Millennials: mais vulneráveis, mas sem medo do burnout

A Organização Mundial de Saúde (OMS) designou oficialmente em maio de 2019 o burnout como um "fenómeno ocupacional" (Foto: Cristiana Milhão / Global Imagens)

Nunca foi tão falado como hoje. O esgotamento profissional afeta todas as gerações, mas os jovens adultos podem estar mais vulneráveis à exaustão física e emocional relacionada com o trabalho.

Corria o ano de 2017. Estávamos em agosto e o verão do Porto dava o ar da sua graça. Uma temperatura amena pontuada pelo perigo do nevoeiro à espreita no céu. Ana Milhazes conduzia para o trabalho no último dia da semana. Estava na Ponte da Arrábida a uma sexta-feira e teve um “apagão”: deixou de ver durante alguns segundos. “Foi uma espécie de ausência, mas continuei a conduzir”, afirma hoje à NM. Não parou nenhum carro à sua frente, nem teve nenhum acidente. Dias depois, o médico de família disse-lhe que tinha síndrome de burnout (esgotamento profissional).

“Estava a trabalhar 12 a 14 horas por dia na empresa e ainda trabalhava em casa nos meus projetos”, explica a também instrutora de ioga e fundadora do blogue “Ana, Go Slowly”, em que promove um estilo de vida minimalista e de desperdício zero. O resultado de uma vida rápida e cheia obrigava-a a dormir cerca de quatro horas por dia. A conjugação era desastrosa e “tinha tudo para correr mal”. O “apagão” na ponte foi a chamada de atenção para perceber que não podia continuar naquele turbilhão. Estava exausta.

Na altura com 33 anos, nascida na década de 1980 e integrada na chamada geração dos millennials (os nascidos após 1980 e até finais dos anos 1990), Ana Milhazes tentava dar resposta a todas as solicitações. “Sempre gostei de ter muitas coisas além do trabalho”, assume. O ambiente competitivo na empresa onde trabalhava como gestora de projetos, na área da informática, não ajudava ao equilíbrio físico e mental: lidava com clientes que não eram compreensivos, não encontrava apoio nas chefias e sentia-se cansada. Chegaram a dizer-lhe: “Mas tu não és professora de ioga?”. Despediu-se após dois meses de baixa, período em que tinha ataques de pânico diários.

Existe uma “Geração Burnout”?

A Organização Mundial de Saúde (OMS) designou oficialmente em maio de 2019 o burnout como um “fenómeno ocupacional”. A 11.ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças não o classificou porém como uma “condição médica”. “O burnout como definição é a exaustão associada à atividade laboral ou à principal atividade que a pessoa exerce a nível profissional”, esclarece Pedro Morgado, psiquiatra e professor da Escola de Medicina da Universidade do Minho.

Ana Milhazes despediu-se após dois meses de baixa, numa altura em que tinha ataques de pânico diários
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

Porém, foi a 5 de janeiro de 2019 que o site de notícias “Buzzfeed” fez soar todos os alarmes com a publicação de um artigo com o título “Como os Millennials se Tornaram a Geração Burnout”. A peça jornalística focada na realidade americana trouxe para a berlinda a vulnerabilidade dos jovens face ao esgotamento profissional. E, embora não se possa apontar números, os impactos nos mais novos estão a ser estudados e reconhecidos pelos profissionais.

“Nos últimos anos assistiu-se a um aumento dos casos de burnout. Se há uns anos acontecia a meio da carreira profissional (cerca de 15 a 20 anos), na última década tem vindo a verificar-se mais cedo (cerca de 5 anos)”, constata Cristina Queirós, professora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. A realidade pode ser explicada por um conjunto de fatores, que vão desde as exigências laborais às características da própria geração.

Aos 20 anos, Matilde (nome fictício) conseguiu finalmente pedir ajuda para o estado de ansiedade em que vivia permanentemente. A estudante de Medicina não conseguia relaxar e ficava stressada sempre que não estava a estudar. Quando estudava, o stresse também não diminuía. “Foi um ciclo vicioso, cheguei a um ponto em que não queria sair de casa e deixei de me relacionar com as pessoas”, relembra à NM. Falou com um professor do curso que a encaminhou para uma psicóloga.

Considerado um dos cursos mais exigentes do Ensino Superior em todo o Mundo, Medicina está associada “a níveis elevados de burnout, ansiedade e depressão”, admite o psiquiatra Pedro Morgado. Com o objetivo de conhecer melhor a realidade, a Escola de Medicina da Universidade do Minho tem há mais de dez anos um programa de monitorização e acompanhamento para alunos em risco de burnout. Os dados focam-se em vários cursos de Ensino Superior e os fatores de personalidade (relação com amigos e familiares, dificuldades económicas ou motivo para escolher os cursos) explicam em parte a vulnerabilidade dos jovens ao esgotamento académico.

Matilde, como se apresenta à nossa reportagem, é um dos muitos estudantes de Medicina que se debatem com níveis elevados de burnout
(Foto: Cristiana Milhão/Global Imagens)

Um estudo publicado pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada, em janeiro, avançava que metade dos alunos das universidades e politécnicos admitiam estar numa “situação limite” de burnout académico. Em Lisboa, durante o ano de 2012, apenas 15% diziam estar com um esgotamento. O valor estará atualmente nos 52%, segundo a investigação de João Marôco. Foi apenas no terceiro ano de curso que Matilde decidiu pedir ajuda. Até lá, achava que a ansiedade ia passar e que conseguiria resolver o problema sozinha. Fez psicoterapia durante mais de um ano e não tomou medicação.

Exaustos antes de ter um trabalho

Embora possa parecer estranho que um estudante universitário, ainda fora do mercado de trabalho, ou um jovem a iniciar carreira estejam mais vulneráveis ao burnout, a realidade não é assim tão descabida. “Esta geração já chega por vezes ‘exausta’ ao mercado de trabalho, pois teve um ritmo de vida mais acelerado e passou por crivos de elevada competitividade”, sublinha a professora universitária Cristina Queirós. Quando começam a trabalhar, a expectativa de realização profissional nem sempre se cumpre e o ritmo não abranda.

“As gerações dos anos 1980 e 1990 são diferentes das gerações dos anos 1950 e 1960, que beneficiaram do crescimento económico”, adianta Miguel Ricou, psicólogo e professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. A falta de estabilidade financeira e a expectativa de realização (não cumprida) mergulhou os millennials na sensação de que estão a falhar perante si próprios. “Hoje temos a sensação de que temos de ser bem-sucedidos em todas as áreas da nossa vida. Isso coloca uma pressão enorme”, diz Ana Milhazes, hoje com 35 anos.

A instrutora de ioga foi acompanhada por médicos de clínica geral e há um ano começou a fazer psicoterapia. Depois de não lidar bem com a medicação que lhe receitaram, Ana Milhazes descobriu na meditação e no contacto com a Natureza as fórmulas para encarar os reveses e preocupações da vida. “Vivemos num ritmo tão rápido que é quase normal estarmos ansiosos e sempre alerta.” Não voltar ao burnout e à depressão, que lhe chegou a ser diagnosticada, é algo “que tem de trabalhar todos os dias”.

O poder das redes sociais na redução do estigma

Se as redes sociais vieram contribuir para a comparação perante os outros, a geração dos millennials fez com que a Internet se tornasse uma amiga e transformou a saúde mental (ansiedade, depressão, burnout) numa luta individual e coletiva. E sem estigma. Ana Isabel Carvalho, 27 anos, mais conhecida por “Balolas”, nunca teve um esgotamento profissional, mas quando escreveu um texto em 2016 nas redes sociais sobre ansiedade falou para muitos jovens que se debatiam com a própria mente.

Ana Isabel Carvalho teve o primeiro ataque de ansiedade aos 17 anos e chegou a ter insónias de 32 horas
(Foto: Igor Martins / Global Imagens)

“Nem me passava pela cabeça que aquilo ia ser partilhado por toda a parte e que me iam chover centenas de mensagens de pessoas de todo lado a dizer que viviam o mesmo”, recorda. Balolas teve o primeiro ataque de ansiedade aos 17 anos, a uma semana dos exames nacionais do 11.º ano. Apenas passados alguns anos decidiu procurar ajuda. Chegou a ter insónias de 32 horas. “A ansiedade já fazia parte de mim e eu cheguei a achar normal andar medicada tantos anos.”

As mensagens que recebeu após a publicação do texto “O tormento de viver com ansiedade” fizeram perceber “a dimensão do tabu” da saúde mental. Ana Isabel Carvalho, jornalista de profissão, partilha frequentemente terapias ou artigos com os quais se identifica. “Costumo dizer que o meu lema é ‘sharing is caring’ (partilhar é cuidar), há sempre alguém que pode beneficiar daquilo, mesmo que comigo não tenha resultado. Ter opções é um privilégio”, frisa.

A forma como os jovens adultos olham a saúde mental é hoje menos envergonhada e menos estigmatizada. O amigo ou o colega de trabalho podem afinal estar a passar pelo mesmo. “As pessoas já falam sobre as doenças psiquiátricas de uma forma muito mais descontraída e isso é muito mais notório nos jovens, comparativamente com as pessoas mais velhas”, aponta o psiquiatra Pedro Morgado.

Clara Silva, ilustradora de 26 anos, tem muito trabalho publicado nas redes sociais. As mensagens “mais sérias” que publica semanalmente na sua conta de Instagram são uma luta contra a corrente do “positivismo tóxico” que paira na Internet. “É normal haver dias em que estamos mais tristes, em que sentimos culpa por alguma coisa que fizemos, em que nos incomoda a forma de agir de alguém.”

Frases como “todas as guerreiras têm as suas mazelas” ou “parabéns por seres tão forte”, inscritas em ilustrações, têm resultado em centenas de mensagens na caixa de correio de Clara Silva, mais conhecida por “Clara Não”. Mas a ilustradora tem noção de que não será a Internet a resolver os dilemas da mente. “Se alguém está com um problema grave, não são dois posts que vão resolver a situação, vão antes encorajar a pessoa a resolvê-la.”

Clara Silva, ilustradora mais conhecida por “Clara Não”, tem noção de que não será a Internet a resolver os dilemas da mente
(Foto: Pedro Kirilos / Global Imagens)

Os millennials são das gerações mais estudadas e comentadas do momento, seja em artigos científicos ou nas redes sociais. As expectativas depositadas por si próprios e pelos outros nem sempre são uma mochila fácil de carregar. “A minha geração veio ao mundo para libertar correntes e mudar paradigmas. Somos todos ovelhas negras, cada um à sua maneira e medida”, conclui Ana Isabel Carvalho.

Apesar de não ser considerado uma doença, mas uma síndrome que poderá estar associada a outro diagnóstico (ansiedade ou depressão), o burnout, de acordo com a professora universitária Cristina Queirós, tem sintomas que se manifestam mais frequentemente:

Sinais de alarme

• Exaustão ou esgotamento emocional
• Cansaço físico (“já não aguento mais”)
• Frieza emocional e cinismo
• Despersonalização ou desinvestimento na tarefa (“Tanto faz, fazer bem ou mal”)
• Diminuição da eficácia (cometem-se mais erros)
• Falta de perceção da competência própria e da realização pessoal (o que dantes dava prazer, agora é uma tortura)

Quanto ao facto de haver profissões mais suscetíveis ao esgotamento profissional, o psiquiatra Pedro Morgado elenca um conjunto de fatores claramente identificados e que explicam essa vulnerabilidade:
• Trabalho por turnos
• Imprevisibilidade do horário (dificuldade em conciliar com a vida pessoal)
• Baixa autonomia e capacidade de decisão
• Situações de injustiça na estrutura organizacional
• Sobrecarga laboral