Rui Cardoso Martins

O arsenal do ladrilhador

Ilustração: João Vasco Correia

Magro, pequeno e um perfil algures entre a chave de fendas e o busca-pólos (lá dentro, no entanto, vive um guerreiro ninja, como veremos). No tribunal, Pedro aparafusa, desaparafusa a conversa.

– O senhor sabe o que é que significa uma pena suspensa, não sabe? Também sabia quando aqui foi condenado, não sabia?

Pedro apanhou três anos de prisão suspensos por três anos, depois de condenado por furto e detenção de arma proibida. Mas voltou à carga. A polícia entrou-lhe casa e, resumiu a juíza, “tinha uma carrada – passe a expressão – de munições e de armas em casa”.

– O senhor tinha: três sabres, uma arma de ar comprimido 4.5 classe G, 73 munições de 9 mm, 31 munições de calibre 7.65 [de espingarda automática G3, presumivelmente], 27 munições da Luger, um objecto que tinha duas lâminas laterais de 10 cm de comprimento… o que é isto?

– Isso é uma… uma…

– Não, não é o que é este objecto! O que é que o senhor estava a fazer com tudo isto lá em casa? Para que é isto? O senhor vai participar nalgum filme do Rambo?!

– Não, senhora. Na audiência, quando estive aqui, expliquei o que era. As munições eram velhas, que eram para fazer os fios e os cachimbos e os sabres…

– Velhas?! 73 munições de 9 mm pouco importa se são velhas ou novas. Em algum momento foram novas e foram parar à sua mão. O senhor também vai contar, como algumas pessoas, que as vai apanhar ao pé dos campos de tiro do exército, no chão, é uma história que contam muito aqui, apanham porque acham piada para fazer colecção, é isso?

– Não, senhora. Eu até já tinha dito que as encontrei num barracão quando me encontrava a fazer limpezas.

– Limpezas num barracão! Então e os sabres, eram para quê?

– A espada de oficial do Exército é a espada do meu avô, que esteve na Guerra de 1914-1918. Os dois sabres, um tinham-me oferecido, um deles estava ferrugento, e estavam os dois nas bainhas, que eram de Angola. E a soqueira, que é aquele objecto que a doutora acabou de dizer, é daquelas que se compram no chinês.

– É para quê, também?

– Porque gosto.

– Gosta de quê? De magoar os outros? É que isso não tem outra função. O sabre do seu avô ainda dou de barato. Agora a soqueira!

– Eu nunca pensei que as munições, não tendo arma, sendo velhas, que houvesse problema em ter. Eu vou a casa de tanta gente. Têm munições nos armários, nas prateleiras…

– De cada lado uma lâmina de dez centímetros, e nunca pensou que pudesse ser proibida… Já faz um estrago grande. Duas, então, nem se fala. Não era um canivete de fruta, pois não?

– Era tipo um bibelô.

– Tipo um bibelô?!

A juíza navegava no fio da navalha dos exemplos. Esperava para ver em que sítio se ia cortar em dois, como a fruta, aquele homem de bigodinho piaçava. Pedro é ladrilhador, ninja secreto, língua romba. Vive num país de balas decorativas, não é só ladrilhos.

– Um exemplo, sotôra. Esse objecto não é tanto… não é como a ferramenta com que eu ando. Ando sempre com martelos, chaves de fendas, ando de x-acto, chave inglesa… são objectos também perigosos e eu vou à loja dos chineses e também os compro. Então… também se pode agredir uma pessoa com um martelo, com uma chave de fendas…

– Pois é, senhor Pedro! Mas o martelo serve para pregar pregos! E as chaves de fendas para apertar e desapertar parafusos, e isto que o senhor lá tinha em casa não serve para nada, a não ser para magoar as pessoas. Essa é a grande diferença, compreende? Nós até podemos furar um olho a uma pessoa com uma caneta bic. Mas a caneta bic serve para escrever, como a senhora procuradora está a fazer com ela. Utiliza-a para escrever, para a função a que se destina. Isto que o senhor tinha, a soqueira, umas mocas que têm uns picos… as mocas de Rio Maior… não servem para nada, a não ser para magoar as outras pessoas.

Pedro olhava a esferográfica: já viu isso em filmes, matar com esferográfica, mas a soqueira chinesa de duas lâminas é mais bonita.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)