Rui Cardoso Martins

Marca vermelhinha na branquinha (II)

(Ilustracão: João Vasco Correia)

Disse o Fábio sobre o dia em que percebeu onde se tinha metido:

– Estávamos todos a tomar o pequeno-almoço e eu sugeri ir comprar sumo para o almoço. Vieram comigo o irmão da Vanda e os dois filhos.

Na rua surgiu o pai das crianças, ex-companheiro de Vanda. Parecia o início de um duelo. Foi “no mês três ou no mês quatro”:

– O tio levou os meninos para falarem com o pai e eu fiquei ali… O indivíduo vai-se aproximando e, quando está a cinco, seis passos de mim, é que me apercebo que tem uma mão atrás das costas e que tem uma pedra da calçada.

– E o que faz com essa pedra?

– Vi o movimento da mão que queria amandar com a pedra…

– E arremessou a seguir a pedra na sua direcção?

– Sim, fui atingido. Ainda me tentei desviar do percurso da pedra, mas àquela distância era quase impossível.

– E ele disse-lhe alguma coisa?

– Disse que me ia apanhar, qualquer coisa assim…

– Que o ia apanhar? Mas já o tinha apanhado, ou não?

– Já! Foi uma situação tão rápida… a situação acho que é mais instinto, porque depois pensei na situação em modo lento e se não me tivesse desviado teria levado com a pedra neste lado da fronte. Rodei o corpo e apanha-me nesta zona aqui.

Eu via a costura no couro cabeludo, uma pequena minhoca avermelhada, mas Fábio não a virou para as magistradas. Fábio era um homem forte, de tronco em V, mas todo o seu corpo dizia: eu meto-me em cada uma!

– Desviei-me da pedra. Mesmo assim levei com ela. Partiu-me a cabeça.

Uma irmã de Vanda caiu do céu (todos vizinhos no Bairro Padre Cruz) e meteu-se na batalha entre os dois homens, evitando crianças para sempre assustadas (o meu pai matou um homem à minha frente, um homem matou o meu pai, etc.). Mais tarde, Vanda levou Fábio ao hospital. Mas como ela explicou (ver crónica da semana passada), as coisas já não andavam bem com “a outra pessoa”, e pouco depois acabaram. Foi uma pedrada esclarecedora para Fábio: era ele “a outra pessoa”.

– Passou-se mais alguma coisa com ele?

– Ouvi uma gravação no telemóvel da dona Vanda. A maneira como falou, as palavras que dizia, não eram palavras bonitas. Eram ameaçadoras à dona Vanda.

Dona Vanda. É assim que Fábio lhe chama agora. Numa ocasião anterior, pareceu-lhe que o homem lhe tinha acertado na cabeça por trás, na paragem do autocarro. Murro não foi. Curiosamente, é como as descrições que Vanda faz dos golpes do ex-marido: “Não sei se é chapada, se um toque… não fica branca, fica um vermelhinho. Como sou muito branquinha, fica vermelhinho.”

– O senhor foi um bocadinho apanhado no meio…

– Eu não cheguei realmente a perceber como é que as coisas terminaram entre eles, ou não. Não cheguei a perceber. Aquilo parecia vingança. Não cheguei a perceber se eles acabaram a bem.

– Mas sabe quando é que eles terminaram a relação?

– Ó, doutora, eu saber ao certo…! Relações de tanto tempo e quando metem crianças… normalmente não terminam bem.

Agora Fábio falava com estranha sabedoria. Ou leu psicólogos ou viu muito por aí.

– Há casamentos e relacionamentos de mais de trinta anos que terminam bem, disse a procuradora.

– Sotora, pessoas normais com comportamentos normais não chegam a esse tipo de atitudes.

Uma situação que Fábio descreveu como “uma autêntica caça”.

– Mas qual era o problema que ele tinha consigo?

– Portanto… vingança, vamos lá ver. Eu estava com a pessoa que supostamente seria a pessoa… era a pessoa com quem teve uma relação que teve dois filhos. Talvez ainda houvesse algum sentimento. Eu como homem também não gostaria que a minha companheira começasse um relacionamento com outra pessoa. Agora, não chegava a esse ponto, né?

Ficamos mais descansados, né? Ou não, né? Na porta, Fábio perguntou-me como sair dali. Fui com ele até perto do elevador. Passámos pela Vanda, com a sua cara branquinha, às vezes vermelhinha. Ele sorriu para dentro, ela virou as costas e fixou os olhos num prédio, depois na ponte e no rio ao fundo.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)