Cinco casais separados por uma geração (ou mais) contam as suas histórias de hesitações internas, comentários externos e como lidam com preconceitos e frases feitas. A data de nascimento é um pormenor sem muita importância.
O quintal de António Moutinho e Margarida Vieira parece feito a régua e esquadro nas traseiras de casa na Lavandeira, Carrazeda de Ansiães. Um esmero, aprumadinho, como se cada legume tivesse sido plantado num lugar predefinido para ganhar tamanho dentro e fora da terra. Latas vazias de conservas, estendidas numa corda, tocam-se levemente numa brisa suave que corre de manhãzinha, como espanta-espíritos para afastar a bicharada que anda no ar. Ele ocupa-se da horta e da lenha, ela das lides domésticas e do que é preciso no campo. Ele usa a enxada com arte, conhece-lhe as manhas, ela é organizada nas arrumações. António tem 70 anos, Margarida 47, e um filho de 21 que mora em Vila Real. Em agosto, fazem 23 anos de casados, os mesmos que os separam nas idades. Essa diferença é um não assunto nas suas vidas.
“Tratava-o por senhor até quase antes de casar, foi complicado deixar de o chamar por senhor António”, lembra Margarida com um sorriso, cara sardenta, pele ligeiramente tostada pelo sol. Nesse tempo, ele ia ouvindo que era uma habilidade um homem da sua idade arranjar uma moça mais nova, ela ia escutando que se calhar aquele namorado era velho demais para si. Os comentários não eram dentro de casa, as famílias não colocavam entraves ao namoro, e eles não ligavam aos maldizeres que entravam por um ouvido e saíam pelo outro. “Nunca escondi nada de ninguém, nunca me escondi do povo. Falavam, falavam e eu dizia que a gente andava a conhecer-se e que me casava se sentisse amor por ele.” Sentiu e casou na sua aldeia, em Baião. Em cima da cómoda, duas fotografias a cores testemunham esse dia dentro e fora da igreja.
António e Margarida são filhos de gente de trabalho, do campo. António fez a tropa, emigrou para o Luxemburgo, saiu do país com 24 anos, voltou com 43, casou-se aos 47. O seu primeiro e único casamento. Margarida andava nos campos com os pais e os irmãos, era empregada doméstica numa casa rica de Baião três vezes por semana. Uma amiga de Margarida tinha casado com um primo de António. “E lá vim eu à Lavandeira conhecer o primo.” Era domingo, apanhou um comboio com uma prima até ao Tua. Na hora de regresso, já sem comboios a circular, António ofereceu-se para levar as raparigas a casa e Margarida foi “empurrada” para ir no banco da frente. “Mas a coisa não se deu aí”, recorda. António quis saber dela, procurou-a num dia em que um incêndio dava cabo do mato, Margarida não lhe deu atenção, ocupada no combate às chamas. Trocaram postais de boas-festas, António ligou-lhe um dia para casa da família rica onde Margarida trabalhava. Acertou no dia dos namorados sem saber. O namoro começou, sem a marginal junto ao rio, António fazia duas horas de carro para cada lado. Ela, confessa, encantou-se “pela simplicidade e boa vontade” dele. Ele pela maneira desenvolta e genuína dela falar. E pela pessoa que era. Quando ela deixou Baião para viver na casa que ele tinha mandado construir, na Lavandeira, levou-a a conhecer todas as aldeias do seu concelho. O que os outros pensavam ou diziam não ficava guardado no peito. “Quando me perguntavam se eu era filha dele, eu dizia-lhes: ‘filha? Não sou filha, sou mulher’.” Assim, tal e qual, sem papas na língua, no seu jeito alegre de dizer o que lhe vai na alma.
Os anos passam, Margarida é mais de passeios do que António, gosta de tirar fotografias às paisagens do Douro, criou um grupo no Facebook para partilhar as imagens. “Quando chego ao Douro, parece que a paz está ali”, conta. Ele é mais quintal, jogos de cartas com os amigos no café, mais ali por casa. Há coisa de três anos, ela convenceu-o a fazer um cruzeiro da Régua a Barca d’Alva. “Não queria, não queria, e acabou por gostar.” “Não gostaste?”, pergunta-lhe. António ri-se e diz que sim com a cabeça. Os 23 anos de diferença são apenas um detalhe sem grande importância.
Maria Gabriela e Fernando Cabral casaram-se em abril de 1970, menos de um ano depois de começarem a namorar numas férias de verão, no Algarve. Ela tinha 24 anos, ele 45, estava separado e tinha uma filha. No último abril, celebraram 50 anos de vida em comum, em casa, confinados por força das circunstâncias. Os três filhos, dois em conjunto e a filha de Fernando, não esqueceram a data de ouro e deram-lhes os parabéns pelo meio século lado a lado.
Conheceram-se no trabalho, na antiga hidráulica sedeada em Lisboa, o organismo estatal que tratava das barragens do país. Maria Gabriela vinha do sul, de Faro, Fernando Cabral do norte, de Arouca. Ela estava na parte administrativa, ele, engenheiro mecânico, na área técnica. “Reparei naquela rapariga moreninha, já estava solteiro há uns anos”, recorda. Ela não esquece a frase que aquele homem bem-parecido lhe dirigiu num certo dia. “Se eu tivesse menos 20 anos ou tu mais 20, não me escapavas.”
O tempo passou, Maria Gabriela pediu transferência para o Algarve e Fernando não a quis perder de vista. No verão de 1969, acompanhava umas obras da hidráulica em Odemira, Alentejo, e resolveu dar um pulo ao sul com um propósito bem definido. Encontraram-se, conversaram, o namoro começou. Maria Gabriela confessa que estava hesitante, apesar da queda por homens mais velhos, e lá ouviu os comentários de que a história não ia dar certo, que seria sol de pouca dura. A mãe arrumou-lhe a cabeça, dissipou-lhe incertezas e dúvidas. Se era amor, tinha mesmo de ser. “A minha mãe disse-me que mais valiam dois anos de felicidade do que uma vida inteira infeliz”, recapitula. Lembrou-lhe ainda a frase feita de que ninguém sabe o dia de amanhã. Maria Gabriela estava apaixonada. “Não foi algo em particular, foi um todo nele que me fascinou, quando dei por ela, já estava apanhada.”
A diferença de 21 anos de idade nos anos 70 do século passado não incomodou as famílias de um lado e do outro. “A minha família, em geral, gostou muito dele e eu fui aceite pelas pessoas dele.” Não houve olhares de lado ou comentários maldosos. Fernando parecia mais novo e visualmente os 21 anos não se notavam. Maria Gabriela começou até a sentir-se mais nova à medida que o tempo passava. “Antigamente, a educação era mais fechada, eu era mais fechada, comecei a abrir-me mais.” Cabeça mais aberta, mais arejada. Depois vieram os filhos e, volta e meia, iam todos em viagem pelas estradas de Portugal. “Nunca nos deram a diferença de idade que temos”, diz Maria Gabriela. E Fernando, nos seus 95 anos, garante com um sorriso: “Estamos bem”.
A fotografia e o filme: o presente e o futuro
Tágila Canuto e Alexandre Canuto conheceram-se na noite de Natal, 24 de dezembro de 2011, na casa dele, através de amigos comuns. Dias depois, passaram a passagem de ano juntos e a paixão começou a dar de si. Estão juntos há oito anos e cinco meses, casaram-se há seis, mudaram-se do Porto para Braga há dois. Tágila é enfermeira, Alexandre trabalha numa tinturaria, na indústria têxtil.
Nasceram no Brasil, ela é do Ceará, ele de Belo Horizonte. Tágila tem 36 anos, Alexandre 55. A família dele não aceitou tão bem o relacionamento, a dela gostou imediatamente dele, da maneira bem-disposta de estar na vida. A profecia de que a relação estava condenada ao fracasso nos primeiros meses não acertou no alvo. E o preconceito da idade no amor caiu por terra. A começar por Tágila. “Eu cheguei a dizer que nunca ia namorar com um homem mais velho porque não ia ter paciência, porque não ia seguir o meu ritmo.” Enganou-se. Apaixonou-se por Alexandre, pelo sentido de humor, pela tranquilidade, serenidade. “Não é antiquado, tem uma mente muito à frente e isso facilita muito.”
A diferença é de 18 anos e sete meses. “A nossa convivência é muito tranquila”, assegura Tágila. Já ouviram vários comentários pela diferença de idades. O filho pequeno de uma amiga perguntou como se chamava o pai de Tágila, a senhora do cabeleireiro achava que eram pai e filha. Alexandre não se incomoda, usa o jogo de cintura para brincar com a situação. Tágila deixou de se incomodar com esses reparos. Mas o estigma existe. “As pessoas achavam que era um homem mais velho que queria uma mulher bonitinha para ficar ao lado dele. Sou mais vítima de preconceito por ser mulher e brasileira do que por ter um marido mais velho do que eu”, assinala. Mesmo assim, e quando há oportunidade, tenta passar essa informação da diferença de idades quando vão conhecer alguém, para evitar aqueles olhares de surpresa do outro lado. “As pessoas, às vezes, estranham.” “Era coisa que não me preocupava em relacionamentos anteriores”, admite.
Tágila e Alexandre têm um passado, ele tem uma filha, ambos são separados. O ex-marido de Tágila ainda viveu e trabalhou em Portugal, o visto não foi prolongado, a relação não sobreviveu. Agora o amor de oito anos continua e Tágila quer ser mãe. “Nestes casos, às vezes, a idade atrapalha muito, há sempre esse juízo de valor quando se fala em ter filhos.” Não é o caso. Alexandre compreende e aceita esse desejo, está ao seu lado. Admira-lhe a beleza e orgulha-se da tenacidade e resiliência de lutar pelo que quer.
João Teixeira Lopes e Ana Chaves conheceram-se na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Ele foi professor dela. O amor não aconteceu nessas circunstâncias, surgiu depois. Um encontro casual em Paris funcionou como rastilho. Estavam os dois na capital francesa sem saberem. Ele em casa de uma amiga, ela de férias com os pais, até que perceberam a coincidência, trocaram mensagens, marcaram um jantar, nunca mais perderam o contacto. Meses depois estavam a namorar, em abril de 2011 a viver juntos, casaram-se em 2013, tiveram uma filha em 2016. João tem 50 anos, Ana, gestora de conteúdos, 30.
“No início, custou um bocadinho essa coisa da diferença de idades. Sentimos alguma sanção social, não no círculo familiar e de amigos, um certo desconforto de perguntarem se a Ana era minha filha.” Ana também se sentiu agastada no começo do relacionamento. Depois passou. “Era bastante estranho, incomodava-me o facto de pensarem que o João podia ser meu pai.” João acrescenta: “Não sei se nos deixámos de preocupar com isso ou se já não queremos saber”.
Os 20 anos de diferença nunca foram um problema. As afinidades e gostos culturais, ideológicos, a forma de estar e de ver o Mundo são como um íman. João fala num chão comum, numa grelha partilhada. “Há, no entanto, referências culturais que são geracionais. Gosto de música francesa e a Ana não”, exemplifica. Nada que atrapalhe o amor.
João e Ana veem a fotografia, o que acontece no presente alicerçado no passado, não sabem como será o filme, o futuro, os dias que se seguem. O presente é o que é, o futuro uma incógnita. “Tem sido uma boa viagem, este projeto de vida em comum, a sintonia que temos”, diz Ana.
João Teixeira Lopes é sociólogo e o tema não lhe passa ao lado, desde logo porque o sente na pele. “O preconceito tem-se vindo a esbater em sociedades tendencialmente mais urbanas, escolarizadas, com grande dimensão cultural e subcultural. Mas não nos podemos esquecer que o país é muito desigual e muito assimétrico”, realça. É mais vulgar homens mais velhos casarem com mulheres mais novas do que o contrário. Mais facilmente aceite também. “Ainda se vê o homem com o modo patriarcal de encarar as relações humanas, a figura paternal, de autoridade. Normaliza-se e naturaliza-se o facto de o homem ser mais velho.” Não é a mesma coisa quando a mulher é mais velha do que o homem. Há tendência para se ver como uma escolha da mulher. “Marca mais o empoderamento feminino, ainda é contracorrente.” A mesma situação pode ser vista de forma diferente conforme se trate de um homem ou de uma mulher. O preconceito do género, nesta questão das idades, não desaparece de um dia para o outro.
Os fantasmas e o interdito que o tempo não afasta
Catarina Mexia, psicóloga clínica e terapeuta familiar, reconhece que houve mudanças, uma maior abertura da sociedade em relação à diferença de idades no amor. “Até uma compreensão melhor do que são essas relações”, afirma. Esses relacionamentos sempre existiram, sempre se levantaram interrogações. O homem ser mais velho, ou bastante mais velho, do que a mulher nunca foi uma situação reprovada, até pelo próprio lugar dado às mulheres, de cuidadoras, donas de casa, mães a tempo inteiro. Os séculos passaram, as perceções também.
Catarina Mexia lembra-se de quando a atriz Demi Moore saltou para as capas da imprensa internacional por assumir o namoro com um rapaz mais novo. “Deu-se relevo a essa relação quando ainda não havia essa visibilidade. A reboque dessa projeção, essas relações tornaram-se mais aceites.” Há outras histórias mediáticas, como o relacionamento de Emmanuel Macron, presidente francês, 25 anos mais novo do que a mulher.
O estatuto social feminino ganhou outra dimensão, as mulheres saíram de casa, investiram nas carreiras, o casamento não serve apenas para ter filhos. O ideal de beleza mudou também, as mulheres cuidam-se mais, envelhecem mais tarde, têm maior consciência das alterações do corpo na relação sexual. Nos casos da diferença de idade há, no entanto, situações que ultrapassam a questão do amor. “São relações que têm algumas questões. Por vezes, há uma diferença de objetivos em fases diferentes da vida, de crescimento da vida pessoal.” E isso tem peso. O estigma social não se esbate completamente e a diferença de idades numa relação pode ser olhada como contranatura. Segundo Catarina Mexia, há esse interdito na sociedade, fantasmas que se carregam durante demasiado tempo, que passam de geração para geração.
O ator Carlos Areia tem 76 anos e a atriz Rosa Bela, namorada e companheira, 28. São 48 anos de diferença esmiuçados e espremidos publicamente quando começaram a aparecer juntos em cerimónias com câmaras de televisão e flashes de máquinas fotográficas. Rosa Bela tinha 16 anos. “Na altura, um bocadinho a medo do que estava a sentir, por insegurança, por o Carlos ser uma pessoa tão conhecida, menti na idade”, assume. Houve gente na sua terra, em Aveiro, que fez questão de corrigir o número, publicamente também. Os sentimentos entre os dois eram claros.
“Partimos para este relacionamento muito conscientes do estávamos a assumir”, garante Rosa. O problema estava na cabeça dos outros. “As pessoas é que complicaram, nós resolvemos as nossas diferenças, compreendemos as nossas diferenças. Mas houve alguns comentários que fizeram mossa, sobretudo os que envolviam a nossa família”, recorda Carlos. Ao longo do tempo, tornaram-se um dos casais-exemplo de que a diferença de idades não perturba o amor. Recebem testemunhos e mensagens de vários casais. “É engraçado que começaram a ver-nos como um exemplo”, diz Rosa.
Carlos tem duas filhas mais velhas do que a namorada. Uma tem 54 anos, outra 46, e tem três netos. “Nem dá muito jeito que lhe chamem madrasta”, brinca o ator. Rosa não ignora a diferença de idades e a experiência de vida é um dado importante. “Claro que se sente a diferença de idades, eu vejo as coisas de uma forma, ele vê de outra. Ele já passou por muita coisa.” Rosa já pensou ser mãe, Carlos falou-lhe das exigências da profissão. “Puxou-me um bocadinho à realidade e resolvemos bem esse assunto.”
Namoram há 12 anos, vivem juntos há dez, na margem sul do Tejo. Conheceram-se num programa de televisão, ele fazia sketches de comédia, ela estava na figuração, no público. Conversaram sobre teatro, paixão comum. Rosa tinha deixado Aveiro e estava em Lisboa com vontade de começar uma carreira como atriz. Rosa apaixonou-se pelo espírito leve e jovem de Carlos, pelo seu sentido de humor e pela maneira como leva a vida. Carlos ficou preso à garra e vontade de Rosa, ao seu entusiasmo por começar um caminho no teatro.
No ano passado, em dezembro, houve pedido de casamento com anel num bombom num jantar no restaurante, surpresa de Carlos no dia de aniversário de Rosa. Ainda não há data para o enlace, a pandemia suspendeu os planos. “Estamos à espera que o vírus se vá embora, não queremos ninguém de máscara, queremos que as pessoas se possam beijar e abraçar”, solta Carlos. Querem uma festa simples, com os mais próximos, para oficializar e reforçar um amor de 12 anos e 48 de diferença. Sem estigmas e sem preconceitos.