O Santuário é por estes dias um imenso vazio, um sossego perverso, um aperto que excrucia párocos e aflige fiéis. Pela primeira vez, o 13 de Maio faz-se à porta fechada, sem multidões a invadir a cidade e a alimentar o comércio. Neste marasmo desolador, só a fé se anuncia inabalável.
Há um silêncio sepulcral em Fátima. Não o silêncio orante, invocativo. Não o silêncio comunitário e agregador, da paz a entrar toda pela alma adentro, da fé a ameaçar fazer-se rainha de todas as coisas. Não o silêncio desarmante, emocionante, que mereceu até o louvor do Papa Francisco quando, há três anos, esteve no Santuário para celebrar o centenário das aparições. Não o silêncio avassalador daquele 12 de maio de 2017, centenas de milhares de pessoas em quietude absoluta durante os oito minutos que durou a oração do Sumo Pontífice, ajoelhado defronte da imagem de Nossa Senhora, na Capelinha das Aparições.
O silêncio de Fátima é hoje pesado, opressivo, roça o dilacerante. É um silêncio vazio, perturbador. Vazio de peregrinos e de uma fé exponenciada em comunhão. É um silêncio onde cabe o peso de uma pandemia que já matou mais de 250 mil pessoas em todo o Mundo (mais de mil em Portugal) e nos impõe o dever do recolhimento para que a mortandade não escale. É um silêncio que é também anúncio pesaroso do nunca visto: em nome da responsabilidade e do recato a que a covid obriga, as celebrações do 13 de Maio far-se-ão à porta fechada, despojadas de peregrinos.
“Em 100 anos é a primeira vez em que não vamos ter grandes multidões. Este ano marcará a história do Santuário e a história da Igreja. É chocante.” O lamento, grave, desgostoso, é de Joaquim Ganhão, o padre que é diretor do departamento de liturgia. A decisão foi anunciada logo a 6 de abril por D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima, e confirmada no último domingo. Pelo meio, uma breve dúvida, feita esperança para muitos, quando Marta Temido, ministra da Saúde, disse em entrevista que o 13 de Maio seria uma possibilidade, desde que fossem respeitadas as regras sanitárias. A governante apressar-se-ia a esclarecer que se referia à celebração em si, não à peregrinação.
Nesse mesmo dia, D. António Marto dissipou de vez as dúvidas. “Por mais que o nosso coração desejasse estar em Fátima, a celebrar comunitariamente no mesmo lugar, como acontece desde 1917, a prudência aconselha-nos a que desta vez não seja assim. Mantemos esta opção dolorosa na expectativa de, quanto antes, podermos ter neste Santuário as multidões que, na alegria da fé, se reúnem para celebrar e rezar”, anunciou o cardeal.
A confirmação deste 13 de Maio distinto – com os momentos de celebração habituais, mas em formato minimalista, sem a presença de peregrinos – é mágoa maior em dois meses carregados de angústias. “O momento em que tivemos consciência de que íamos ter de suspender as eucaristias, a 13 de março, foi muito duro”, recorda Joaquim Ganhão, que admite as dificuldades em acostumar-se a uma Fátima à míngua de fiéis. “É uma habituação dura, difícil. A nossa vocação não é viver assim. Apesar de termos mantido sempre o Santuário aberto [a exceção ocorrerá a 12 e 13 de maio], houve dias em que durante largas horas não se via ninguém.” O vazio, tão raro, tão pesado, já por várias vezes ameaçou vergá-lo. “Tenho derramado algumas lágrimas ao ver o Santuário assim”, assume, como que em confissão, na sala de visitas da reitoria.
Lá fora, a realidade adensa-lhe o peso das palavras. A vasta área do Santuário é uma imensidão de vazio onde só a custo se vislumbra gente. No espaço que circunda o Monumento ao Sagrado Coração de Jesus, dois homens, sachola em punho, cuidam da relva. No altar, meia dúzia de mulheres trata da limpeza da escadaria. Na Capelinha das Aparições, os fiéis não chegam à dezena. “Ver Fátima assim é o acumular da tristeza”, desabafa Paulo Santos, 47 anos, vindo do Porto. Vem sempre, há 17 anos, de carro, rigorosamente a 5 de maio, data de aniversário da filha. “Foi uma promessa que fizemos quando ela nasceu.”
E desde então que ele, a mulher e a filha a cumprem religiosamente. Mesmo que já tenham perdido elementos importantes pelo meio. Para Manuela, a esposa, a vinda a Fátima tem este ano um sabor ainda mais intenso. É que, por trabalhar num lar de Gulpilhares – onde “felizmente” não houve casos positivos de covid – passou longos 40 dias confinada na instituição. “A minha preocupação era sair para festejar o aniversário da minha filha e poder vir aqui neste dia.”
Fátima é-lhe (é-lhes aos três) sossego de horas amargas, a nostalgia pelos que já partiram, a fé que nunca lhes falha. “Nesta situação que é nova só a fé nos pode salvar”, augura Paulo. Fátima é-lhes, acima de tudo, paz. Essa nem a pandemia a leva. Mas por estes dias também lhes é vazio, também é angústia. “Saímos de casa para vir aqui e mesmo aqui parece que continuamos isolados do Mundo. É estranho, é muito estranho.” Mariana, a filha, de 17 anos, descreve-o assim. “Para mim, hoje, Fátima é ao mesmo tempo a esperança e a imagem de um mundo em sofrimento.”
Também Iara Pinto Santiago, 67 anos, caracteriza a Fátima destes dias como um lugar de emoções que se atropelam e antagonizam. “Isto é uma coisa que a gente nem acredita, uma solidão. Mexe muito connosco. Mas continua a ser um sítio de paz. Fátima tem um magnetismo, uma emoção muito própria.” Iara é de São Paulo, no Brasil, mas tem Portugal a correr-lhe nas veias. A avó estava em Fátima naquele 1917 que imortalizou os três pastorinhos, a mãe nasceu em Portugal, o marido também. “Cresci com a minha avó a contar histórias do que aconteceu naquele dia. Sou devota da Nossa Senhora desde pequena.”
Tão devota que mesmo vivendo do outro lado do Atlântico faz questão de rumar a Fátima de dois em dois anos, pelo menos. Para cultivar a fé que não vacila e para agradecer os vários “milagres” que já teve na família. Como o que, pode jurar, bafejou a irmã. Há cerca de ano e meio foi operada à coluna, com um AVC pelo meio. Hoje, está sentada num dos bancos da Capelinha das Aparições, imersa na crença, só uma muleta para a lembrar dos dias penosos. “Depois de tudo, a minha irmã está a andar. Eu acho que isto é um milagre da fé.” O desgosto desta Fátima às moscas aperta-lhe o peito ainda assim. “É como um vaso sem flores.”
A “dolorosa” decisão
A prudência a isso obriga. “Este é um momento que tem de ser enfrentado com as armas que temos, as armas da responsabilidade”, enfatiza Joaquim Ganhão. A mesma responsabilidade que fará o Santuário manter as missas e procissões alusivas à Peregrinação Internacional Aniversária de maio, mas só com uma presença simbólica de participantes (“intervenientes na celebração e funcionários do Santuário”, especificou, em comunicado, D. António Marto). Peregrinos serão barrados.
“O Santuário nunca esteve encerrado ao longo deste tempo. O que não havia era celebrações comunitárias”, sublinha Carmo Rodeia, porta-voz do Santuário de Fátima. Na tarde do dia 12 de maio e na manhã do dia 13, o caso é distinto. “O Santuário terá mesmo de encerrar porque, ao contrário de outras manifestações, nós não conseguimos controlar a multidão. Não mitigamos nunca o sofrimento dos fiéis por não poderem vir em peregrinação, mas tomámos esta decisão porque não conseguimos garantir a segurança das pessoas.” Aos devotos, resta o ténue conforto de saber que todos os momentos poderão ser acompanhados à distância – seja no site, nas redes sociais ou nos principais canais de televisão.
Além de se estar a preparar para fechar as entradas, o Santuário tem reiterado os apelos para que não haja peregrinações a Fátima. Ainda na última segunda-feira, o padre Carlos Cabecinhas, reitor do Santuário, assumiu que este era um momento doloroso, mas que a tomada desta decisão estava estritamente ligada à vontade de se criarem condições para retomar as peregrinações “o mais rapidamente possível”. “Neste maio, pedimos-vos que não venhais”, exortou o pároco. Também a PSP e a GNR apelaram aos peregrinos que costumam ir anualmente a Fátima para que não o façam. Quem o fizer e for “intercetado” pelas forças policiais será aconselhado a voltar para trás. No caso de peregrinações que juntem mais de dez pessoas, as forças de segurança poderão recorrer a uma ação mais musculada.
De resto, as próprias associações de peregrinos estão a procurar dissuadir quaisquer vontades que se oponham a estas recomendações. “A mensagem que estamos a tentar passar é que aguardem por setembro, porque calculamos que até lá já saberemos melhor lidar com este vírus”, explica Rodrigo Cerqueira, presidente da Associação de Amigos dos Caminhos de Fátima. O dirigente associativo admite que haverá sempre quem tente furar as regras e fazer-se à estrada, mas alerta para os riscos. “Desde logo em termos de acolhimento. Quem o fizer terá muitos problemas para ser acolhido. E há outro risco maior, que é o de espalhar o vírus.” Além de que quem se aventure não contará com os habituais postos de assistência na estrada. A Associação de Amigos dos Caminhos de Fátima desafia, por isso, os peregrinos a optarem antes por fazer “um caminho interior”.
Também o Santuário de Fátima está a promover, através de materiais divulgados no site, uma peregrinação diferente. Todos os dias, entre 4 e 13 de maio, são publicados um PDF e um áudio que visam guiar os peregrinos nesse caminho distinto. Paralelamente, o Santuário desafia os fiéis a acenderem diariamente uma vela à janela. “Queremos que haja uma multidão em casa. A ideia das velas também passa por aí”, justifica o padre Joaquim Ganhão. Para que todos se possam sentir em Fátima, mesmo que ela lhes esteja vedada. “Sabemos que Fátima é um lugar de afetos, mas, na falta disso, a ideia é que os ritos que se vão desenvolver transportem as pessoas para a peregrinação”, acrescenta o diretor do departamento de liturgia, assumindo um certo “desconsolo” por lhe chegarem ecos de “cristãos que não respeitam isso”.
E o facto de Fátima fechar portas a 13 de maio enquanto as celebrações do Dia do Trabalhador em Lisboa, por exemplo, juntaram um milhar de pessoas (mesmo que com distanciamento social), não lhe aumenta a mágoa? O assunto alimentou a polémica na última semana, com o paralelo a surgir amiúde. Joaquim Ganhão responde categórico. “De modo nenhum. A história há de fazer jus a isso. Fátima dispensa bem esse tipo de comparações.”
Dia e meio, duas clientes
Fátima dispensava também o silêncio ensurdecedor que transcende a imensidão do Santuário e perpassa para as vias circundantes. Como um vazio aflitivo que se apodera da cidade. As ruas estão praticamente vazias, o comércio é uma sombra do que era, sobretudo em pleno maio. Um dia depois de o Governo dar luz verde à abertura do pequeno comércio, muitos espaços permaneciam teimosamente encerrados. Mesmo as lojas de artigos religiosos, tão características de Fátima. Algumas exibiam na porta mensagens, a justificar o fecho com a covid-19 e a incentivar a eventual clientela a contactar os proprietários via telefone. Para as outras, as que arriscaram abrir, mesmo sem turistas ou peregrinos, o cenário era tudo menos animador.
“Para já está muito fraco”, lamenta Joana Gomes, funcionária da Loja Esperança, um espaço quase paredes-meias com o Santuário, que, além de artigos religiosos, também vende produtos de ourivesaria e artigos regionais. Mesmo sabendo do “risco muito grande” que estava a correr ao abrir a loja sem sequer as missas terem começado, a patroa ousou. Mas as primeiras horas da experiência têm sido pouco promissoras. Em dia e meio, tinham entrado no espaço apenas duas clientes. “Uma das senhoras não era de cá e como saiu pela primeira vez para vir a Fátima quis levar uma recordação. A outra é nossa cliente habitual e veio comprar artigos de ourivesaria.”
A ambas Joana sentiu o temor. “Noto as pessoas com medo. Fazem questão de pagar com cartão, não se aproximam muito, pensam duas vezes antes de tocar nos artigos.” Por esta altura, em anos passados, o panorama não poderia ser mais distinto. “Já havia excursões, mais gente a vir a Fátima. Já estávamos a comprar mais artigos para garantir o stock para o 13 de Maio e a funcionar com horário alargado.” Este ano não. Fizeram o oposto, na verdade. Tiveram de cancelar as encomendas já feitas.
“Dá uma certa tristeza. Até porque esta altura começa a ser o nosso boom. E está a ser ainda mais parado do que o nosso inverno.” Agarradas à fé, mas assustadas com as dificuldades que se avizinham, Joana e a patroa ainda tentaram reforçar a aposta nas redes sociais e nas vendas online, mas também aí o negócio mirrou. “Vivemos muito de encomendas do Brasil e a partir do momento em que a covid lá chegou o negócio foi muito abaixo. Andamos aqui a ver se nos conseguimos aguentar.” Mais à frente, o panorama das lojas às moscas não muda. “Ninguém, ainda não tivemos ninguém, não sei onde vamos chegar. Olhe, vamos limpando”, dizem-nos, a frustração a extravasar porta fora.
O cenário não se abrilhanta no caso dos restaurantes. Obrigados a funcionar em regime de take-away até 18 de maio, data em que poderão abrir portas, muitos optaram por se manter totalmente fechados, sem prestar qualquer serviço. O facto de uma boa parte deles viver do fluxo de clientes vindos de fora ajudará a explicar a razia. “Pelo que sei, neste momento só meia dúzia de restaurantes em Fátima é que estão abertos [em regime de take-away]”, conta-nos Frederico Pereira, 33 anos. Dono do restaurante Dom Duarte, assegura que tem sobrevivido porque se soube reinventar rapidamente. “Fomos os primeiros a tomar a iniciativa de entregar comida em casa.”
Frederico comprou uma carrinha para fazer as entregas e pôs mãos à obra. Não houve só engenho, contudo. As circunstâncias também ajudaram. É que apesar de registar um pico de clientela nas datas religiosas mais importantes – em momentos como o 13 de Maio com mais de 200 refeições servidas num só dia –, o restaurante há muito tinha clientes fidelizados, residentes em Fátima. ”Só hoje ao almoço servimos 50 refeições”, orgulha-se o proprietário. Mas o número simpático não lhe permite celebrações.
Frederico teve de dar ordem de lay-off a vários funcionários. “E ainda não recebi nada.” A faturação, essa, é certo que cairá para metade. Pelo menos. A sorte é ter uma empresa familiar, onde também trabalham os pais e a irmã. “Caso contrário teria de abrir insolvência.” Resta-lhe uma nota de otimismo ainda assim. “Acredito que quando as deslocações puderem ser retomadas, Fátima vai ser dos primeiros sítios onde as pessoas vão querer vir”, atira, resiliente.
Ali perto, num Santuário às moscas, o silêncio a pesar como fardo, a mesma resiliência. Sentido de missão também, garante Joaquim Ganhão. “É nos momentos de crise que o nosso papel se torna mais importante. A Igreja sempre teve uma missão de salvação. E esta é uma das missões mais sérias que a Igreja tem pela frente.”
Em tempos de lágrimas e perturbações, em que Fátima se vê privada de peregrinos, desse elemento fundamental que é também pedaço de essência, o pároco acaba sempre às voltas com a mesma questão, que terá sido colocada por Nossa Senhora aos pastorinhos bem ali, na Cova da Iria. “Quereis oferecer-vos a Deus?” “Este é um estranho modo de nos oferecemos a Deus.” Como estranho é, angustiante até, olhar por estes dias para a placa que numa das entradas do Santuário, cravada na parede, anuncia, em jeito de pedido extemporâneo: “Silêncio”.