Mulheres do fim do Mundo

Aos 70 anos, a fundadora da UMAR continua empenhada em dar voz ao movimento feminino.

Margarida já retirou da rua três mil animais. Sara enfeitiça o Mundo na sua cadeira mágica. Carla abre caminho entre as águas do desporto. Ana só está bem calçada nos sapatos dos outros. Mia educou, sem saber, 15 filhos na igualdade de género. Filomena concilia com mestria estudos e trabalho. Manuela há de ser ativista até que a voz lhe falhe. Alexandra mudou de vida e dedica os dias a bater-se pelas causas em que acredita.

Margarida Ferreira
A madre Guida dos cães

Desde 2013, a cabo da GNR de Bragança já acolheu, tratou e deu para adoção responsável mais de três mil animais.

Certo dia, vinha Margarida Ferreira mais a mãe da horta, em S. Sebastião, quando deram por ele deitado, caído, junto a uma passadeira, já sem forças, coberto de pulgas e carraças, o pelo encardido, em novelos. Pousaram-lhe os olhos e seguiram. Iam de carro, no dia 8 de junho de 2012. “Não”, disse Margarida a si própria, já a fazer marcha atrás. “Olha que o cão está morto”, avisou-a a mãe. Não estava. Só por dentro. São imagens que não esquece: aqueles olhos escuros, quase pretos, tristes. Muito tristes. Tinha sido abandonado. “Abraçou-me assim que me abeirei dele.” E já nada foi igual.

Estiveram um mês à espera que os donos aparecessem. Ninguém veio e Margarida registou o pequeno Tobias Manuel, caniche arraçado, branco e preto, em seu nome. Seguiram juntos, sozinhos, até ao final do verão do ano seguinte. A cabo da GNR, que em adolescente foi mordida num calcanhar, curou o medo aos cães com a doçura do Tobias. Quando deu por ela estava apaixonada por animais. “Via os outros desgraçados abandonados e comecei a retirá-los da rua também. Até chegar onde estou hoje.” Em sete anos, deu para adoção responsável mais de três mil animais, entre cães e gatos. “Mais cães.”

Faz agora um ano que adquiriu a expensas próprias um terreno para dele fazer uma casa de acolhimento. “Legalizei-o, vedei-o, pus-lhe cinco postes de luz, três poços de água que mandei furar e analisar.” Batizou-o de Matilha. A conta chegou aos 20 mil euros. São quatro mil metros quadrados, fora do perímetro urbano. “Para não incomodar ninguém.” Neste momento, estão lá cerca de 30 cães. “Amanhã podem ser 35, depois 25. Depende. Este ano já tive mais 150 adoções. Tudo via Facebook.” Entrega-os a todos chipados, desparasitados, com termos de responsabilidade, esterilizados e vacinados. Cheirosos e felizes.

As ajudas vão aparecendo. Os animais consomem 60 quilos de ração todas as semanas e 40 litros de água por dia. “Do meu ordenado saem, em média, 400 euros mensais.” Anualmente, “quatro a cinco mil euros para vacinas e esterilizações de urgência.” Margarida, doente crónica, sofre de artrite reumatoide e lúpus. Está há dois anos de baixa. “Isto é uma maneira de ir mantendo a cabeça a trabalhar e não pensar muito na doença.” Aproveita as alturas com menos dores para os limpar e dar-lhes mimo. Já não é uma questão de gostar. “Porque ninguém gosta de limpar a caca de cão e de gastar tanto dinheiro. Acudi-los quando precisam é uma missão.”

A maioria vai-lhe parar às mãos. “Vêm cá entregá-los ou ligam-me para o telemóvel. Jogam com os meus sentimentos.” Dizem-lhe: “Eu já tenho um, não posso ter mais”. Responde-lhes: “Então e eu que já tenho 30?”. Contudo, quase sempre os abraça. Principalmente aos que estão piores: sarnentos, com patas partidas, os mais maltratados. “Mediante o que posso.” Abraça-os tal como fez com Tobias. “Está a ficar velhote, coitadinho do meu menino.”

Ali por Bragança não há quem não a conheça. Sabem o que lhe chamam? “A madre Guida dos cães”, brinca Margarida, 47 anos. “Já mandei animais para Inglaterra e para o Algarve. No ano passado foram dois de avião para a ilha do Pico, nos Açores.” Normalmente, os novos donos mandam fotos, para ela ver como eles estão: “Não os entrego ao deus dará”. Aliás, se as adoções não correrem bem, Margarida volta a receber os animais. E assim, com a sua “Matilha”, vai sendo solução. O Canil Intermunicipal de Vimioso está a quase 50 quilómetros de Bragança. “As pessoas querem cãezinhos pequeninos e quando crescem deixam de lhes achar piada.” Em Margarida, pequenos ou grandes, encontram sempre amor. “A graça está aí.”

Sara Manso
Hermione Granger da vida real

Na sua cadeira mágica contorna as dificuldades e transforma os dias em luminosos arcos-íris.

Na saga Harry Potter, o feiticeiro de relâmpago na testa, inventado pela escritora inglesa J. K. Rowling, há uma personagem decisiva na luta do bem contra o mal. Hermione Granger é a mais inteligente da turma. Muitas vezes a líder do grupo. E por tudo isso muito respeitada.

Quando há 14 anos Sara veio ao mundo, Hermione já por cá andava a enfeitiçar a cabeça de muitas crianças que sonhavam ser como ela. A adolescente descobriu-a tempos depois e identificou-se. “É a minha personagem favorita.” Ambas carregam magia dentro delas, são filhas únicas e têm um gato. Só que Sara é uma menina real. Não tem vassoura, mas tem uma cadeira de rodas que a leva a todo o lado. Não tem varinha, mas tem um sorriso que desarma qualquer obstáculo. E, tal como a bruxinha, mete-se em mil aventuras.

Algumas sem se dar conta. Como o livro que está a terminar de escrever, no telemóvel. Coisa dos millennials. “Não tinha essa intenção, só depois me apercebi que estava a ganhar dimensão e que era interessante publicá-lo.” É sobre um rapaz e as suas férias. E mais não revela. Só aos mais próximos levantou o manto do segredo. O que dizem? “Incentivam-me a continuar, garantem que a leitura cativa, que estou no bom caminho.” Isso já ela sabe ou não estaria há quatro anos no quadro de honra da Escola Básica e Secundária de Artur Gonçalves, em Torres Novas. “Não tenho cinco a tudo, mas quase.” A inteligência aliada ao espírito de liderança fizeram-na neste ano letivo delegada de turma. “Não é a primeira vez. Também já fui subdelegada. Os meus colegas acharam que tinha capacidade de comunicação e que saberia desempenhar bem esse papel.”

Fora aulas e estudos, os tempos livres estão, na verdade, quase sempre ocupados. Coisa de bichos-carpinteiros. Não são deveres, são prazeres. O da escrita já conhecemos. Mas há também o desenho e o teatro. “Quando crescer, além de escritora quero ser ilustradora.” As primeiras obras estão expostas na página de Facebook “Rabiscos Floreados”, junto com um desabafo: “Quem diria que o desejo de querer sempre fazer mais e melhor daria origem a este meu cantinho de arte”. Para os interessados, arranjar autógrafos às quartas-feiras é que é mais complicado. É dia de ensaios no Teatro Virgínia. Prepara-se a peça de final de ano. Atenção, “é uma apresentação profissional”. Noutros anos, já foi a personagem principal, até foi Florbela Espanca. Agora, em “Dragão entre o Céu e a Terra”, representará uma deputada numa comissão parlamentar.

Mas o papel mais importante desempenha-o todos os dias ao ser uma criança fora do normal. É que embora a descrição que até agora leu encaixasse na perfeição num qualquer adolescente, a verdade é que Sara é tudo menos comum. Não por ter distrofia muscular congénita por défice de merosina. Isso é só uma característica que faz com que tenha menos força muscular, afetando-lhe a parte motora. O que a torna especial é a força mágica que usa para ultrapassar as dores. Na sua condição é preciso trabalhar diariamente para retardar a evolução da doença.

Por isso, além de todos os passatempos e obrigações, Sara tem quase sempre fisioterapia, terapia da fala, psicologia e terapia ocupacional. A mãe, Márcia, enche-se de orgulho. “Sempre foi muito forte, muito resistente, muito trabalhadora. Está sempre animada e a dar força a quem a rodeia. Toda a gente me diz que nesta idade os miúdos torcem o nariz às terapias que cansam. Algumas são dolorosas. Mas ela nunca quebrou. Nunca se queixou. Nunca inventou desculpas para faltar.” Muito pelo contrário. “Eu sei que tenho de ir. E agora, que algumas das terapias são em horários em que a minha mãe não pode levar-me, vou sozinha. Sou autónoma e isso sabe-me mesmo muito bem.”

 

Carla Cardoso
Nadar contra a corrente

É única no projeto paralímpico, na modalidade de natação, e não se crucifixa pelas muitas ausências em casa. Acontece com ela, podia acontecer com o marido.

Aretrospetiva é clara. Para este resultado contaram todos os pontos – “o bichinho da competição”, que lhe corria nas veias desde pequena, “e a forte herança deixada pelo pai, um jogador de futebol amador”. Por isso, hoje, como há 28 anos, não há margem de erro. Quando, em 1992, entrou na Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física, na Universidade de Coimbra, Carla Cardoso só carregava certezas na mochila. O apoio da família foi incondicional. “O curso foi ao encontro das minhas expectativas.” Sem medo avançou para o mestrado em Treino de Alto Rendimento, optando pela via do ensino.

Foi nessa fase que se começou a sentir um animal raro. “Dos 20 alunos, só sete eram mulheres. Dessas, só eu escolhi natação.” Quando acabou dedicou-se ao regime da competição pura. A partir de 2004, virou-se para a natação dos bebés e foi mãe. E em 2007 surgiu o convite para coordenar a equipa técnica da Feira Viva Natação Adaptada. Picada pelo desafio aceitou. Não há lugar para o estereótipo “coitadinhos, eles já têm de viver com tantas barreiras e a professora está a ser tão exigente”. Carla é exigente. “O objetivo é sempre a superação. Na minha equipa não há limites.”

O projeto tinha linhas claras desde o início: dotar as pessoas com necessidades especiais de uma forte vocação competitiva, baseada na formação e dedicação, dando a todos a oportunidade de desfrutar da emoção do desporto e da alta competição, aos mais elevados níveis, nacional e internacional. É a oportunidade de demonstrarem capacidades, independentemente das limitações. O histórico comprova o sucesso da missão.

Entre os vários recordes nacionais ao longo das épocas destacam-se a primeira vez em que a equipa se sagrou campeã nacional de verão, em 2008; a primeira participação na seleção nacional de Síndrome Down no 4º Campeonato do Mundo; um lugar na seleção nacional para o Campeonato do Mundo conquistado em 2017 por Ivo Rocha. Tudo isto tem obrigado a muito esforço pessoal de Carla Cardoso, que é também elemento da comissão de treinadores da Federação Portuguesa de Natação Adaptada, treinadora convidada da seleção nacional, diretora técnica da Down Syndrome International Swimming Organisation e professora no Agrupamento de Escolas António Alves Amorim, em Lourosa.

“Sei que perco muito do crescimento dos meus filhos, mas o que trago quando chego a casa também me enriquece, algo que posso partilhar com eles.” Não fosse o suporte familiar e tantas viagens e ausências seriam impossíveis ou um transtorno supremo. “Em casa a estrutura é sólida. Os filhos são exemplos como alunos e como pessoas, muito compreensivos. Tenho um marido e uns pais que me apoiam imenso.” Só falha mesmo algum tempo de ócio e lazer. “Há três anos que não tenho férias em família.”

A mãe vai alertando. “Olha que a vida passa.” Algo que, sabe, talvez não ouvisse se fosse homem. “As mães ainda são vistas como o pilar em termos de afeto. Eu faço a minha parte, mas não da forma que a minha mãe fez comigo. Os momentos que acompanho em casa faço-os bem, só não me crucifico por não estar presente em todos os jogos do meu filho ou em todas as competições da minha filha.”

A nível internacional, Carla é a única treinadora que acompanha os paralímpicos. “Os outros técnicos são todos homens. Ainda é um mundo muito masculino. Para uma mulher começa a ser mais normal, mas ainda sai fora da regra.” E, embora saiba que a sociedade ainda não está muito disponível para Carlas como ela, continua a insistir. “A mudança tem de partir de nós. Somos nós mulheres que temos de fazer ver que isto não é um bicho de sete cabeças e que conseguimos emocionalmente gerir bem estas situações. Espero estar a abrir esse caminho.”

Ana Perpétuo
À bolina das causas

De missão em missão, cá e lá, vai enchendo os caminhos dos outros com gestos de bondade.

Ovício das missões começou com um trabalho nas ruas de Coimbra, com toxicodependentes, onde foi coordenadora de equipa durante 16 anos, até que o projeto deixou de ser viável, nos idos magros tempos da Troika. Desempregada, disparou currículos para todo o lado. Nada. Em dezembro de 2015, surgiu a oportunidade de fazer voluntariado num campo de refugiados da Macedónia. Partiu. Só lá ficou 15 dias. “Meti na cabeça que não queria trabalhar mais com organizações internacionais, não me identificava.” No ano seguinte, arranjou nova missão. A título individual viajou para a Grécia, onde permaneceu alguns meses, apoiando principalmente sem-abrigo.

Em 2017, o destino foi a Sérvia. Aí a situação esteve negra. “Vim embora para não ser presa. Estive a fazer trabalho solidário considerado ilegal à luz da lei sérvia. Basicamente, eu e outro rapaz apercebemo-nos da quantidade de prostituição, pedofilia e dependência de drogas que havia entre as crianças. Então alugámos apartamentos onde púnhamos os miúdos a dormir. Cozinhávamos para eles, dávamos-lhes o que precisavam para fazerem a higiene pessoal, etc. Quando as autoridades descobriram, acusaram-nos, entre outras coisas, de tráfico de menores. Não tive outra alternativa senão voltar.”

O regresso a Portugal coincidiu com os incêndios de junho de 2017. O impulso de ajudar quem mais precisa voltou a saltar-lhe do peito. “No entanto, achei que havia muita confusão. Parecia-me que todas as ajudas estavam descoordenadas e optei por não me envolver muito. Até para não atrapalhar.” Quando o país mergulha novamente em outubro num mar de chamas o caso mudou de figura. Uma das zonas mais afetadas foi Tondela, terra onde o pai de Ana cresceu.

“Assim à maluca, como costumo fazer, e porque me foi sempre muito difícil assistir aos acontecimentos sem fazer nada, meti as mãos na massa. Havia tantos animais feridos que lancei um apelo no Facebook.” Em pouco tempo nasceu a Rede Pronta, um grupo informal de voluntários que tratou de arranjar ração para os sobreviventes. Não demorou muito até receber uma mensagem que possibilitou dar outra dimensão ao apoio. “Uma equipa de voluntários e de veterinários espanhóis assistiu à tragédia e vinha a caminho para ajudar.”

Os incêndios deflagraram em força no dia 15. “A 18 já estávamos no terreno a dar o nosso melhor.” Montaram uma espécie de hospital de campanha na aldeia para fazer curativos aos animais e para acolher todos os que precisassem de ficar internados. Durante cinco meses, Ana não abandonou Tondela. “Vivia literalmente lá. E o mais engraçado foi que ao ajudarmos os bichos ajudávamos as pessoas. Como almoçávamos e jantávamos todos os dias em casas diferentes percebemos que só o estar era muito importante para ouvir quem precisava simplesmente de falar.” O entrosamento com as gentes alargou-lhes horizontes.

“Passámos a fazer também distribuição de alimentos, roupas, mobiliário e donativos para ajudar a restituir às famílias o que haviam perdido.” Ana, hoje com 47 anos, recorda a “experiência extraordinária” que traz na pele. Ainda há meses voltou a levar sorrisos à terra. A história exige um recuo no tempo. Passados 15 dias após os incêndios de outubro nasceram dois cabritos no hospital improvisado pelos voluntários. Um grupo de espanhóis, que por lá apareceu para ajudar, quis logo comprá-los. Só que o dono não os quis vender.

“Um dia, aproveitaram a hora de almoço do pessoal e roubaram os cabritos.” Ana ficou possuída. “E como não desisto à primeira andei dois anos a seguir-lhes o rasto.” Foi assim que no ano passado os conseguiu recuperar com a ajuda das autoridades espanholas. Para esta mulher de causas só vale a pena entrar na vida do outro se for para a deixar melhor. Embora, garanta que, por norma, o que acontece é ficar com a sensação que recebe mais do que aquilo que dá. Desempregada, vai para cinco anos, desacomoda-se todos os dias.

“Continuo ligada às pessoas afetadas pelos incêndios porque persiste a necessidade de apoio material e social.” Com frequência, o grupo promove campanhas. Ainda no ano passado conseguiram plantar 600 árvores, num terreno onde todas tinham ardido. “Dizem-me que sou uma inspiração, mas eu não gosto de ouvir isso. Só me ponho no lugar do outro. Não sou nada, não faço nada. As pessoas com quem me cruzo é que têm sido especiais. E tenho a sorte de crescer com elas.”

Dona Mia
A mãe de Coura

Na sua “casa velhinha” criou 15 filhos com amor. Não há nome próprio que lhe assente tão bem como maternidade.

Há uma casa em Sequeirô, não muito longe do centro da vila, que pintaram de branco e adornaram com seixos. Chamam-lhe “Favela da Mia”. Está escrito no cimo da porta. É onde habita Maria Joaquina dos Santos Carvalho, matriarca dos “Tóti”, diminutivo do falecido marido, António. Conheceu-o com 15 anos. O pai, funcionário das finanças, em Paredes de Coura, é quem leva com as culpas. “Mandou-me trabalhar no café para ajudar a sustentar a família.” E assim lhe traçou o destino.

Tóti, um cliente já com 30 anos, apaixonou-se pela menina. E mais tarde a menina veio a derreter-se por ele. O pai torceu o nariz, mas nada pôde fazer. Casou a pequena e no ano seguinte foi avô. “Naquela altura, os filhos faziam-se como agora”. Podiam travar-lhes o nascimento, mas isso nunca foi intenção do casal. “Teríamos os que Deus quisesse.” E Deus quis que a Dona Mia engravidasse 19 vezes, perdesse dois filhos no ventre e desse à luz 17, tendo dois deles morrido depois, com pouco mais de um ano. “Tive-os todos em casa, com a parteira. Nunca fui para o hospital. Com o hospital gramo agora na velhice, que só dá problemas”, brinca.

Os tempos nunca foram de fartura. Tóti pouco recebia. Ganhava os dias como eletricista. Mia era mãe a tempo inteiro. Mas naquela “casa velhinha”, como a ela se refere, nunca faltou alimento. Nem à boca nem ao coração. E ainda havia bónus. Uma prenda no Natal e outra na Páscoa. Na sala de estar da habitação, remodelada com as mãos de todos os filhos, ainda há licor de tangerina, feito há mais de duas décadas pelo saudoso Tóti.

A Dona Mia, que cheira tão bem quanto as rosas de Santa Teresinha, entrelaça as mãos para desfiar com vagar aqueles dias tão preciosos. “Fomos dois amores que se juntaram. Mais feliz não podia ter sido, tivesse eu mais ou menos filhos, tinha um marido que era muito meu amigo.” Que cuidava diariamente da horta e fazia o almoço, para todos, aos domingos. E não se esquecia de lembrar à mulher a importância de cuidar dela. “Uma vez por semana lá ia eu arranjar o cabelo.”

Há coisas que vão esquecendo nos tropeços das agruras. A vida deu-lhe outras dores além das do parto. O marido morreu há 22 anos. Perdeu dois filhos no espaço de três meses. E ainda chorou a partida de um neto. Também passou por um cancro da mama, dois AVC e algumas quedas. Aos 87, confessa que perdeu alguma da paciência, não a candura do sorriso sereno. Gosta muito da cama, mas só quando chega a hora de dormir. Os filhos retribuem-lhe o carinho de uma vida. “Eu ainda cheguei a falar-lhes de ir para um lar, assim não dava trabalho, mas eles não querem. Então duas delas revezam-se para tratar de mim. Outro filho vem sempre de manhã ajudar a dar-me banho.”

A higiene é que não pode faltar. Nem as gotinhas de perfume. Os filhos que trabalham em Angola ligam todos os dias. Os Natais são uma festa. “Eu só quero vê-los felizes.” Às 13 crias que Deus lhe conserva, aos 21 netos e aos 15 bisnetos.

Mulher à frente do seu tempo, nunca ouviu falar do feminismo, mas praticou-o nos filhos. Repartia por igual as tarefas domésticas. Seis raparigas e nove rapazes. “Todos ajudavam. Todos trabalhavam.” Só o Eduardo não sabe cozinhar. “Não me considero uma grande mulher. Mas uma que soube dar furo à vida que teve. Educando os filhos e passando-lhes os valores do respeito.”

À geração moderna deixa conselhos. “Tenham paciência e não tenham medo aos filhos. A maternidade é muito importante. Dá trabalho, mas é bonita.” Palavras que saem do íntimo onde não há lugar para arrependimentos. “Se pudesse voltar no tempo, não fazia nada diferente. Gostei da minha vida. Fui muito feliz. Aquilo por que passei já passou. E tudo valeu a pena.”

Filomena Bessa
O sonho, essa estrela dourada

De que serve um curso na mão e a insatisfação no coração? Mais vale trabalhar e estudar, e tudo tentar para ser melhor e feliz.

Às vezes o sonho comanda a vida. Outras vezes é a vida que comanda o sonho. Filomena Bessa, 27 anos, natural de Vila Real, Filó para os amigos, aprendeu em oito anos de busca que ambas as frases fazem sentido. A história principia em 2011, quando, movida pelo sonho, ingressou no curso de Criminologia da Universidade do Porto. À medida que ia passando de ano, a paixão foi mirrando. Sustentavam-na as amizades, que foi forjando, e as ilusões que foi alimentando. “Talvez fosse possível, contra todas as expectativas, arranjar emprego na área.”

Quando acabou a licenciatura, corria o ano de 2015, a realidade foi ainda mais aterradora. Era como se a vida lhe dissesse que não era por ali. Seria por onde então? De regresso a Vila Real, dedicou-se a dar palestras sobre violência no namoro e igualdade de género, em parceria com organizações. Gostava da sensação de ver que as suas ações positivas tinham impacto nos outros. Mas isso por si só não a mantinha de pé. Precisava de uma atividade remunerada. Foi nesse sentido que começou a trabalhar no Rock Nordeste, o Festival de Música Moderna da cidade. Depois, acabou contratada por uma empresa que presta serviços ao Teatro de Vila Real. No meio do desnorteio surgiu a luz ao fundo do túnel.

“Comecei a perceber que talvez me encaixasse na área da saúde. Eu gostava de ajudar os outros.” Sem largar o trabalho como frente de casa no espaço cénico, cujos espetáculos são maioritariamente à noite, ingressou em 2016 na licenciatura de Enfermagem da Escola Superior de Saúde de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). O curso é exigente. Obriga a constantes estágios. “Tive a sorte de ter conseguido continuar num emprego com horários flexíveis, onde havia uma equipa rotativa e boa camaradagem, que me permitiam conciliar o trabalho e os estudos e fazer ambos bem e em simultâneo.”

Sem retaguarda talvez tudo se tivesse complicado. “Também vivo com os meus pais, não tenho responsabilidades acrescidas. Há quem esteja em situações mais complexas. Com filhos até. Quando já se tem uma família o peso é muito maior.” Apesar de ser verdade, isso não significa que tenha tido a vida facilitada. A jovem exigiu sempre muito de si. Ciente de que “nesta área, quanto mais soubermos mais e melhores cuidados se podem prestar”.

Em todo o caso, o tempo passou a voar. Filó, hoje com 27 anos, está no último semestre do último ano do curso. É a melhor aluna da turma, com uma média a roçar o 18. Em poucos meses terá a segunda licenciatura e, agora sim, “com toda a certeza” sabe que fez a escolha certa. “Estou muito contente, é uma profissão que me faz verdadeiramente feliz. E é uma oportunidade para sentir que posso fazer a diferença na vida das pessoas, todos os dias.”

As asas prestes a despontar até já sabem para onde voar. “Neste momento estou a repetir um estágio no serviço de Oncologia do Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, porque foi o serviço que mais me tocou e onde mais gostei de estar, apesar de muito sensível.” Enterneceu-a a rápida capacidade com que se cria uma relação empática com os doentes. “Não é o local mais feliz do mundo, mas é aquele em que mais quero estar e em que sinto que mais posso ajudar.” Mas não em Portugal. Porque as oportunidades são escassas.

“Talvez o caminho passe por emigrar. Para onde ainda não sei.” Cá ou em qualquer parte do mundo, há algo que aprendeu enquanto trabalhadora-estudante e que quer continuar a pôr em prática: “Podemos sempre trabalhar um pouco mais para tentar ser a melhor versão de nós mesmos”.

Manuela Tavares
Insistir, persistir, nunca desistir

Aos 70 anos, a fundadora da UMAR continua empenhada em dar voz ao movimento feminino.

Foi na aprendizagem diária dos setores mais desfavorecidos que Manuela Tavares despertou para as questões do feminismo. Nesse tempo longínquo, que agora traz à memória, forjou sem perceber a robustez com que sempre levou a vida. Começou quando era professora de economia, tenros 24 anos e já um filho nos braços. O trabalho ligava-a às mulheres do bairro onde alfabetizava. Veio a Revolução. O 25 de Abril fervilhava nas ruas. Todavia, dentro das casas o papel da mulher permanecia inalterado.

Primeiro sentiu os conceitos, só depois os entendeu teoricamente. “Elas tinham voz para irem às reuniões de comissão de moradores, mas em casa a sua opinião não era considerada nem respeitada.” Não tinham poder, só dever. “Lembro-me de algumas delas virem a correr para as aulas, atrasadas. Vinham só depois de deixar o comer pronto, caso contrário ouviriam raspanetes.” Os acontecimentos – vários, pequeninos, subtis – fizeram-na sentir que era necessário uma luta maior pelos direitos das mulheres. “Foi assim que me tornei feminista.”

A curiosidade crescente levou-a a procurar informação. Leu sobre os movimentos feministas da segunda vaga, que na década de 1960 saíram dos Estados Unidos. Leu sobre o Maio de 68 em França, ícone da renovação dos valores. E quando deu conta estava no primeiro encontro nacional feminista em Portugal – a 12 de setembro de 1976 –, onde a UMAR – União de mulheres Alternativa e Resposta foi fundada. Uma Organização Não Governamental representada desde 1977 no Conselho Consultivo da Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres.

O envolvimento no ativismo tem sido tão intenso que Manuela funde-se na UMAR e a UMAR nela. Em 44 anos, travou muitas lutas e o que não lhe falta são muitas outras para enfrentar. “As batalhas pelos direitos das mulheres, nesta sociedade ainda tão patriarcal, estão longe de terminadas. Precisamos de entender que são muito prolongadas no tempo. E quem não compreender isso desespera ou desiste facilmente.” Não ela, que aos 70 não cala a voz.

Não é cliché. “Ainda há mesmo muito a fazer”, apesar do estatuto social que foi sendo conquistado, “há leis mal aplicadas, discriminações raciais e contra as mulheres transexuais. As empregadas domésticas continuam sem direitos laborais. Falta empoderar as mulheres rurais. Há desigualdades salariais e esse cancro chamado violência doméstica.” Por isso, a UMAR sai à rua no domingo, 8 de março. Dia Internacional da Mulher. “Vamos desfilar com uma faixa que diz: Feminismo contra o machismo, racismo e LGBT fobia. As lutas têm de continuar.”

Para trás ficam outras, em que se envolveu ativamente. É o caso da despenalização do aborto. “Não sou exemplo para ninguém, há mulheres que todos os dias sofrem com situações pelas quais nunca passei. Essas é que são as resistentes. Eu só tenho sabido evoluir, e vou contribuindo como posso.” Em 2008, Manuela terminou e defendeu o doutoramento em Estudos sobre as Mulheres na especialidade de História das Mulheres e do Género, na Universidade Aberta, em Lisboa. Foi a primeira ativista feminista a fazê-lo.

No documento, que deu lugar a livro, estudou o período que vai de 1947 (quando o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas foi extinto pelo fascismo) até 2007 (data em que o aborto foi despenalizado no país). Desde então, vai sendo convidada a dar aulas sobre feminismo, em diversas universidades.

No currículo, acumula ainda os títulos de investigadora integrada no Centro Interdisciplinar de Estudos de Género e investigadora colaboradora no Centro de Migrações e Relações Interculturais da Universidade Aberta.

“O que eu posso representar no panorama atual é uma espécie de indicador da mororidade das lutas. Não tenhamos ilusões – é preciso persistência. Há quem desanime: há tanto tempo que estamos nisto. Recordemos quem lutou pelo direito ao voto, por exemplo. Quanto não levou até vencermos? O meu exemplo não é nada perante isto. Mas, enquanto me puder mexer, tentarei desempenhar bem um papel dentro da associação. Dentro da sociedade.”

Alexandra Alves Luís
Sem fronteiras para quem dela precisa

Parar a mutilação genital feminina é um dos principais objetivos. O racismo, a violência sexual e o desenvolvimento sustentável também estão na agenda.

Há 12 anos, a vida passou a ser outra. Alexandra Alves Luís, diretora ibérica de uma empresa internacional, não conseguiu mais fazer vista grossa ao machismo e mudou radicalmente o propósito dos seus dias. Os motivos iam-se acumulando na cabeça muito antes da volta de 180 graus. “Cresci num contexto de violência doméstica. Mais tarde, quando vivi em Espanha, não consegui ignorar o número de mulheres vítimas às mãos dos homens que passavam com frequência nos noticiários.”

O desconforto da passividade, a conivência de ser mais uma que sabia e não agia, tomou-lhe os fígados de assalto. A dor tornou-se crónica quando ao fim de uma volta ao mundo, que durou quase dois anos, se apercebeu, na primeira pessoa, da forma como as mulheres eram tratadas pelos homens, pelas sociedades. Alexandra não sabia o que ia fazer da sua vida, só tinha a certeza de que tinha de mudar. Coincidência ou não, precisamente nessa travessia pelo deserto, vai à Universidade Nova de Lisboa procurar cursos de verão. “E vi um cartaz que dizia: Mestrado em Estudo sobre as Mulheres.” A viragem começou nesse dia.

“Capacitei-me primeiro e depois fiz voluntariado em todas as associações onde podia aprofundar as questões que mais me motivavam.” Foram oito anos de aprendizagens, em contextos de formação vários, com diversas organizações. Quando se sentiu segura, avançou com um projeto próprio, juntamente com uma colega, para que pudessem intervir ativamente em áreas que consideravam prioritárias. Com as metodologias que achavam ser as mais adequadas. A Associação Mulheres sem Fronteiras nasceu em 2016.

Hoje, com uma família mais alargada, desenvolve um trabalho continuado em projetos de promoção da igualdade e prevenção da violência de género. Sendo o combate à mutilação genital feminina uma das grandes bandeiras. Desde 2014 as autoridades portuguesas registaram 394 casos de mutilação genital feminina. Destes, 129 foram detetados em 2019, mais 65 do que no ano anterior. “É vital trabalhar a prevenção da prática e também apoiar as mulheres que passaram por ela.”

Campanhas que a associação leva a cabo, por exemplo, em contexto escolar e nos territórios onde residem comunidades que podem ser afetadas por essa prática. “Muitas vezes, a rapariga não fala sobre o que vive e sofre.” O acompanhamento de saúde torna-se imprescindível. “É uma forma de as apoiarmos, mas também de as tornar ativistas no sentido de impedir a mutilação de outras meninas.” Paralelamente, são dadas formações a professores e assistentes operacionais, para estarem atentos a países onde se pratica a mutilação. E, na área da saúde, Alexandra Luís destaca a necessidade de sensibilizar os profissionais para serem capazes de ajudar nesses casos.

Os direitos humanos, o desenvolvimento sustentável, a capacitação de jovens das comunidades cigana, hindu, africana e afrodescendente, com o objetivo de as integrar nas atividades de lazer, envolvendo-as em projetos para as tornar também motor de mudança, dentro dos seus meios, são outros pontos- chave. “O reconhecimento dos direitos delas e o incentivo a uma vida ativa na sociedade são estímulos fundamentais para que um dia se auto representem.”

E, apesar de parecerem todos conceções muito básicas, a verdade é que, nos bairros dos arredores de Lisboa, onde a associação mais trabalha, esses conceitos não existem ou demoram a criar raízes.

A sensibilização e consciencialização para as questões ligadas aos direitos das mulheres abarca ainda a Rota Lisboa Feminista. Uma vertente mais cultural. “Fazemos passeios pela cidade numa perspetiva feminista, onde destacamos aspetos relevantes, como o local onde as mulheres votaram pela primeira vez, o circuito das feministas republicanas, o local onde foi julgado o processo das Três Marias, entre outros.” Alexandra Alves Luís e as Mulheres sem Fronteiras tentam chegar onde podem. “Porque a mudança só acontece quando nos envolvermos de verdade nas coisas.”