O caçador de beatas
No fim, Hilário ria. O rapaz chegara ao tribunal de algemas atrás das costas. Durante horas esperou em pé, naquela posição de estátua imperial que nos dá ser algemados. Calmo como um laguinho de província. À volta dele, feitos átomos de hidrogénio, giravam dois guardas prisionais. Hilário, entre outros crimes e danos que o levaram à prisão, é caçador furtivo de beatas. Hoje o tribunal ouvia Celso, o vigilante que o foi “buscar lá abaixo” quando, no cais da Linha Azul, as pessoas desesperavam por chegar a casa. Avaria, suicídio, greve, quando chega o comboio?!
– O senhor conhece o arguido Hilário?, começou a juíza.
– Sim sim, sim sim.
– O senhor sabe o que está a ser discutido neste julgamento?
– Sim sim, sim sim, foi uma situação em que eu fui buscá-lo lá abaixo à linha do metro e…
A juíza passou a palavra à procuradora:
– Senhor Celso, já vi que sabe o que o traz cá, queria então que nos relatasse o que é que aconteceu, a hora, o local.
– A hora e o local já não me lembro, foi há tanto tempo…
– Terá sido cinco anos, dois anos?
– Três anos, para aí.
– E o que é que aconteceu em concreto?
– Eu fui buscá-lo lá abaixo. O alarme foi accionado, fui chamado pela central de segurança.
– Nesta ocasião trabalhava aonde?
– No metro de Lisboa.
– E teve informação de quê?
– Tive a informação de ir buscá-lo lá abaixo.
– Isto em que estação?
– No Colégio Militar.
– E o senhor desceu à linha e… onde é que estava o arguido?
– Estava no fundo, onde os metros estão estacionados.
– Portanto o senhor teve que fazer a linha de metro para ir lá buscá-lo.
– Sim sim sim sim sim sim.
– E como é que o arguido foi lá ter?
– Era para apanhar, era para apanhar as!…, interrompeu Hilário, mas também ele foi interrompido.
– Depois já fala, ‘tá bem? É só um bocadinho! Agora vamos ouvir o senhor…
– ‘Tá bem!, concordou Hilário numa aguda voz rouca.
– Bem, ele saltou a coisa, saltou a gradeação, disse Celso.
– Perigo de Morte!, Perigo de Morte!, eu desci essas escadinhas!, continuou Hilário, contando o seu acto heróico.
– Sim sim sim sim, concordou Celso.
– Eu andava à procura de beatas para fumar!, disse Hilário.
A voz rouca e aguda era de tabaco. Hilário ria como um menino, na satisfação do dever cumprido.
– A linha do metro foi cortada?
– Foi sim, respondeu o vigilante.
– Durante quanto tempo?
– Não me recordo já.
– O senhor já conhecia o arguido?
– Eu… Não sei, ele já passou lá mais vezes, não sei.
– Queria que me descrevesse as linhas de metro. Têm dispositivos selados chamados “alavancas de disparo”? Que permitem o corte das…
– Têm têm têm têm têm…
– Esse local onde o arguido estava… para aceder a esse local era necessário atravessar cancelas?
– Sim, sim.
– E que linha foi privada da circulação?
– Foi a Linha Azul.
– A Linha Azul!, exclamou Hilário, como Fernão de Magalhães ao ver o Pacífico, passados os gelos do estreito.
– O senhor arguido está a par das linhas!, reconheceu a procuradora.
Uma brisa benévola passou na sala. Hilário não faz por mal, a propensão criminosa é inocência, nasceu-lhe na testa curta. Sabe as linhas do metro e partir alavancas de disparo e empatar milhares de pessoas quando vai caçar tocos de cigarro do chão.
Mas serão estas beatas tesouros antigos? Ou será que dentro da barriga do metro de Lisboa, na gare do Colégio Militar, passadas as cancelas “Perigo de Morte!”, alguém continua a fumar?
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)