Rui Cardoso Martins

Nem sabes

(Ilustração: João Vasco Correia)

Esta violência toda, lembrou um amigo do polícia, agravou-se quando foi operado à próstata, ela chamava-lhe “cobarde”, “és um nojo”, e ouvia-se ao fundo o choro do filho mais novo. Um dia, o polícia começou a mostrar aos amigos as mensagens, e nem era preciso, a mulher reenviava os insultos para outras pessoas. No início do julgamento, outro amigo do polícia disse o mesmo:

– Quando recebia alguns telefonemas e mensagens, mudava o semblante. Ficava triste. Depois começou-me a mostrar.

– Lembra-se do que é que diziam?

– Meritíssima, diziam és isto, és um merda… nem para… serves.

– Nem para quê? Pode dizer.

– Com todo o respeito pelos meritíssimos juízes, “nem para foder serves”.

Todos os dias novidades do mesmo.

– Quando estava de serviço, era aos dois e três telefonemas de cada vez. Ainda ontem falei com ele e ele diz que continua a receber mensagens. Uma vez, ele vinha com o colarinho para cima. Eu vi o pescoço todo arranhado. Ele disse que tinha sido agredido numa discussão. Agredido pela esposa.

Ela às vezes parecia não ser assim.

– Fui com a minha família ao centro comercial Colombo e encontrei-o com a esposa e o filho mais novo. Ela parecia uma pessoa tão prestável! Depois, ele disse-me: quando está com os outros é uma coisa, mas comigo é outra coisa.

Entrou um homem magro, de voz calma. No fim do depoimento, engolia um pouco a saliva, e a voz tropeçava em cordas, nas vocais e nas mentais. Era o filho mais velho do polícia.

– Era minha madrasta. Já estão divorciados. Quando ele se casou, já eu era maior. Ele começou a andar com ela quando eu tinha 11 anos. Eu fiquei sempre na minha avó paterna.

– E o seu pai e a sua madrasta discutiam?

– Nesse tempo não. Sempre foi uma relação um bocado intensa. Como é que hei-de explicar? Eu apaguei muito do que estava para trás. Por exemplo, na festa de aniversário do meu irmão, era dia de semana, chegámos lá à hora marcada e a mãe tinha ido ao cinema, e comprar o bolo… Eram dez da noite e ainda não estava em casa. Outras vezes, saía para tomar banho e nós, os convidados, é que púnhamos a mesa.

O filho mais velho do polícia viu uma discussão e essa chegou. Estava a sua mulher com uma gravidez de risco. Telefonaram porque o irmão tinha saído de casa em pânico.

– Vi uma discussão muito acesa e o que realmente me marcou foi ela estar a desejar a morte do meu pai, com um olhar tresloucado. E eu disse ao meu pai: “desculpa lá, mas aquilo que eu vi… eu não ficava aqui nem mais um minuto”.

Sobre as mensagens, eram “cartas de escárnio e maldizer”.

– Que ele não prestava, que era um inútil, sempre a deitar abaixo. E insultos. Desde cabrão, peço desculpa, a filho da puta, energúmeno, este tipo de adjectivos. Aliás, eu acabei por bloquear a P. Qualquer coisa relacionada com o meu irmão era sempre um rastilho. Qualquer reacção era reenviada para pessoas diversas. A intenção, no fundo, era destruir o meu pai.

– E eles discutiam os dois?

– Nunca vi ninguém discutir sozinho, sinceramente. A P. é uma pessoa que insiste, insiste, e repete, repete.

– O seu pai também usava estas expressões: “puta, vaca”?

– Que eu tenha assistido, não.

Um dia, o polícia foi trabalhar com um arranhão no pescoço.

– Foi no dia em que o meu irmão fez 18 anos. Como era normal nos dias de festa, havia sempre discussões acicatadas. Nesse dia, a prenda da mãe ao filho foi chamar a polícia para controlar o filho. Eu não assisti porque a certa altura afastei-me. Não estive lá nesse dia, a polícia era chamada como moeda de troca: não fazem isto, chamo a polícia. Quando a polícia era chamada para ele, ele suportava o peso do mundo em cima dos ombros. Quando passou para o lado do filho, começou a perceber que aquilo tinha de mudar.

Divorciaram-se há um ano. Um dos amigos do polícia:

– Dizia-lhe “nem sabes foder”. Ele foi operado à próstata em 2010 e foi a partir daí que as coisas se complicaram mais. Ainda ontem ele me disse que as mensagens continuam.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)