
Se tivesse de destacar uma figura ou entidade pelo empenho na proteção do planeta, quem ou qual seria? Pense um pouco sobre isso. Em menos de 24 horas, poderá confirmar se a sua escolha coincide com o nome do vencedor do Prémio Gulbenkian para a Humanidade. A pandemia adiou a cerimónia, mas o anúncio manteve-se no calendário e será feito hoje, segunda dia 20, pela fundação, no dia dedicado a Calouste Gulbenkian. Ficar-se-á a saber, nesse momento, quem ganhou a edição de estreia, centrada nas alterações climáticas. Uma pessoa, um grupo de pessoas ou uma organização de qualquer parte do mundo está prestes a receber um milhão de euros, não só pelo trabalho feito, mas também por inspirar outros a começar ou a continuar o combate pela sobrevivência da espécie humana. É tão simplesmente disso que se trata.
Esta é a primeira edição de um dos maiores prémios internacionais que, pelo menos, até 2024, será dedicado às alterações climáticas. É o começo, mas também o fim de um processo que teve início muito antes. Foi na primeira semana de março, ainda antes do confinamento e enquanto decorria o prazo para as nomeações dos candidatos, que os membros do grande júri e do comité de especialistas se encontraram pela primeira vez.
Cada qual vindo de um ponto mais ou menos distante. De Espanha, da Alemanha, da Índia, do Bangladesh, do Chade ou da Dinamarca. De avião, de comboio ou, então, por videoconferência, que, no fundo, acabou por ser, nos meses seguintes, o único transporte capaz de furar o distanciamento social e aproximar geografias dispersas pelos cinco continentes.
Rik Leemans, do grupo de Análise de Sistemas Ambientais da Universidade de Wageningen, na Holanda; Katherine Richardson, líder do Sustainability Science Centre da Universidade de Copenhaga; Miguel Aries Cañete, ex-comissário europeu para a Energia e a Ação Climática; Viriato Soromenho-Marques, professor de Filosofia da Universidade de Lisboa; ou Hans-Joachim Schellnhuber, professor de Física Teórica na Universidade de Potsdam, na Alemanha; são alguns dos investigadores à volta de uma mesa na sala do conselho de administração da fundação.
O dia zero
São 13 no total – oito no grande júri, presidido pelo ex-Presidente da República Jorge Sampaio, e cinco no comité de especialistas, liderado por Miguel Bastos Araújo, biogeógrafo e investigador do Museu Nacional de Ciências Naturais, em Madrid. Todos internacionalmente reconhecidos nas suas áreas. E todos com as chávenas cheias de café, prontos para o primeiro dia.

(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)
Embora, na verdade, não seja bem o primeiro dia. Um prémio com a ambição de figurar entre os mais importantes do mundo, quando está prestes a arrancar, é porque já percorreu um bom caminho para ali chegar. E foi isso mesmo que Isabel Mota, presidente da fundação, quis explicar antes de os trabalhos começarem.
Se fosse preciso recuar ao dia zero, seria certamente a data de 17 de junho de 2019, quando a venda da Partex – empresa criada por Calouste Gulbenkian, em 1938 -, foi oficialmente anunciada. Esse foi o momento em que a fundação deixou o negócio da exploração de petróleo. E o passo decisivo para descarbonizar a carteira de investimentos: “Decidimos desfazermo-nos desses ativos e dar início a um novo ciclo”.
É uma outra etapa, com a sustentabilidade e as mudanças climáticas no “topo da agenda”, e que nunca seria possível sem primeiro sintonizar as políticas de investimento com os objetivos da fundação. “Decidimos dar um sinal à sociedade, lançando este prémio para a humanidade”, sem a mancha do petróleo a turvar o caminho, contou Isabel Mota.
Não se trata de assumir um rumo radical. As causas sociais, ambientais, culturais ou científicas estão, desde o início, no código genético da Gulbenkian. É a linha estratégica pela qual a fundação se tornou conhecida a nível planetário. Qualquer um dos presentes na sala estará familiarizado com isso. O que podem ainda não saber – como estrangeiros que são, na sua maioria – é o “impacto profundo” que teve na vida de muitos portugueses.
Talvez seja útil, como tal, o administrador executivo recordar o papel da fundação ao longo das últimas décadas. Carlos Moedas é um desses portugueses, como muitos, vindos de uma geração marcada pelas visitas semanais ou quinzenais das carrinhas da Gulbenkian às vilas, cidades e aldeias: “Nasci no sul de Portugal e, no meu tempo, não havia bibliotecas”. O que havia eram as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian a viajar de terra em terra, levando, entre 1958 e 2002, os livros aos lugares mais isolados do interior do país.

(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)
Foi assim que Moedas, nascido em Beja, e muitos como ele, tiveram acesso à literatura, às ciências ou às artes: “Para nós, portugueses, a Gulbenkian é parte das nossas vidas”. E para os estrangeiros é bom também ter a noção da importância que assumiu no passado e ainda assume no presente: “Em qualquer lugar para onde vou, há alguém com uma história ligada à fundação”. Investigadores, pessoas das artes, da música ou da literatura que conseguiram ler, viajar, estudar, dançar ou investigar através de apoios, programas ou bolsas da Fundação Calouste Gulbenkian: “Estamos agora num momento extraordinário, que é a transição para o futuro sustentável. Cortar a ligação com o petróleo foi uma das maiores decisões que já tomámos e que nos deixa muito orgulhosos”.
A etapa do futuro
É neste ponto, portanto, que estão o grande júri e o comité de especialistas. Se, em todos os percursos, há uma sequência cronológica a caminhar do passado para o presente, eles foram convocados para preparar a próxima etapa do futuro. E Jorge Sampaio, que preside o grupo de jurados, já começou a primeira reunião com vontade de saltar os preâmbulos e ir direto ao cerne da questão: “Antecipo muito trabalho pela frente”.
Antecipou bem. Com o prazo das candidaturas terminado na primeira semana de abril, foram recolhidas 136 propostas válidas, de 46 países, cobrindo os cinco continentes. Da Argentina aos Camarões, passando por Israel, Moçambique, Rússia, Austrália ou Canadá. E de Portugal, claro, que, com 25 nomeações, liderou esta lista, seguido do Reino Unido, com 15, e da Alemanha, com oito. “O nosso objetivo é propor o melhor candidato entre uma diversidade enorme de nomeações vindas de um vasto público”, relembrou o presidente do grande júri, ainda antes de serem conhecidas as propostas.

(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)
A variedade de candidaturas submetidas online acabou por refletir a decisão que a fundação tomou, em julho do ano passado e após consultar dezena e meia de peritos internacionais. O prémio a lançar seria de reconhecimento, privilegiando a tipologia que distingue pessoas ou entidades não apenas pelo mérito do trabalho desenvolvido, mas também pelo potencial impacto para alavancar projetos individuais ou coletivos.
Os candidatos, como tal, podem estar em qualquer parte do mundo e as nomeações vir de todos os lados – menos de partes interessadas – de um carpinteiro, de uma educadora de infância ou de organizações de cariz ambiental, social, cultural ou económico.
Operação de charme
Peneirando melhor os resultados, 106 propostas chegaram da sociedade civil e as restantes 30 do júri e do comité de especialistas. Os temas, esses, vão das novas tecnologias à mobilidade, passando pela transição energética ou variadas soluções com base na agricultura sustentável, nos oceanos, nas florestas e em outras abordagens com o foco na mitigação e adaptação às alterações climáticas.
A partir daí, começou o trabalho deles. “Não será uma tarefa fácil”, advertiu Sampaio, preparando os jurados para aquele que seria um “desafio de enorme complexidade”. Antes assim do que chegar ao fim do prazo com somente algumas dezenas de propostas. Sendo esta a primeira edição do prémio, era um risco que se corria.
Razão suficiente para o presidente incumbir cada membro do júri e do comité a fazerem o seu trabalho de casa: “Vai ser essencial mobilizar a vossa rede de contactos para ajudar a divulgar o prémio”. Todos foram incentivados a levar a mensagem o mais longe que conseguissem. Deram entrevistas na imprensa internacional, ligaram a quem tinha influência para dar visibilidade ao prémio e usaram as ferramentas digitais para o entusiasmo não se evaporar com os efeitos da pandemia.
Não estiveram sozinhos nessa operação de charme. Também as equipas do marketing e da comunicação da fundação construíram bases de dados com os contactos institucionais e dispararam emails, telefonemas e comunicados, procurando chegar ao maior número de pessoas e organizações. E, mesmo assim, o nervoso miudinho não desapareceu. “Se conseguirmos 100 nomeações, vai ser um alívio”, desabafou a presidente da Gulbenkian algures durante esse processo.
E agora, com 136 propostas em cima da mesa, apenas um poderá ser o vencedor. Esse é o quebra-cabeça que o jurado teve de desmontar peça a peça até sobrar só uma. Nada com que Sampaio não estivesse a contar. Bastará fazer alguns exercícios teóricos para perceber a dificuldade de colocar figuras mediáticas como, por exemplo, o britânico David Attenborough ou a sueca Greta Thunberg ao lado de instituições, fundos ambientais ou até mesmo de países que lideram o combate às alterações climáticas.
Comparar o incomparável
Propor ao conselho de administração da Gulbenkian o melhor candidato ao prémio não é meramente uma questão de opinião. É antes uma questão de “elevada qualidade” nos critérios de escolha, lembrou o presidente do júri: “A nossa primeira tarefa será trabalhar nas métricas e metodologias para conseguir pontuar cada um dos nomeados”.

(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)
O trunfo esteve, portanto, na grelha de critérios e classificações que, ao longo das semanas seguintes, os jurados e o comité de especialistas construíram para comparar o que, à partida, parece impossível de comparar – o valor do ativismo de uma só pessoa e o de uma ONG, o trabalho de uma entidade regional e de outra com escala planetária, o mérito de uma figura mediática, que dá os primeiros passos, e de outra com um longo rasto atrás dela.
A tarefa mais minuciosa coube ao comité de especialistas, cinco figuras escolhidas pelos conhecimentos técnicos e trabalho desenvolvido em áreas relacionadas com a mitigação e adaptação às alterações climáticas. Em menos de duas semanas pontuaram os 136 candidatos, condensando-os numa short list entregue no dia 17 de abril ao grande júri.
O ranking incluiu dez candidatos selecionados entre as propostas da sociedade civil e mais 14 nomeados pelo júri externo. Um mês depois, foi a vez dos oito membros do grande júri se reunirem frente ao ecrã para a votação final. Dessa reunião, três nomes seguiram em envelope fechado para o conselho de administração da Fundação Calouste Gulbenkian.
O vencedor para os jurados já está escolhido mas, nesse mesmo envelope, estão mais dois candidatos de reserva. A decisão final pertence ao conselho de administração, mas nada tem a ver com grelhas de pontuação nem critérios de escolha. Passa antes por perscrutar o passado dos finalistas, tentando perceber se currículos e reputação estão prontos e imaculados para merecerem o primeiro Prémio Gulbenkian para a Humanidade.
O critério vencedor
O anúncio do vencedor acontecerá na conferência de imprensa a ocorrer na manhã desta segunda-feira 20, dia em que se assinalam os 65 anos da morte de Calouste Gulbenkian. A cerimónia de entrega do prémio, essa, ficará adiada até ser possível regressar ao grande auditório do edifício da fundação, em Lisboa, sem interferências da covid-19. Este ano já não será. Não havendo ainda decisão fechada, o mais provável é acontecer no início da segunda edição do prémio ou durante a sua fase de candidaturas.
A data será sempre adaptada às contingências da pandemia. A importância do prémio para a Gulbenkian é que já não é ajustável a nada. A não ser à urgência do momento, como relembrou o presidente do grande júri: “Chegamos a um ponto crítico em que temos de apelar a uma harmoniosa integração da relação entre humanos, tecnologias e natureza para salvar a humanidade”. Para lá das pontuações e listas graduadas dos candidatos, esse é o critério vencedor: “O futuro sustentável está sempre na combinação da prosperidade económica, da justiça social e da proteção do planeta”, rematou Jorge Sampaio.