Rui era polícia, Stefan psicólogo, Sérgio trabalhava na indústria farmacêutica. Hoje, são três dos novos rostos da cerveja artesanal. O que começou por ser um hobby tornou-se num trabalho a tempo inteiro, sobretudo depois de ganharem prémios no Concurso Nacional de Cervejas Caseiras e Artesanais, cuja 8.ª edição arrancou no domingo, dia 8 de novembro, em Colares, Sintra.
As grandes mudanças começam frequentemente com um pequeno momento que quase passa despercebido. Para Sérgio Pardal, hoje com 52 anos, essa pequena centelha aconteceu numa noite fria de dezembro, em Londres, há sete anos. O executivo de marketing de uma farmacêutica vivia então na cidade e caminhava pela rua, ainda com restos de neve, em direção ao pub onde o esperava Rod. O amigo tinha-lhe feito um desafio. “Vou ensinar-te a beber cerveja!”, dissera-lhe, depois de Sérgio confessar que a típica cerveja britânica – com pouco gás e pouco fresca – não lhe agradava. “A caminho do bar, pensei: ‘O que menos me apetece, com este frio, é uma cerveja’. Mas, depois, no ambiente quente do pub, o pint chegou à mesa, dei um gole e comecei a perceber naquela cerveja coisas que nunca tinha percebido noutras. Um toque de cereal que me fez lembrar a sensação de comer um pão cozido em forno de lenha com a côdea a estalar e o miolo ainda quente”, conta. Esse momento foi o embrião da sua história de amor com a cerveja.
Agora, e desde há ano e meio, depois de ganhar uma das categorias do IV Concurso Nacional de Cervejas e de decidir abandonar a carreira na indústria farmacêutica, é dono do bar e fábrica de cerveja artesanal HopSin Brew Pub, no edifício da antiga estação do elétrico da avenida principal de Colares, em Sintra. É lá que produz e vende as cervejas engarrafadas Colares, Seteais e Blacksparrow, além de ter dez torneiras de cervejas sazonais, muitas delas em colaboração com parceiros locais, de forma a explorar os ingredientes únicos da região. “Temos, por exemplo, em fase de maturação uma cerveja feita em colaboração com a Adega Regional de Colares com 70% de mosto de cerveja e 30% de uva da casta autóctone malvasia. Um produto único”, desvenda o cervejeiro.
Sérgio Pardal define-se hoje como um “evangelizador da cerveja”, mas a sua história com a bebida começou de forma banal: em jovem apreciava uma cerveja bem fresca no verão. Só quando começou a viajar pelo estrangeiro e a experimentar outras cervejas é que percebeu que o mundo da cerveja não se resumia às lager geladas que bebia em Portugal. “Gosto de fazer analogia: nós temos imensas sopas, da canja ao caldo verde, passando pela sopa de feijão. Em Portugal, durante décadas e até há pouco tempo, só havia duas marcas de cerveja, elas que faziam sempre a mesma ‘sopa’. Era como, entre tanta diversidade, estarmos limitados a comer sempre canja.”
Há uma cerveja para cada um
A 8.ª edição do Concurso Nacional de Cervejas Caseiras e Artesanais realizou-se no domingo, dia 8 de novembro, na HopSin, em Colares, e volta a 14 de novembro na Praxis, em Coimbra. O evento, que este ano bateu o recorde de inscritos com mais de cem candidaturas, procura promover e divulgar a cultura cervejeira portuguesa e, tal como em anos anteriores, as receitas vencedoras são posteriormente produzidas por (re)conhecidas marcas portuguesas de cerveja artesanal.
Um dos cervejeiros que passou pelo pódio do concurso, em 2015, foi Rui Bento. E, em abril de 2019, deixou para trás uma carreira de quase duas décadas na Polícia Municipal de Oeiras para integrar a equipa da Cerveja Bolina como cervejeiro-chefe e responsável da marca. A maior parte dos colegas chamou-lhe “maluco”, por largar um trabalho estável, mas a verdade é que quando a proposta surgiu não foi capaz de dizer não. “Foi uma escolha ponderada, mas feita com o coração. Houve essa proposta, e não é que não gostasse da carreira que tinha, mas faltava qualquer coisa”, admite. Essa “qualquer coisa” era dedicar-se à cerveja profissionalmente e a tempo inteiro. “Até aí era um hobby e um part-time. Tinha a minha marca, a Amnésia, e comercializava-a, mas era uma coisa pequena, que fazia em casa e que tinha de conciliar com o trabalho.”
Por difícil que seja imaginá-lo, Rui Bento, de 42 anos, foi abstémio convicto de 2001 a 2014. “E isso foi porque bebi demais em 2001”, revela a rir. “No final do curso, em Coimbra, houve alguns exageros e não gostei muito da sensação de ressaca no dia a seguir. Optei por não beber durante uns tempos.” Esses tempos acabaram por ser 13 anos. Foi só em 2014, depois de um colega de trabalho gabar uma cerveja artesanal que comprara em Oliveira de Azeméis, que o então polícia quebrou o jejum. “Pedi-lhe que me trouxesse umas garrafas, provei e gostei. Achei que era diferente daquilo que me lembrava que era a cerveja.” Começou a ler sobre cerveja artesanal, fez uma formação e no dia 1 de novembro de 2014 ficou pronto o seu primeiro lote de cerveja, feita em casa. “Só beberam os amigos e os familiares. A minha mãe dizia que era a melhor cerveja do Mundo. Mas nós não podemos acreditar nas opiniões dos familiares e dos amigos”, observa. A verdade é que tinha jeito: ganhou o concurso no ano seguinte, lançou uma marca própria, a Amnésia, e tornou-se num nome conhecido no meio, o que lhe valeu o convite para se juntar à Bolina no ano passado.
Rui Bento tem uma convicção: não há ninguém que não goste de cerveja. “Há centenas de tipos e milhares de combinações que podem ser feitas. Por isso, existe de certeza uma cerveja para quem diz que não gosta de cerveja. Só ainda não encontrou a cerveja certa.” Um dos sítios onde o pode tentar fazer é no Bo Brewpub, aberto desde julho, em Marvila, Lisboa, e para onde a Bolina está também a mudar a fábrica, anteriormente localizada na Azambuja. Além das seis cervejas Bolina engarrafadas, o pub tem mais 18 torneiras com receitas que vão mudando. Não só cervejas da marca mas também cervejas convidadas.
Dar um empurrão à cultura cervejeira
Quem já encontrou muitas cervejas certas foi Bruno Aquino. No documento Excel em que mantém um registo de todas as que já provou estão anotadas cerca de 13 mil cervejas degustadas ao longo de mais de duas décadas. Aos 44 anos, é um dos rostos mais conhecidos da cerveja artesanal em Portugal, o organizador do Concurso Nacional de Cervejas Caseiras e Artesanais e autor do livro “Uma viagem pelo mundo da cerveja artesanal portuguesa” (Casa das Letras, 2019).
Foi num café na Bélgica, em 1998, que descobriu esse universo. “Sentei-me e pedi uma cerveja, como fazia cá. O funcionário, em vez de voltar com uma imperial na mão, regressou com uma carta que teria umas 300 entradas.” Surpreendido, optou por uma Trappiste Rochefort 10 – que ainda hoje continua a ser uma das suas preferidas -, iniciando aí o caminho e o interesse pelo mundo da cerveja.
Segundo as suas contas, haverá atualmente mais de cem marcas de cervejas artesanais portuguesas. E haverá mercado? Bruno Aquino responde com outra pergunta: “Quantas centenas de marcas de vinho diferentes existem nas prateleiras de um supermercado? Porque não de cerveja?” Para Bruno, há mercado para todas, sim. “Até porque algumas têm uma expressão nacional e distribuem para todo o país, mas outras são locais, vendem-se só no Minho ou só no Algarve, para um número mais restrito de consumidores.” E considerando o número de marcas, lojas e brewpub que têm surgido nos últimos anos, o especialista acredita que o mercado vai continuar em crescimento.
Para promover a cultura cervejeira em Portugal, Bruno Aquino organiza o concurso anual, workshops e outros encontros. Só não produz cerveja. “É um processo lindíssimo que conheço bem e que já fiz com amigos, mas cada um na sua especialidade.” E a especialidade de Bruno é mesmo a análise sensorial de cerveja, depois de uma pós-graduação tirada na Bélgica. O que implica avaliá-la do ponto de vista do aspeto, do aroma, do sabor e do palato, o gosto de fim de boca, para dizer aos cervejeiros o que pode ser melhorado. Isto porque as primeiras receitas precisam quase sempre de ser melhoradas.
“A primeira cerveja que fiz aqui no Algarve estava horrível”, confessa Stefan Hunold. O alemão, de 44 anos, esteve pela primeira vez em Portugal há década e meia, durante o programa Erasmus, e apaixonou-se. A namorada ainda esteve algum tempo a viver com ele na Alemanha, mas há oito anos decidiram voltar para Portugal e vivem em Lagos desde então.
“A primeira vez que fiz cerveja em casa foi precisamente para a minha festa de despedida na Alemanha”, salienta Stefan. Trouxe o pouco equipamento que tinha para Portugal. Depois de algum tempo de pausa, as poucas opções no mercado português levaram-no a retomar a produção na garagem de casa, só para consumo próprio e para os amigos. Depois, ganhou prémios no concurso de Cervejas Artesanais três anos seguidos e isso animou-o. Os trabalhos temporários que ia tendo não o preenchiam. E foi assim que acabou por arriscar “dar o salto” para o mundo da cerveja. Começou por fazer um estágio numa pequena cervejeira com restauração em Flensburg, a cidade mais setentrional da Alemanha, onde vivem os pais. “Quando voltei a Portugal, comecei a escrever um plano de negócio e a visitar fábricas. Nos últimos dois anos, tenho estado a produzir na fábrica de um amigo.” A sua própria fábrica, em Lagos, fica pronta nesta semana. “O primeiro dia de produção deve ser na próxima sexta-feira ou sábado”, diz com entusiasmo o produtor da cerveja MAN!A. O nome não é à toa. Stefan, ex-psicólogo e mediador de conflitos, apresenta-se como alguém que foi “um psicólogo-tratador-de-manias”, no norte da Alemanha” e “um criador e espalhador de MAN!As”, no sul de Portugal. A cerveja pode mesmo mudar vidas.