
Vivemos uma situação sem precedentes que exige respostas inéditas. Todos os dias o país decide sobre o que nunca antes foi feito. Todos os dias se arriscam novos e delicados equilíbrios entre a urgência e o pânico, entre firmeza e o respeito pelas liberdades constitucionais, entre a necessidade imediata de conter o vírus e a prevenção da crise que virá depois. Não temos todas as respostas, mas uma coisa é certa: no fim de tudo isto, a nossa sociedade será diferente. A configuração desse país futuro depende, em larga medida, da nossa sabedoria para tomar decisões que reforcem os laços de solidariedade contra a clivagem social e que ofereçam segurança em vez de medo. Porque do medo nascem os piores monstros.
Comecemos pois a pensar no futuro a partir do pouco que já sabemos:
1. O SNS é o nosso verdadeiro seguro. Não é por acaso que, onde existem, os sistemas públicos de saúde se desenvolveram depois de graves crises, guerras ou epidemias. É importante reconhecer sem rodeios que, embora em alguns casos a saúde privada possa existir paralelamente ao SNS, a sua função principal é o lucro, não é a proteção do país numa situação de emergência. Pensem por alguns minutos no que seria a resposta ao Covid se o acesso a cuidados de saúde dependesse, como em tantos países, de uma rede dispersa, com diferentes qualidades de resposta, dependendo do preço que cada um pudesse pagar.
Pensem no que seria um Estado dependente da contratualização com privados de todos os recursos de que necessita, e no poder negocial que esses privados teriam. No Reino Unido, oito mil camas privadas poderão vir a custar ao Estado, cada uma, 300€/dia. Em Portugal, a rede CUF apressou-se a encerrar serviços de urgência e os seguros privados puseram-se ao largo.
Os hospitais privados dizem-se agora disponíveis para receber pacientes do SNS, mediante a venda dos seus serviços ao Estado. Hoje ninguém duvida que a resposta certa é reforçar imediatamente o SNS (mesmo que, se necessário, esses meios possam ser complementados por requisição civil dos grupos privados). Lembremo-nos, no futuro, que o SNS e os seus profissionais têm que ser respeitados e protegidos, porque serão sempre a garantia de que os melhores cuidados médicos estão ao nosso alcance. E esse é o verdadeiro seguro.
Não temos todas as respostas, mas uma coisa é certa: no fim de tudo isto, a nossa sociedade será diferente
2. A precariedade desprotege a sociedade. Em circunstâncias normais, os vínculos precários e informais já são uma forma de desestruturação social. Isso fica ainda mais exposto numa emergência, quando a ausência de contrato resulta numa proteção social minimal, que o Estado é obrigado a suprir sem a participação patronal (que é uma forma de justiça distributiva).
Nos setores com forte peso de trabalho temporário (grandes superfícies, call centers), a precariedade torna-se mesmo um risco de vida (manutenção de serviços supérfluos, intimidação, incumprimento de normas básicas de contenção do contágio). Se hoje sabemos que a defesa dos trabalhadores precários só foi possível porque o Estado interveio a nível excecional em várias áreas, lembremo-nos no futuro que contratos estáveis são, antes de mais, uma garantia de segurança para todos.
3. O controlo dos serviços estratégicos é importante em momentos de crise. A gratuitidade dos transportes públicos, a isenção do pagamento da luz (na Região Autónoma da Madeira) ou mesmo do estacionamento público já são uma realidade em vários pontos do país. A rapidez e abrangência destas medidas, que formam apenas uma primeira resposta à emergência, só foi possível porque esses serviços são diretamente controlados pelo Estado.
No futuro, ações mais abrangentes de proteção da população que envolvam outros setores estratégicos irão depender da negociação e compensação às empresas privatizadas que controlam a distribuição e comercialização de eletricidade, de combustível ou de comunicações e, em muitas regiões, os transportes.
Desde o momento em que o alerta foi dado, foi com as instituições democráticas que contámos para conter o vírus, para tratar a doença, para assegurar o salário dos que ficam em casa. À medida que o tempo passa e que a Economia paralisa, será necessário aumentar a abrangência da intervenção: proteger as empresas privadas da falência, os trabalhadores do desemprego, os mais vulneráveis da pobreza, e garantir que ninguém perde o acesso a serviços básicos.
Um pouco por toda a Europa, há Governos que tomam agora medidas de apoio às populações, que incluem a suspensão dos despedimentos e do pagamento de hipotecas, o fornecimento gratuito de serviços básicos gratuitos, a redução de impostos ou o apoio à tesouraria das empresas. Para tudo isto, os Estados necessitam de recursos financeiros e de mecanismos de intervenção, ambos muito limitados pelas regras europeias.
Mas, se de primeiros-ministros ouvimos frases determinadas, das instituições europeias nada. Sobram alusões infelizes a um “estado de guerra”, quando sabemos bem como a Europa deixa morrer, às suas portas, as vítimas de guerras verdadeiras.
Existe um mau precedente em Bruxelas, na resposta à crise anterior. Não esquecemos.
Devemos ao nosso país proteção, segurança, recuperação, e não o castigo da austeridade. E sabemos por onde começar: cancelamento imediato dos Tratados Orçamentais, um plano de apoio urgente aos serviços públicos financiado pelo BCE, proteção laboral e recuperação de mecanismos de fomento económico.