Não é tanto a pandemia. É mais o que rodeia os mais novos

Crianças entre os seis e os dez ficam mais ansiosas. As redes sociais ajudam os adolescentes a manter contacto com amigos (Foto: STR/AFP)

Caso um. Em conversa com a psicóloga, uma criança questiona, inconformada: “Mas se as creches já abriram, até os restaurantes, porque é que não posso ir para a minha escola? Tenho saudades de estar com os meus amigos e com os meus professores”. Caso dois. Um menino vai com os pais visitar o novo primo. Lá chegado, recusa entrar. Mesmo com máscara. Explicação: tem medo de infetar o bebé.

Caso três. Uma criança já com antecedentes da ansiedade verbaliza a angústia que lhe tolhe o peito: “E se os meus pais, como continuam a trabalhar fora, ficam doentes e morrem?”. Caso quatro. Uma menina, fechada em casa há semanas para proteger o irmão que sofre de doença neoplásica, desabafa: “Estou farta de estar rodeada de mim mesma”.

Estes e outros casos têm chegado a gabinetes de psicólogos e pedopsiquiatras pelo país fora. Em tempos de covid, de semanas a fio de confinamento, de suspensão das aulas presenciais e atividades extracurriculares por tempo indeterminado, a pergunta emerge: que impacto pode a pandemia ter nos mais pequenos?

A questão encerra uma miríade de nuances, do contexto familiar a possíveis históricos de ansiedade e transtornos obsessivo-compulsivos. Ou simplesmente à faixa etária em causa.
Cristina Costa, psicóloga clínica que tem na infância e adolescência a principal área de intervenção, partilha a sua perceção.

“Aquilo que tenho sentido é que, no caso de crianças em idade pré-escolar, estão a gostar de estar em casa, sobretudo porque os pais têm mais tempo para elas. As crianças entre os seis e os dez anos é que já as tenho notado mais ansiosas. Depois, a partir de uma certa idade, torna-se mais simples porque já têm telemóveis e redes sociais mais acessíveis para manterem contacto com os amigos.”

A perspetiva de profissional é complementada pela visão de mãe. “Tenho dois filhos, uma com 11 anos e um com sete. A minha filha tem sido muito pragmática. Vai mantendo contacto com os amigos e diz que temos é de enfrentar isto. O meu filho já anda mais triste, mais ansioso. Ainda há uns dias os meus pais vieram cá e ele foi logo buscar o álcool, preocupado.”

Também a pedopsiquiatra Lia Moreira tem notado reações distintas consoante a faixa etária. “A maior parte dos miúdos até aos dez anos está bem em casa, até porque tem na família o núcleo central. A partir da adolescência já começa a fazer mais falta o grupo de pares.”

Realista e não alarmista

O contexto familiar tem um papel decisivo na forma como os mais pequenos lidam com as restrições próprias da pandemia. E mesmo com eventuais sequelas que ela possa deixar. “Se a criança está inserida num meio familiar em que as pessoas são alarmistas e os pais não conseguem gerir o que se está a passar, tendencialmente também não vai saber lidar”, aponta Cristina Costa.

Também aqui há nuances específicas que podem revelar-se decisivas. Eventuais dificuldades financeiras, tão prementes nesta fase farta em lay-offs e despedimentos, são um bom exemplo disso. Quando tal não acontece, e quando mesmo o medo do vírus e os cuidados a ter são normalizados, o prognóstico, ao nível do impacto nas crianças, é naturalmente mais risonho.

“Se a família conseguir filtrar as preocupações, os mais novos acabam por não ter medo. O impacto que a situação possa ter dependerá sempre da reação dos adultos e da forma como eles conduzem a comunicação que deve ser realista, mas não alarmista”, enfatiza o pedopsiquiatra Ivo Peixoto.

O facto de haver antecedentes – ou seja, de já se tratar de uma criança com um perfil mais agitado ou mesmo com transtornos de ansiedade – também pesa, pois. Ora, se a isso se juntar uma envolvência desfavorável, poderemos mesmo estar a falar de consequências a médio e longo prazo.

“Se crescer rodeada de mensagens catastrofistas, com uma perceção de insegurança, vai obviamente sentir um desconforto. No mínimo. Eventualmente, pode mesmo haver um impacto no desenvolvimento da própria personalidade. Poderão tornar-se adultos mais suscetíveis a potenciais ameaças e mais inseguros nas relações, menos capazes de aproveitar as coisas boas.”

O especialista tem notado um aumento do número de pais que leva os filhos a uma primeira consulta de pedopsiquiatria, e estima que parte considerável desta subida seja motivada por situações relacionadas com a covid. No entanto, não considera que o crescimento da procura se traduza numa degradação substancial da saúde mental das crianças.

“É verdade que tem havido um agravamento de patologias de base e o aparecimento de novos sintomas em miúdos potencialmente saudáveis. Mas isto também tem muito que ver com o facto de os pais estarem mais em casa e se aperceberem com muito mais facilidade das dificuldades que os filhos enfrentam. Nesta fase, os pais estão sem dúvida mais alerta.”

O tempo do confinamento, da convivência escolar e entre pares em suspenso até sabe-se lá quando, é também o tempo do contacto físico proibido, dos afetos negados, do distanciamento social altamente recomendado. Os especialistas concordam que, à exceção dos mais pequenos, que não têm noção das restrições, a ideia da prudência no toque é regra geral aceite e respeitada pelas crianças.

Mas o facto de se verem privados da proximidade física numa fase tão precoce da vida pode trazer consequências para o futuro? Mais uma vez, Ivo Peixoto entende que a resposta a esta pergunta terá mais que ver com a envolvência em que se encontram. “O risco deste distanciamento social, para todos nós, é fazer com que nos fechemos mais e percamos mais competências sociais. Quanto aos mais novos, é óbvio que se os adultos tiverem mais parcimónia, eles tendem a reproduzir esses modelos. Mas acho que isso terá mais que ver com o código de conduta que será adotado pela sociedade daqui para a frente. Os miúdos tendem a adaptar-se com facilidade.”

Para os mais pessimistas (ou preocupados), vale a pena assinalar a visão da pedopsiquiatra Lia Moreira. “Eu até vejo isto numa perspetiva positiva. Mesmo em termos pessoais, com os meus filhos, não tenho tido uma má experiência. Noto que brincam mais juntos do que alguma vez brincaram. E esta questão da responsabilidade social, do uso da máscara, do cuidado que temos de ter connosco e com os outros, esta capacidade empática, pode trazer influências positivas.”