Meritocracia: quando o elevador social avaria

A desigualdade está presente mesmo nos sítios em que parece não estar (Foto: Ilustração: MG/Notícias Magazine)

A ideia de que, se trabalharmos muito, alcançaremos aquilo que desejamos é apelativa. Infelizmente, não é totalmente verdadeira. Desejamos acreditar que “cada um tem aquilo que merece”, mas os factos contam outra história: as capacidades e esforço individual pouco podem contra a falta de oportunidades.

Apesar das nossas responsabilidades individuais, há questões demasiado grandes para serem resolvidas individualmente. E quando pensamos em pessoas bem-sucedidas profissional e financeiramente, mais do que saber “quem são”, importa perguntar “de onde vêm”. Em que lugar nasceram e quando. Quem as educou e o que estava à sua volta à medida que cresciam. Quem se cruzou no seu caminho. Que oportunidades lhes foram dadas. E para perceber o que constrói o relativo sucesso ou insucesso de cada um, há que começar por olhar para as condições de partida, o que implica olhar para o papel das desigualdades sociais.

“As desigualdades são por natureza multidimensionais. Intercetam-se e relacionam-se. A componente económica, nomeadamente as disparidades de rendimento e de riqueza, é muito importante, mas não é a única, ela relaciona-se com as desigualdades sociais, escolares e culturais, entre outras”, explica o sociólogo Renato Miguel do Carmo, diretor do Observatório das Desigualdades.

Este emaranhado de condições de partida desfavoráveis é tão forte que, considera o também professor no ISCTE, se torna difícil quebrar o ciclo de reprodução social. “Entre a geração presente e a futura, percebemos que não há grande evolução de mobilidade social. Sobretudo entre as classes mais desfavorecidas, os rendimentos, escolaridade e posição social dos filhos são geralmente idênticos aos dos pais. A probabilidade de uma pessoa filha de alguém de baixo rendimento e baixa escolaridade chegar, por exemplo, a dirigente de uma grande empresa é muito baixa.”

Um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), de julho de 2018, mostra isso mesmo: os que estão na base continuam colados ao chão porque o elevador social não funciona. Portugal é um dos países da OCDE com menor mobilidade social e o filho de uma família que se situe nos 10% da base da distribuição de rendimento demora cinco gerações a aproximar-se do rendimento médio do país, revela aquela análise.

Renato Miguel do Carmo é sociólogo, professor, diretor do Observatório das Desigualdades
(Foto: Ricardo Ramos/Global Imagens)

A desigualdade está presente mesmo nos sítios em que parece não estar. Tomemos como exemplo o acesso ao Ensino Superior. Parece ser baseado apenas no mérito de cada um – as notas que o aluno alcança. Mas é preciso perguntar: quem é que alcança as notas mais altas? E porquê? O estudo “A equidade no acesso ao Ensino Superior”, publicado em 2019 pelo think tank EDULOG, oferece algumas respostas: mostra que os alunos mais pobres não conseguem entrar nos cursos que exigem notas mais altas e estudam sobretudo nos institutos politécnicos. Diz ainda que 73 % dos estudantes de Medicina são filhos de pais e mães que concluíram o Ensino Superior.

“Atingir a média necessária para entrar em determinados cursos – como Medicina, por exemplo – é muito mais fácil para alunos oriundos de famílias com um background sociocultural e económico mais alto”, sustenta Renato Miguel do Carmo. “Dizer que o acesso é igual para todos e que chega mais longe quem tem mais capacidade ou trabalhou mais é uma falácia: as desigualdades de partida não são absolutamente deterministas, mas condicionam a trajetória do indivíduo. O capital escolar e cultural, num certo sentido, também se herda.” E um dos fatores mais determinantes para as hipóteses de sucesso das crianças é a escolaridade dos pais. “Faz toda a diferença ter pais que têm formação superior. Isso acaba por determinar as trajetórias escolares dos próprios alunos. E isso, por sua vez, vai dar origem a novas oportunidades ou não.”

Ou seja, os mais bem-sucedidos são aqueles que têm acesso às oportunidades que conduzem a ainda mais oportunidades e a mais sucesso. A isto chamou o sociólogo americano Robert Merton o efeito Mateus, com base no versículo 12, capítulo 13, do Evangelho de São Mateus: “Para aquele que tem, tudo lhe será dado e terá em abundância; àquele que não tem, até o que tem lhe será tirado”.

O poder da educação

“Meritocracia é uma farsa.” Assim começa o livro “The meritocracy trap” (A armadilha da meritocracia – tradução livre, sem edição em português) de Daniel Markovits, professor de Direito na Universidade de Yale e especialista nas área de direito privado, filosofia moral e economia comportamental. Segundo ele, a meritocracia tornou-se a aristocracia dos dias modernos e mais não tem feito do que perpetuar o modelo que diz querer combater.

Isto acontece, defende, sobretudo por razões de investimento educativo. “Enquanto uma escola pública típica nos Estados Unidos gasta cerca de 15 mil dólares por aluno por ano, na educação das crianças de classe média que a frequentam, as melhores escolas privadas gastam cerca de 75 mil euros. As crianças ricas beneficiam de uma educação extravagante que outras crianças não podem pagar. Ou seja: o investimento na escolaridade funciona”, sublinha em entrevista à “Notícias Magazine”. A isto o professor de Direito chama a herança meritocrática: o dinheiro investido em educação dá às pessoas diplomas sofisticados, que geram enormes rendimentos que, por sua vez, são investidos nos filhos, perpetuando o ciclo.

Daniel Markovits, professor de Direito na Universidade de Yale
(Foto: Stephanie Anestis)

Daniel Markovits sabe na prática o que é uma educação de elite: ele tem na parede dois diplomas da Universidade de Yale (nos Estados Unidos), um da London School of Economics e outro da Universidade de Oxford (ambas em Inglaterra). E foi precisamente por isso que se tornou muito autoconsciente em relação ao assunto e quis estudá-lo. “As crianças das escolas de classe média que frequentei eram tão talentosas quanto os alunos que conheci depois em Yale, mas não ascenderam à elite quando se tornaram adultos”, nota. Por outro lado, conta que, nos últimos anos, os seus alunos da Faculdade de Direito de Yale – um grupo muito privilegiado e com excelentes perspetivas de carreira – se tornaram cada vez mais conscientes de que o seu privilégio está ligado à exclusão de outros. Mais: que este sistema também acaba por prejudicá-los a eles próprios. “A desigualdade meritocrática enreda até mesmo aqueles a quem parece beneficiar. Mesmo para quem está no topo, ficar lá tornou-se muito mais difícil. Eles têm de frustrar muitas vezes as suas ambições autênticas e explorar-se a si próprios para sustentar a sua própria casta.”

Acabar com este sistema, segundo o autor, só é possível atacando em duas frentes: “Reduzindo drasticamente a lacuna entre os investimentos feitos na educação de crianças ricas versus todas as outras e investindo nos empregos de classe média, nomeadamente com o aumento de impostos sobre trabalhadores de elite e redução de impostos sobre os quadros médios”. Caso contrário, afirma, continuaremos a trilhar o caminho perigoso onde já nos encontramos: a sociedade tem uma razão poderosa para desconfiar das elites, a classe média ressente-se contra elas e isso abre caminho ao populismo.

Uma questão de sorte

As pessoas que chegam ao topo são quase sempre muito talentosas e trabalhadoras. Mas há outras igualmente talentosas e trabalhadoras que nunca alcançam um sucesso material significativo. E isto acontece também entre quem tem aparentemente condições de partida sociais, económicas e culturais semelhantes. Mas há quase sempre outros fatores, menos óbvios, que criam diferenças.

A seleção de atletas para equipas profissionais é, à primeira vista, uma área em que só mesmo o talento parece contar. No entanto, nos anos 1980, o psicólogo canadiano Roger Barnsley apercebeu-se de um fenómeno peculiar entre as equipas da primeira liga júnior de hóquei canadiano: cerca de 40% dos jogadores nasciam nos meses de janeiro, fevereiro ou março, cerca de 30% no segundo trimestre, 20% no terceiro, e apenas 10% nos últimos três meses do ano.

Por alguma razão, jogadores nascidos em janeiro tinham cinco vezes mais hipóteses de serem selecionados do que os nascidos em novembro. A explicação implica o chamado efeito da idade relativa: a seleção das crianças é feita considerando o ano de aniversário, mas uma criança nascida no início em janeiro é um ano mais velha que uma nascida em dezembro. Aos seis ou sete anos, isso representa quase sempre uma diferença enorme do ponto de vista de coordenação motora, força e maturidade. São os mais velhos, e não necessariamente os que têm maior potencial e talento, que têm mais oportunidades de ser selecionados. A sorte, o azar e as circunstâncias de vida desempenham o seu papel.

“Temos tendência para notar os ventos contrários contra os quais lutamos, mas dificuldade em reconhecer os ventos de cauda que nos empurram e ajudam”, garante Robert H. Frank, professor de Economia na Universidade de Cornell, em Nova Iorque (EUA), colunista regular de economia no jornal americano “The New York Times”. Ele é autor de mais de uma dezena de livros, entre eles “Success and luck: Good fortune and the myth of meritocracy” (Sucesso e sorte: o bom destino e o mito da meritocracia – tradução livre, sem edição em português), em que afirma que a sorte desempenha um papel muito importante nas nossas vidas sem nos apercebemos. “Aqueles que se saíram bem são propensos a ignorar alguns acontecimentos que consideram menores, mas que fizeram diferença no seu caminho até ao topo. Coisas como ter tido um professor influente que os ajudou num período conturbado ou ter recebido uma promoção antecipada porque uma colega mais qualificada foi para casa cuidar do pai doente”, exemplifica Robert H. Frank em entrevista por email à NM.

Robert H. Frank, professor de Economia na Universidade de Cornell (Nova Iorque), colunista do jornal “The New York Times”
(Foto: DR)

Este viés cognitivo, na sua opinião, começa na infância. “As pessoas consideram desde cedo que são pessoalmente responsáveis pelo que lhes acontece porque a maioria dos pais tenta ensinar os filhos a assumirem essas responsabilidades e a não esperarem que as coisas boas lhes caiam do céu.” Esta premissa não está errada, mas está incompleta. “É importante admitir a importância dos acontecimentos fortuitos na nossa vida. Os pais dos mais privilegiados também devem ensinar o valor da compaixão e enfatizar que qualquer um de nós poderia ser menos afortunado se alguns acontecimentos que não controlamos tivessem sido diferentes.”

Este reconhecimento não tem apenas uma função moralmente edificante, mas também um papel social muito útil: quando são levadas a refletir sobre a sua boa sorte, as pessoas ficam muito mais dispostas a contribuir para o bem comum. O professor universitário fez uma experiência que mostra isso mesmo: pediu a três grupos de pessoas que enunciassem algo bom que lhes tivesse acontecido na vida. Aos participantes do grupo 1 não fizeram mais perguntas, aos do grupo 2 pediram uma lista de três coisas que eles próprios tivessem feito para que essa coisa boa se tivesse concretizado, e aos do grupo 3 pediram uma lista de três coisas que outras pessoas fizeram para contribuir para isso.

“Todos os participantes receberam um pagamento modesto pela participação nesta experiência e, no fim, demos-lhes a oportunidade de doar parte ou a totalidade desse pagamento para uma instituição de caridade. As pessoas do grupo 2 (aquelas que listaram as maneiras pelas quais elas mesmas contribuíram para o bom acontecimento) foram as que doaram a menor quantia, enquanto as do grupo 3 (as que pensaram no contributo dado por outros) doaram a maior quantia. Os do grupo 1 (o grupo de controlo) doaram uma quantia intermédia”, pormenoriza.

É importante lembrar que Robert H. Frank é economista. Interessa-lhe perceber o comportamento humano não apenas como fim em si mesmo, mas também na justa medida em que influencia a economia. É por isso que lhe perguntamos qual é, então, a relevância económica de tudo isto. Ele é absolutamente perentório. “As sociedades que vão prosperar mais nos próximos anos são as que dão oportunidades aos seus cidadãos para realizarem seu potencial de forma mais plena. E a crença de que o sucesso depende apenas do mérito individual milita contra os investimentos necessários para proporcionar essas oportunidades”, assegura. “Aumentar o investimento público só é possível se as pessoas mais bem-sucedidas contribuírem de forma mais generosa com impostos, em vez fazerem lobby por impostos mais baixos”, conclui.