Os sapatinhos impacientes pendurados no fogão, o polvo que chegava de burro, os dias arrancados à labuta de todos os outros, o porco na vez do bacalhau, o chocolate quente e a rabanada a servirem de toque de despertar. As memórias de antigamente arrancadas ao baú de recordações dos nossos avós.
Sempre que a quadra festiva se anuncia, a casa de Flores dos Santos Leite, em São João da Madeira, vira vila de Natal em ponto pequeno. Há casinhas e figuras múltiplas, neve de faz de conta e pequenos carrosséis, réplicas de ursos polares e chupa-chupas a decorar a grande árvore ao pé da escadaria, uma tonelada de luzes e um comboio que vai girando devagar, qual toque de primor num cenário arrancado a um conto de fadas natalício. Há até soldadinhos de chumbo em ponto maximal a guardar a imponente porta da entrada.
“A minha filha e o meu genro todos os anos pensam num Natal diferente. Este ano o exterior da casa é inspirado no ‘Quebra-Nozes’ e o interior é um mundo de neves, carrosséis e luzes. Até parece que estou aqui no meio da neve suíça”, brinca simpaticamente o médico, cabelo branquinho branquinho a denunciar-lhe os 94 anos de vida. Tempo de sobra para viver um Mundo de mundos de Natal, tantos deles tão distintos da festa como ela hoje é.
Já perto do século de vida, Flores dos Santos Leite insiste em manter-se ativo. Vai ao consultório quatro horas por dia, dá as suas caminhadas (10 a 12 mil passos por dia), cuida da pequena quinta que tem em casa – “tenho aqui umas beringelas, uns pepinos, ainda hoje estive a preparar a terra para as próximas culturas” – e ainda colabora com dois jornais e uma revista cultural. Também a memória continua a responder ativamente sempre que o médico sanjoanense a invoca.
Por isso, lembra-se bem dos primeiros natais que viveu, coisa “simples”, umas 20 pessoas à mesa, os oito irmãos, os pais, as empregadas, a religiosidade inevitavelmente presente. “Não havia propriamente a figura do Pai Natal, era mais o menino Jesus. E não se dava grande valor às prendas.” Recorda-se, ainda assim, de ir pendurar o sapatinho no fogão e de os pais carinhosamente lhes negarem os instintos mais curiosos, impedindo-os de ir espreitar antes do tempo.
E lembra-se como se fosse hoje de uma das primeiras prendas que recebeu. “Durante o ano andei a tentar juntar dinheiro para o comprar um barco de folheta, mas não consegui. Depois, na altura do Natal, puseram-me lá o barco.” Flores tinha uns seis anos. Mas o barco haveria de durar, pelo menos, até aos 20.
Não esquece também que todos os anos iam ao pinhal buscar a árvore, que “tinha de ser obrigatoriamente restituída à Natureza por alturas dos Reis Magos”. E de terem umas decorações tímidas, “umas coisinhas religiosas”, uns santinhos, uns bonequinhos, um azevinho. “Luzes não me recordo, também na altura não havia grandes posses.”
Entretanto, veio o Natal na casa dos sogros. E uma forma original de receber as prendas. “Havia uma corda que vinha da cozinha para a sala de jantar. Depois, à hora prevista, puxava-se a corda e caíam as panelas todas, era uma barulheira imensa.” Como que um toque de despertar para tentarem a sorte no sapatinho. De lá para cá, rolaram umas quantas décadas, que se encarregaram de traçar uma “diferença abissal”.
“Agora é tudo mais sofisticado. Como somos muitos, distribuímos centenas de presentes. Começamos à meia-noite e estamos até às quatro, cinco da manhã.” Só que este ano há uma pandemia. “Pois, terá de ser tudo mais programado…”, admite o bisavô Flores, no único momento em que o entusiasmo natalício ameaça esmorecer.
“Árvore de Natal? O que é isso?”
Santulhão é uma pequena aldeia cravada no nordeste transmontano, exatamente no concelho de Vimioso. São perto de 50 quilómetros quadrados à míngua de gente, um aglomerado de ruas desertas, entregues ao ar gélido que nesta época do ano invade Trás-os-Montes. Santulhão é terra de azeite e fumeiro, de gente que vive da agricultura e da pecuária e sobrevive em grande parte à custa do que a terra dá. Há 80 anos ainda mais.
“Nos meus tempos de menino era tudo muito pobre, muito precário. Ninguém fazia festas de anos, muita gente nem sequer sabia quantos fazia”, recua José Padrão, 83 anos, um quarto deles sem arredar pé de Santulhão. Depois, rumou à cidade. Mas volta sempre. Desde que se lembra de ser gente que ali passa a quadra festiva. Mesmo que as primeiras memórias natalícias tenham pouco de… natalício.
“Na altura não havia eletricidade na aldeia, não havia rádio, não havia jornal, não havia uma bicicleta. O Natal era a ceia um bocadinho mais reforçada, a fogueira no adro, a Missa do Galo, pouco mais do que isso”, recorda o transmontano, num rebuscado exercício de memória. Era também a matança do porco, que ajudava a reunir a família. “Sempre que havia uma matança íamos uns a casa dos outros para ajudar.”
Quem se juntava também eram os rapazes da terra, na altura uns 20 ou 30, para garantirem sustento à fogueira que haveria de iluminar (e juntar) a aldeia em plena noite de Natal. “Andávamos todos a puxar o carro de bois, às voltas para apanhar os troncos que estavam espalhados pela terra.” Só que naquela altura Santulhão não tinha alcatrão, nem passeios, era só um imenso manto de terra, a resvalar facilmente para o lamaçal. Está bom de ver que, em pleno inverno, a busca pelos troncos lhes valia um magote de barro até ao joelho. Nada que beliscasse o encanto da tradição. “Era muito engraçado.”
Na ceia de Natal, já reinava o bacalhau, comprado fiado no soto. “Era a casa comercial da aldeia, onde havia um bocado de tudo. Mas não se pagava logo. Anotava-se no livro e depois no verão, quando se faziam as colheitas, o dono do soto ia de porta a porta cobrar o dinheiro.” Por vezes, também havia polvo, ia um senhor vendê-lo à aldeia, umas quantas caixas de madeira cheias dele montadas no burro.
Já o almoço de 25 significava, por norma, o “regresso ao normal”. O caldo de todos os dias, portanto. A panela ao lume com as batatas, as nabiças e a gordura do porco. De doces, José Padrão só se lembra de uns “espalmadinhos e redondinhos”, feitos no forno a lenha. E árvore de Natal? “O que é isso? Então se não havia eletricidade…”, questiona, em tom de brincadeira. Já para não falar nas prendas. Ou na falta delas. “Eu nem sabia quando fazia anos! Fui ouvindo falar no sapatinho porque havia lá gente mais evoluída, por assim dizer. Mas acho que só comecei realmente a receber prendas já com as minhas netas.”
Os dias iguais, o mundo tão diferente
Para Odete Isabel, 80 anos cobertos de genica e boa-disposição, o baú de recordações dos primeiros natais encerra memórias de uma realidade distinta, feita de dias tão iguais. “O Mundo era tão diferente do que é hoje. Eu nasci numa família de comerciantes, de fortes valores morais, para quem o trabalho era absolutamente fundamental.” Os pais eram peixeiros, vendiam porta a porta e o Natal não era exceção à labuta diária.
Por isso, “eram dias iguais aos outros”, resume Odete, mealhadense de coração, farmacêutica reformada há já uns anos, recordando que a situação financeira da altura também não fazia apetecer grandes festas familiares. Por isso, eram sempre os quatro, ela, a irmã e os pais. Mas o que faltava em fartura e distinção sobejava em carinho e afetos. “Para nós sempre foi uma época de amor e solidariedade. Foram estes os princípios que os meus pais nos incutiram e que nós sempre defendemos e cultivámos. O respeito pelo outro sempre foi algo que norteou a nossa vida.”
Odete lembra-se do jantar tradicional, com o bacalhau, as couves, as batatas. Das filhoses e do arroz-doce da mãe. De saírem os quatro, já tarde, porque a Missa do Galo não podia faltar. Do Natal festejado à volta de uma grande fogueira que se fazia no largo da igreja, feito recreio alegre das crianças da altura. “A partir daí, caminha.” No dia seguinte, bem cedo, os pais voltavam a sair. Não faltava quem quisesse comprar peixe mesmo em pleno dia de Natal. “Mas faziam sempre questão de vir almoçar connosco.”
E o resto do dia era passado em família, no aconchego do lar. Anos depois, Odete mudou-se para um colégio de freiras em Anadia. E entrou para o coro. Daí que a tradição da Missa do Galo em família se tenha mudado para lá também, ela orgulhosa dos dotes vocais, os pais babados da filha cantante.
Depois, “cada um seguiu a sua vida e as coisas foram-se modificando”. Anos mais tarde, exatamente a 12 de dezembro de 1976, já lá vão 44 anos, haveria de fazer-se a primeira mulher presidente de Câmara em Portugal. Não casou nem teve filhos. Mas a irmã deu-lhe três sobrinhos “maravilhosos”, que a mimam como ninguém. Ela devolve em amor, em presentes também, mas sem excessos nem loucuras.
“Dá-me um gozo enorme dar-lhes prendas, mas não preciso dos dias 24 e 25 para isso.” E assume claras preocupações face ao consumismo desenfreado que nos invade por estes dias. Ainda mais em tempos de covid. “Face a esta pandemia, toda a gente deveria pensar como deve gastar o dinheiro porque ele vai fazer falta. Estamos perante uma avalanche de desempregados e olho com muita preocupação para esta situação mundana desta torrente de prendas.”
“Cada um punha o melhor que tinha”
Aos 82 anos, Maria Antónia Lopes vive bem no centro de Lisboa, quase paredes-meias com a Avenida da Liberdade. Mas a infância, a adolescência, o início da vida adulta, tiveram pouco de citadinas. Maria Antónia fez-se senhora em Giões, freguesia do município de Alcoutim, bem plantada na zona serrana do Algarve. Por isso, as tradições de Natal que recorda pouco têm que ver com as de hoje.
“Lá na província, no campo, era mais a matança do porco. Umas vezes fazia-se antes e no Natal já se comiam os enchidos, outras vezes fazia-se no dia e comia-se a carne do porco assada, dependia do que dissessem as luas.” E as filhoses também não podiam faltar. Em casa de Maria Antónia, eram oito, os pais e seis irmãos. Não havia fartura, muito menos luxos, mas sabe bem que “nesses dias, cada um punha o melhor que tinha”.
E que se juntavam todos à lareira para enganar o frio da serra, os mais velhos a entoarem canções votadas ao Deus menino, um imenso conforto a aquecer-lhes o corpo e a alma. “Era um Natal muito alegre.” Mesmo sem prendas como as conhecemos hoje. “Tenho uma ideia de pormos o sapatinho à lareira, mas só recebíamos uns rebuçados e umas guloseimas.” Também não havia árvore. Ou decorações. Mesmo a missa não era certa, porque na freguesia não tinham padre.
Foi só depois de se mudar para Lisboa, já após os 20 anos, que conheceu grande parte das tradições natalícias que hoje segue. O bacalhau incluído. “Nós é que acabámos por levar essas tradições de Lisboa para lá.” Durante décadas, Maria Antónia voltava todos os anos. No Natal, então, não podia falhar. A princípio viajava de camioneta. Realça que era um dia inteiro para lá chegar. Depois, passou a ir de carro. Até que os pais morreram e deixou de ir de vez. Agora, passa sempre o Natal em Lisboa, com os irmãos.
Este ano é que ainda não sabe. Culpa da covid, pois. “Eles querem que eu vá, mas ainda não decidi”, confessa, algo receosa, sem conseguir escolher entre o Natal de antigamente, modesto na serra, e o de agora, moderno e citadino. “Agora tenho os sobrinhos, há muitas prendas, é uma festa. Mas quando passava com os meus pais e nos juntávamos todos também era uma grande alegria”, evoca, a saudade a querer saltar do baú de recordações que gentilmente abriu para nós.
Um carro dos bombeiros de folheta
Filho de pai alfaiate e mãe cozinheira, “gente pobre que trabalhava hoje para comer amanhã”, Joaquim Queirós, matosinhense de 86 anos, ainda tem bem presentes os natais de catraio, o aconchego das pequenas coisas a fazer-se tão maior do que todos os luxos que por ali escasseavam. Como a cestinha que todos os anos recebiam, diretamente do tio do Pinhão, vila plantada no coração do Douro vinhateiro. Trazia amêndoas, uvas e uma garrafa de vinho fino.
“Porque o meu tio Joaquim trabalhava para a família Cálem.” A chegada da cesta do tio Quim trazia também uma mensagem clara, sem margem para erro: o Natal já andava à espreita, ia apresentar-se pela certa numa questão de dias. Joaquim recorda-se bem. Da ceia, por exemplo. Que obrigatoriamente começava fora de horas porque o pai “tinha de ultimar as fatiotas” que seriam para os clientes exibirem no dia seguinte. Por isso, já passava das nove da noite quando a mãe punha a panela ao lume, a cozer as batatas e o bacalhau, ao mesmo tempo que preparava a aletria e as rabanadas. Já tarde, sentavam-se à mesa, o “pai cansado”, a “mãe afobada” com a azáfama de preparar a consoada.
Nada que minorasse a magia do quadro. “Naquela noite até os pratos pareciam mais bonitos.” Mesmo que a aletria fosse servida numa travessa velha, “já consertada pelos agrafes do amola tesouras e navalhas”. O fim da ceia trazia o “momento de maior festa entre a família”, com o jogo do rapa “comprado na loja do Russo”. Só depois iam dormir, assim lhes permitisse o entusiasmo movido pelas lembranças que estavam para chegar na manhã seguinte.
Joaquim Queirós, jornalista aposentado, memória aparentemente à prova de bala, ainda recorda o presente que recebeu com cinco anos. “Naquele ano, abençoados pais, o velhinho das barbas colocou nas minhas sapatilhas o carro dos bombeiros, de folheta, que tanto ambicionava.” E ele a desfrutar, sempre com rabanada e a chávena de chocolate quente servidas pela mãe.
Joaquim salienta que, na altura, já havia “as ceias com múltiplas iguarias nas casas vizinhas, os gestos do Pai Natal com coisas ricas”, mas garante que nada o fazia mais feliz do que “o Natal das simples batatas com bacalhau, a aletria, as rabanadas e o chocolate quente pela manhã no receber emocionado da prenda humilde do Pai Natal”. Agora, vinca, tudo é diferente.
“É o momento do desperdício e o esquecimento daqueles que pouco ou nada têm”, lamenta, antes de deixar uma prece em forma de conselho amigo. “Este ano o bacalhau e as rabanadas terão de ser acompanhadas com o bom senso do recato e o pedido ao Pai Natal que nos traga um saco cheio de saúde.”