Não sobrecarregue os seus filhos com atividades (os especialistas explicam porquê)

Ilustração: Sérgio Condeço/WHO

Da escola para o futebol, o piano, o inglês e muitas outras atividades, as crianças ficam demasiado ocupadas e sem tempo para terem liberdade, para desenvolverem a criatividade, para fazerem as suas próprias escolhas ou para brincarem. E brincar é oxigénio para os mais pequenos.

O tema é debatido recorrentemente e suscita dúvidas. As crianças estão demasiado ocupadas? Têm o tempo todo preenchido e sem alternativa para o que realmente importa para o seu desenvolvimento? Os especialistas acham que sim.

Como noutras áreas de comportamento, não existem fórmulas universais nem regras estanques. Maria José Araújo é professora da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto (IPP) e investiga esta área do brincar e do tempo livre há muitos anos.

“As crianças têm de ter oportunidade para brincar e divertir­‑se, visando os propósitos da sua educação e do seu bem­‑estar”, explica. E se na teoria isto é algo que se percebe, na prática, com a logística diária, vidas atarefadas, pais à beira de um ataque de nervos entre os afazeres familiares e profissionais diários, tudo se torna mais complexo. “As crianças dependem dos adultos, dos pais, dos educadores, não decidem sozinhas e ficam à espera que alguém lhes dê essa possibilidade”, sublinha.

“É fundamental que se perceba que brincar é como respirar para as crianças. Estas só aprendem porque brincam”
Maria José Araújo
professora e investigadora

Na maioria das vezes, só querem brincar. É a atividade que melhor conhecem desde tenra idade. Mas, no dia­‑a­‑dia, passam demasiado tempo na escola, chegando a ocupar os finais de tarde com atividades desportivas ou de complemento ao estudo. Resta pouca margem para dar largas à criatividade, tão importante no crescimento. “É fundamental que se perceba que brincar é como respirar para as crianças. Estas só aprendem porque brincam”, explica a professora.

Mas o que são afinal os tempos livres? Será que as atividades em que as crianças estão inscritas são consideradas como tal? Afinal, a sigla ATL sugere isso mesmo. Esta designação deve ser entendida como o tempo em que a criança pode dedicar a atividades não estruturadas.

Na incessante tentativa de ocuparmos os miúdos, nem sempre recuperamos hábitos mais simples que podem criar verdadeiro tempo de qualidade em família

“As estruturadas (inglês, guitarra, ginástica, etc.) são fundamentais para a aprendizagem, em termos intelectuais, sociais, físicos, mas nessas a criança não tem liberdade. Os tempos livres são essenciais para que aprenda a lidar com a frustração”, explica Catarina Mexia, psicóloga e terapeuta do casal no Centro de Estudos da Família e Psicoterapia.

Na incessante tentativa de ocuparmos os miúdos, nem sempre recuperamos hábitos mais simples que podem proporcionar verdadeiro tempo de qualidade em família, como fazer um bolo nas tardes frias de domingo. Sem complicar muito. Ou, pura e simplesmente, não fazer nada.

“As crianças não estão habituadas a parar. Não fazer nada é fazer alguma coisa. Para­‑se, respira­‑se, ou pura e simplesmente descansa­‑se”, sublinha a psicóloga. Não é incomum ouvi‑las comentar que não têm nada para fazer. Mas, afinal, “o tédio é fundamental para a criança descobrir coisas diferentes para fazer”, salienta a médica pediatra do Hospital dos Lusíadas Joana Appleton Figueira.

“Brincar é a única forma que a criança tem de aprender quando é pequena, mesmo na sala de aula”
Maria José Araújo
professora e investigadora

Além da importância de as crianças terem os seus tempos livres e de não estarem demasiado ocupadas, não é menos relevante deixá­‑las escolher em vez de serem os pais a fazê­‑lo.

“Estamos muito preocupados com a escola, temos uma sociedade hiperescolarizada, e isto não é errado. A escola é fundamental, mas no tempo curricular que está previsto na lei. Nas restantes horas, as crianças, que gostam de fazer muitas coisas, deveriam ter a oportunidade de escolher algumas das suas atividades”, defende Maria José Araújo, que, já em 2009, publicava um livro a alertar para esta realidade, intitulado Crianças Ocupadas, editado pela Prime Books.

Nas aulas que leciona, no IPP, dedica uma unidade curricular a esta questão e uma outra relacionada com a motricidade e o bem­‑estar, de forma a alertar os alunos de hoje, educadores de amanhã, para a valorização do tempo livre como algo essencial para a vida das crianças. O objetivo é formar futuros professores sobre a questão do brincar e da ocupação das crianças após o horário letivo.

Os estudos provam que quando as crianças escolhem o que fazer, e os pais respeitam essa escolha, as crianças não se cansam tanto e usufruem em pleno

Quando as atividades nem sempre correspondem ao que a criança deseja, acaba por ser frequente a desistência. É esse, aliás, um dos motivos que levam mais os pais a recorrer às consultas de Catarina Mexia. “A preocupação que aparece mais em consulta é o que se passa com os filhos, porque é que não persistem e desistem facilmente. A questão é que os pais não estão a ouvir os filhos”, alerta.

Estarão os pais e as escolas a programar o tempo das crianças de forma rígida e exagerada?

“As atividades organizadas são habitualmente propostas pelas instituições e escolhidas pelos pais. Os estudos provam que quando as crianças escolhem o que fazer, e os pais respeitam essa escolha, as crianças não se cansam tanto e usufruem em pleno”, explica Maria José Araújo.

Brincar implica correr, estar ao ar livre, interagir com os amigos e outras crianças. Isto nem sempre é possível em algumas escolas tradicionais. Algumas delas têm espaços condicionados, o que torna também o tempo de recreio mais limitativo.

“A música, a ginástica, o inglês e todas as atividades são realizadas em espaços fechados. As crianças passam de um espaço fechado para outro. No entanto, há muitas escolas e muitas instituições que têm muito cuidado e que fazem um espaço notável ao proporcionarem recreio ao ar livre, idas ao parque, organizam passeios, caminhadas, brincadeiras e jogos no exterior”, adianta a professora.

Por vezes, e porque os pais estão a trabalhar e não têm quem vá buscar os filhos à escola ao final do tempo de aulas, a brincadeira é substituída por “salas com poucas funcionárias para o número de crianças e com uma televisão para os manter quietos. Ou então, em ATL que são prolongamentos da escola, com salas semelhantes e onde se fazem trabalhos de casa”, sublinha Joana Appleton Figueira.

“Queremos muito que as crianças sejam responsáveis, mas não desenvolvemos a sua responsabilidade e autonomia. Porque isso pressupõe que brinquem e o façam com os outros”
Maria José Araújo
professora e investigadora

Na sociedade atual existe ainda uma enorme pressão com os resultados escolares, daí que se incentive o estudo. A típica frase: “Tens de ter boas notas para seres alguém na vida” é claramente identificada por cada um de nós. “As crianças já são ‘alguém’ no momento em que nascem. São pessoas de pleno direito. As preocupações dos pais são legítimas e levam‑nos a organizar as atividades que consideram que poderão vir a proporcionar mais oportunidades e um trabalho aos filhos no futuro. Queremos muito que as crianças sejam responsáveis, mas não desenvolvemos a sua responsabilidade e autonomia. Porque isso pressupõe que brinquem e o façam com os outros”, explica Maria José Araújo.

E se lhe disséssemos que a criança está a aprender enquanto o faz? “Brincar é a única forma que a criança tem de aprender quando é pequena, mesmo dentro de uma sala de aula”, acrescenta. Percebe­‑se então a quantidade de vezes em que os miúdos reforçam que querem brincar “só mais um bocadinho” e a insistência para que os adultos partilhem o momento.

Mais do que a quantidade de atividades, o tempo deve ser passado com qualidade e, se possível, partilhado com os pais. Com alguma organização mas sem exageros

Não existem receitas milagrosas nem números mágicos. O que pode ser o ideal para uma família, não tem de ser necessariamente para outra. “Para algumas crianças, principalmente as mais velhas, pode não haver muito tempo livre todos os dias, desde que, durante a semana, existam horas disponíveis para ler, conversar com a família e com os amigos. O tempo livre pode ser passado a ajudar os pais com o jantar sem tecnologias ligadas, enquanto conversam, e deve ser proporcionado diariamente às crianças mais novas, sem ecrãs, com poucos brinquedos acessíveis de cada vez (num quarto cheio, a criança nem consegue decidir com o que brincar)”, sugere Joana Appleton Figueira.

Mais do que a quantidade de atividades, o tempo deve ser passado com qualidade e, se possível, partilhado com os pais. Com alguma organização mas sem exageros. “Por vezes, é mais útil não programar tanto ao fim de semana e deixar acontecer”, conclui Catarina Mexia.

Leituras que ajudam

Numa sociedade contemporânea em que as pessoas estão cada vez mais ocupadas, sobra pouco tempo para se refletir sobre as melhores decisões que se podem (ou devem) tomar no dia­‑a­‑dia. No livro “Crianças Ocupadas”, a autora procura facultar aos pais um instrumento que lhes permita decidir o que é melhor para os seus filhos.

Crianças Ocupadas, de Maria José Araújo, Prime Books, setembro de 2009, 10,82 euros

“O quê?… Os adultos não sabem?” é um livro que resulta de um trabalho incluído num projeto de educação criativa desenvolvido ao longo de três anos com crianças do 1.º ciclo do ensino básico da escola EBl/JI do Cerco do Porto (Agrupamento de Escolas do Cerco). As crianças tentam explicar, à sua maneira, que precisam que as deixem brincar.

O quê? Os adultos não sabem?, de Maria José Araújo, ilustrações de Catarina Mendes, Prime Books, maio de 2010, 6,90 euros