica aos outros dois filhos: “A minha mãe, por exemplo, está-me sempre a dizer para ter cuidado, sobretudo quando crescer. O Manuel é um miúdo tão fácil que me preocupo menos”.

Apesar de concordar que o apelidado filho sanduíche – colocado entre as grandes demandas do primeiro e o fator novidade do terceiro – é “o que mais sofre silenciosamente”, Magda Gomes Dias acredita que, muitas vezes, o filho do meio se pode transformar num “excelente mediador dentro e fora das relações familiares”.

E Zé Maria? Ora “amua”, ora enche a família “de beijinhos irresistíveis”. É o “chuchu” da família. Assim tendem a ser os últimos dos irmãos. “São sedutores por natureza. Às vezes muito calmos, outras vezes mais difíceis mas, por norma, muito engraçados e sociáveis”, descreve Magda Gomes Dias, igualmente fundadora da Escola da Parentalidade e Educação Positivas.

Inês Camaño Garcia com os filhos Dinis, de dez anos, Madalena, de dois, e Sebastião, de oito
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Também Sara Barbot se sustenta em estudos científicos para explicar que “a experiência de relacionamento com irmãos no seio familiar serve quase de ‘prática’ para a vida social, pelas experiências relacionais que proporciona. Neste sentido, poderá contribuir para uma maior agilidade das competências sociais”.

A grande culpada pelos conflitos

São frases banais como “vamos ver quem é o primeiro a acabar a sopa” ou “o teu irmão é mais novo do que tu e já consegue apertar os atacadores” que, segundo Magda Gomes Dias, se tornam “os maiores culpados dos conflitos entre irmãos”. A especialista diz que a comparação é rececionada pela criança como “os meus pais não me aceitam porque o meu irmão é melhor do que eu”.

Sara Barbot prefere distinguir dois tipos de comparação: a interna, que “pressupõe necessariamente movimentos de identificação e diferenciação entre os irmãos e, portanto, é frequente e inevitável”; e a comparação externa, em que se “verbalizam comparações, muitas vezes relacionadas com o grau de competências de cada um, geralmente muitíssimo desfavoráveis e prejudiciais”. A seu ver, “cada irmão deve ser encarado pelos pais como um ser individual, sendo as analogias de todo indesejáveis”.

A chegada de Madalena, com uma diferença de oito e seis anos para os irmãos mais velhos, foi encarada com reticência por Dinis e Sebastião, que viram alteradas dinâmicas familiares. Com a filha constantemente ao colo, Inês Camaño Garcia conta que Madalena, apesar de já ter dois anos e meio, ainda é muito agarrada à mãe. “Não me pode ver a dar um carinho aos irmãos ou ao pai que vem logo ter comigo e meter-se no meio.” Uma situação que, embora os irmãos estejam a aprender a digerir, abre espaço a conflitos e ciúmes. “Até porque, como digo muitas vezes, a mãe é de todos.”

Com três rapazes de idades relativamente próximas entre si em casa, não são poucas as vezes em que Francisca Guimarães está “perto de perder a cabeça”, admite entre risos. “Ora se adoram, ora se odeiam, como bons irmãos que são.” Sebastião, o primogénito, é o mais provocador dos três filhos, ainda que Zé Maria, o mais novo, também responda “à letra”. “Santo só o Manel, o meu filho do meio, que não reage às provocações do irmão mais velho.”

Um quadro que Sara Barbot descreve como “normal e expectável numa relação que oscile entre a identificação/diferenciação e o amor/inveja” e que, na perspetiva de Magda Gomes Dias, requer tanto quanto possível “a menor interferência dos pais”. “Se um pai interferir vai, na cabeça dos filhos, tomar partido. Devemos antes aproveitar para ensinar gestão de conflitos: como falar, pedir, ser empático e autorregular-se.” Estratégias que parecem simples mas que são muitas vezes difíceis de implementar por parte dos pais que, regra geral, “querem agir perante todo e qualquer comportamento dos filhos”. Ainda assim, Sara Barbot alerta para “situações em que se identifica de forma persistente uma rivalidade pautada por hostilidade, agressividade e/ou rejeição face ao outro”. Situações que exigem uma atuação parental mais intensa.

Truques para educar irmãos felizes

Embora não exista uma poção mágica para que os irmãos se deem bem, Magda Gomes Dias sugere alguns truques que podem facilitar a vida aos pais e melhorar a dinâmica familiar.

Fazer cada filho sentir-se o mais amado é uma das estratégias que, de acordo com a especialista, melhor funciona. “Somos nós, pais, que temos de adaptar a forma como comunicamos o nosso amor aos filhos. Quando um filho se sente o mais amado, significa que recebe amor na justa medida e qualidade do que necessita. O que, em grande medida, diminuirá parte dos conflitos entre irmãos.”

“Em períodos de maior turbulência entre eles, aproveito para ir lanchar apenas com um dos meus filhos, ou vou buscá-lo mais cedo para comermos um gelado”
Francisca Guimarães
Mãe de três filhos

Entre as estratégias sugeridas no livro “Pára de Chatear a Tua Irmã e Deixa o Teu Irmão em Paz!” destaca-se o “dia do filho único”, em que um dos progenitores se compromete a dedicar tempo a um filho em exclusivo. “É uma experiência muito boa porque nos permite estar a 100% sem termos de gerir conflitos ou atropelamentos das conversas. Enche o copo dos afetos da criança e permite conhecer melhor quem está à nossa frente”, esclarece a coach parental.

Há já alguns anos que Francisca Guimarães adotou esses momentos a sós com um dos filhos e reconhece resultados muito positivos. “Sobretudo em períodos de maior turbulência entre eles, aproveito para ir lanchar apenas com um dos meus filhos, ou vou buscá-lo mais cedo para comermos um gelado.” Já a família de Inês Camaño Garcia é adepta de idas ao parque infantil e a programas de contacto com a natureza, para que “consigam perceber que, apesar das brigas fazerem parte, é importante fomentarem uma relação alicerçada em valores como o amor, o respeito, a partilha, a compreensão e a verdade”.

Dicas que, frisam as especialistas, não garantem que os irmãos venham a ter uma relação forte na vida adulta, mas que podem dar um empurrão em alguns dos conflitos do dia a dia familiar.