Marcas da luta, vincos na pele

Riscos na cara, corpos transpirados, pressão no nariz, feridas nas orelhas, batas encharcadas, viseiras embaciadas. O combate à pandemia alterou rotinas, trouxe novos fatos e adereços. Os dias e as noites no Hospital Pedro Hipano, em Matosinhos, são feitos de sangue, suor e lágrimas. E muitas emoções.

“Às vezes, choramos sozinhos”

Marisa Pinto | auxiliar de saúde

Vincos dos dois lados da cara, rosto transpirado, orelhas sem brincos, um clipe transformado em gancho que agarra os elásticos da máscara que sobem e ficam seguros no puxo do cabelo. É uma estratégia para evitar a pressão atrás das orelhas. A meio do turno, primeira ronda de higiene dos doentes terminada, as marcas são visíveis. Da máscara, da viseira, do equipamento.

“Muito cansaço, muita transpiração, não conseguimos chegar ao doente tão rapidamente, demoramos mais tempo, ficamos mais lentos, não conseguimos fazer as coisas à mesma velocidade.” É um arsenal em cima do corpo, já não precisa de ler os procedimentos para se equipar, tem tudo na cabeça. Nunca pensou que um vírus fosse tão danado para mudar rotinas. Por vezes, precisa de olhar duas vezes para reconhecer colegas apenas pelos olhos. As marcas físicas não lhe metem confusão. A dor é outra. “Emocionalmente é muito difícil”, confessa. “Às vezes, choramos sozinhos.” Tem 47 anos e dois filhos orgulhosos do seu trabalho.

“Temos o corpo a pingar”

António Barros | enfermeiro

Está no olho do furacão, na área de doentes com covid-19. O calor é intenso. “Vestimos a bata e ficamos suados, quando a tiramos para tomar banho temos o corpo a pingar.” Os elásticos deixam-lhe as orelhas a doer. O metal da máscara que gruda no nariz provoca marcas. Os óculos ficam embaciados com a viseira. Um dia pode ter 12 horas e meia de trabalho, durante um turno muda pelo menos cinco vezes de equipamento. Por vezes, as luvas rasgam-se. Concentração máxima. Tocar ali, tocar acolá. “Há ainda a dificuldade em falar com os doentes.” Dar o melhor de si.

A “catástrofe”, que usa em vez de pandemia, mudou tudo. “No corpo, as marcas desaparecem. As marcas na alma são pessoais, difíceis de passar.” É o primeiro dia do regresso ao trabalho depois de um mês infetado pelo novo coronavírus. Um mês no quarto de casa, sem contacto com a mulher, a filha e o filho. Um mês a esconder do pai que chorou quando finalmente lhe contou que esteve doente e ficou bem. Depois de dois testes negativos, voltou ao hospital. Tem 49 anos, 26 de enfermeiro. “É preciso gostar muito disto.”

“Estou preparada para tudo”

Palmira Teixeira | empregada de limpeza

Mais de 20 anos no Pedro Hispano, 40 na limpeza na área da saúde, nunca viu nada semelhante. Fato de pano, bata plastificada mais grossa por cima, touca, luvas, máscara, viseira que embacia com facilidade. Parece peso a mais num corpo pequeno e franzino com 58 anos de vida. As hastes dos óculos desconchavaram-se, mas lá se vão aguentando, a pele precisa de ser hidratada mais amiúde. “Estou encharcada, toda molhada, transpira-se muito.” Agora, toma banho no hospital quando acaba o trabalho, outro banho quando entra em casa, roupa toda para lavar.

É uma mulher de fé que pede proteção para todos. “Há momentos mais difíceis, ficamos mais em baixo, mas Deus disse-nos: levantem-se, temos de ajudar.” Artilhada dos pés à cabeça, esfregona na mão, Palmira não se deixa vergar. “Estou preparada para tudo.” Entrou ao serviço às oito da manhã, saiu de casa às seis, andou cinco quilómetros a pé, apanhou um autocarro e dois metros.

“Como se fôssemos astronautas”

Francisco Marrana | médico interno

Bata, dois pares de luvas, proteção nos pés, touca, viseira, máscara com aplicador para prender os elásticos na nuca e aliviar as orelhas. Muito calor no corpo. Marcas no rosto. Custa subir e descer escadas. Boca mais seca, menos oportunidade para beber água. Francisco Marrana, 26 anos, médico interno de cirurgia, sente que os doentes o encaram com estranheza. “O acesso ao doente é mais limitado.” Agora a visita aos pacientes é feita a eito, de uma vez. Tem de trocar luvas e avental constantemente, mais vezes do que era habitual.

As rotinas alteraram-se, os circuitos mudaram, o serviço abrandou na urgência. Tomam-se decisões de risco, operar ou não operar, avançar ou não avançar com terapêuticas, expor ou não expor os profissionais. “Tudo é complicado nesta altura.” Percebe que os doentes veem os médicos de forma excêntrica. “Olham para nós como se fôssemos astronautas.” Um pouco perdidos, sem saberem bem quem fala, quem cuida.

“As maiores feridas são emocionais”

Sofia Novo | enfermeira

“Uma secura descomunal na boca, parece que tenho uma mola no nariz, as viseiras embaciam, a bata suada, parece que corri cinco quilómetros. O próprio doente olha-nos como se fôssemos um extraterrestre.” Entrar numa enfermaria é como entrar num quarto de isolamento. Equipada dos pés à cabeça. Para proteção de todos. Sofia Novo, 31 anos, nove de enfermeira, tem marcas na testa, na cara, corpo suado. Teve feridas nas orelhas pela pressão dos elásticos. Por vezes, sente dores no nariz e nas articulações da cara, pelo constante repuxar da pele. Respirar custa mais. “É um desconforto muito grande.” Mas tem de ser. Todos no mesmo barco.

“Todos os dias há uma novidade, um protocolo a seguir, uma estratégia de procedimento.” É a pressão do tempo, os cuidados a prestar, as visitas suspensas, os telefonemas dos familiares dos doentes. No banho, tenta largar tudo, o fato encharcado, o peso dos dias. Quando sai do trabalho, a necessidade de desligar é tremenda. Não é fácil, nunca será. “As maiores feridas são emocionais”, confessa. Com lágrimas à mistura.

“Transpiração e desidratação”

Miguel Silva | auxiliar de saúde

Caiu ali de paraquedas, conta. Com a reformulação e adaptação para fazer face à pandemia, transitou para a área onde estão os doentes infetados por covid-19. Tem 19 anos, é auxiliar de saúde, assistente operacional há ano e meio, está numa zona com alta pressão. Máxima pressão, aliás. Num hospital virado do avesso, trata da higiene dos doentes, desinfeta vários locais dentro de uma nova farda com novos apetrechos, perante uma nova realidade. Sente-se cansado pelas atuais circunstâncias num contexto pandémico. Assoberbado.

A máscara causa uma ligeira impressão atrás das orelhas. “Muita transpiração e desidratação”, adianta. No início, foi estranho, muito estranho. “Mas acabei por me habituar.” No entanto, nunca lhe custou vestir o fato de trabalho e colocar os adereços. O que lhe dói é conviver com as vidas que se perdem para o vírus. Os seus dias podem ter 12 horas de trabalho. É a missão de Miguel. Com muito espírito de missão.

“Máscara selada no rosto”

Cláudia Santos | médica

Observar e avaliar doentes obriga a equipamento completo. Sempre de máscara na cara. “Selada no rosto.” A capacidade de respirar altera-se, há mais calor, mais cansaço. “Temos de estar com máscara no contacto com outros colegas. Não fazemos visitas ao mesmo tempo e fazemos tudo em contínuo.” O turno de hoje é de 24 horas, das oito da manhã às oito da manhã. Três horas depois de entrar, tem marcas no rosto, o nariz vermelho. Não são uma preocupação. “Nem penso nisso, quem escolheu esta profissão sabe que tem de ser, que é para o que for.” O corpo habitua-se. O que preocupa é o que se passa dentro do hospital, tratar e responder, e o que se passa lá fora, tratamentos condicionados por causa da pandemia. “Mudámos a nossa rotina, há vidas suspensas porque não conseguimos operar.” Médica há 13 anos, 38 anos de idade, é a incerteza que a inquieta. “Não sabemos como funciona o vírus, como vai evoluir, quanto tempo vai demorar, se teremos uma segunda vaga, quando voltaremos a uma vida de normalidade.”

“É uma estufa”

Igor Pinto | enfermeiro

O nariz anda sempre vermelho, as orelhas puxadas para a frente, a contrariar o estado normal, a máscara sem frinchas. “É uma estufa.” No início, chegava a casa com dores de cabeça por causa da saturação do ar. Já andou com uma farda rente ao corpo, das que parecem de papel, a desfazer-se. Não é o peso, é o desconforto. Não é tanto a componente técnica, cheia de procedimentos, é sobretudo a frustração, o desgaste, as mortes. Igor, 34 anos, 11 de enfermeiro, trata de doentes infetados por covid-19. Passou da ala C do serviço de cirurgia para a linha da frente da luta. O que mais lhe custa é embrulhar corpos sem vida para colocar num saco estanque.

Os dias têm sido assim desde final de março. Doentes que recuperam, doentes que morrem, os riscos, 11 colegas infetados numa equipa de 25, uma nova farda e novos adereços, uma mulher também enfermeira, uma filha de dois anos. Todo um turbilhão emocional para gerir. “Tudo misturado, é uma coisa muito pesada.”

“Isto não é um filme”

Alexandra Costa | enfermeira

A cara quase tapada, marcas no nariz e nas orelhas, no rosto, corpo alagado debaixo da farda. “Os doentes não nos reconhecem de rosto completo, alguns conhecem-nos pela voz.” É preciso falar mais alto, por vezes. São 18 anos de enfermeira no mesmo hospital, 40 de vida, momentos de desalento, o dia em que chegou ao carro e chorou depois de saber que a segunda pessoa do seu serviço tinha dado positivo para a covid-19.

Não tomava banho no hospital, começou a fazê-lo no final dos turnos, antes de voltar a casa. Cabine do chuveiro desinfetada antes e depois. No início foi penoso, agora já é mais tranquilo. “Era um misto de medo, de ser eu o veículo de transmissão, e principalmente o medo de errar.” Errar na nova forma de atuar, errar nos procedimentos, esquecer-se de mudar de luvas entre as solicitações dos doentes. “O que era habitual, deixou de o ser.” Ainda não consegue dizer o que fica de tudo isto. Vivem-se as horas, dia após dia. Está no presente, não consegue espreitar o futuro. “O meu sonho é acordar deste filme, mas isto não é um filme.”

“Mais trabalho, mais cuidados”

Pedro Machado | empregado de limpeza

Ao sábado, o trabalho começa às oito da manhã e termina por volta das quatro da tarde. Há dez anos que recolhe resíduos hospitalares, de serviço em serviço, de enfermaria em enfermaria. Agora com máscara na cara. “Abafa um bocadinho.” Agora com desinfeção constante das mãos. “É um bocado estranho.”

Há mais lixos, mais resíduos, mais batas descartáveis. Pedro, 43 anos, veste a habitual farda verde, adicionou a máscara, anda acima e abaixo, no elevador, do primeiro ao quarto piso, com sacos de lixo que transporta em aparelhos com rodas. O camião que passará o portão com os resíduos do hospital está estacionado no piso menos dois. “É estranho”, repete. Toda a situação. “Temos mais trabalho agora e mais cuidados. Temos de ter precauções para nos protegermos a nós e aos outros.”