Rui Cardoso Martins

Nem és boa mãe

(Ilustração: João Vasco Correia)

No Vale do Silêncio, aos Olivais, uma razoável porção de floresta e de relva caiu do céu no intervalo dos prédios, plantando silêncio. Agora ouvem-se cigarras de Verão, pedais e travões de ciclistas sem capacete, crianças de bola na mão que gritam “mas o campo não tem balizas!, não faz mal!”, um casal de máscara no queixo, lá em cima uma mesa de piquenique com um trio de bêbedos (uma mulher e dois homens) que tenta contar uma história divertida em inglês, uma esplanada de café meio cheia e um parque de diversões encomendado ao planeta Tatooine, o deserto de infância de Luke Skywalker, uma casinha semiesférica de porta redonda e as fitas de plástico pandémico da polícia rebentadas para se poder brincar. Há choupos, um carvalho cerquinho que faz a bondade de trazer ao pescoço a placa “Carvalho Cerquinho, quercus faginea, comum na Península Ibérica e Marrocos” e de repente, no cimo da colina, prédios de habitação esguios e brancos como torres de treino dos bombeiros.

Do outro lado da estrada, perto deste silêncio, já no meio de prédios, lixos, pombos, árvores-da-borracha e o rododendro lilás e venenoso, há outro parque muito mais pequeno. Há dois anos e meio, no Inverno, um grupo de rapazes e raparigas encontrou-se. Estão agora no tribunal.

Chego perto da porta da sala e ouço a procuradora:

– Mas o senhor ouviu a expressão do arguido que… a Ana não era boa mãe.

– Mas isso foi só no final.

Daí a segundos saía da sala de julgamentos um rapaz de ténis, compondo o boné futebolístico na nuca e a máscara no nariz, e mandavam entrar outro rapaz quase igual. Entrei também eu, sentei-me na cadeira limpa de cruz higiénica (todos os assentos à nossa volta são de “não sentar”) e vi que, no banco dos réus, estava um terceiro rapaz magro e tatuado, com as patilhas rasadas à máquina. Escutava a testemunha, que vinha dizer ao tribunal:

– Que idade é que tem?

– 19 anos.

– E o que faz na vida?

– Neste momento estou a ajudar o meu pai, que é canalizador.

– Gostaria que nos relatasse quando é que aconteceu, o que presenciou, o que é que sabe?

– O dia exacto, não me recordo bem. Foi no início do ano.

– A que horas foi?

– Já depois de almoço.

Foi num parque entre duas ruas, a dele e a do amigo acusado.

– Eu estava com o meu amigo Ricardo, mais um amigo e um menino que é filho dele, à espera da mulher para vir buscar o filho.

– A Ana. Sabe se ele tinha combinado alguma hora para se encontrar com ele?

– Sim, sim. Ele chegou e ligou a ela e ela disse: “Dez minutos, estou aí”. E demorou uma hora, uma hora e tal, duas horas, e depois quando apareceu o menino estava a dormir já, ao colo. E ela começou ali aos gritos, o menino acordou…

– O menino estava a dormir ao colo de quem, do pai?

– Não, duma testemunha, que faltou.

– Da Mariana?

– Sim. Estava a dormir ao colo da Mariana e a mãe do menino começou a discutir, houve ali um bate-boca…

– E sabe quem começou a discussão?

– Não, um bate-boca. Não houve discussão-discussão. Foi só uma boca, uma boca e acabou ali. Acho que ela não gostou muito de ver o filho ao colo de outra pessoa.

E de novo descreveu a cena: telefonema de Ricardo para a mulher, ela a dizer que eram dez minutos, e passou uma hora, hora e meia, duas horas. Quando chegou, arrancou o filho a dormir:

– Eu não quero o meu filho ao colo de outra!

E o Ricardo terá dito:

– Desculpa, mas tu nem sequer és boa mãe.

Foi assim que tudo se passou, disse a testemunha. Não ouviu Ricardo a dizer puta, nem vaca, nem o viu cometer agressões várias, nada viu do que veio acusado. Uma coisa vi eu: o rapaz tinha dentro da cabeça, lá no fundo como a água no poço, a ideia do que é ser boa mãe. Saberia também o que é um ser bom pai aos 18 anos?

Foi junto ao Vale do Silêncio, mas tanto, tanto ruído.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)