Marca vermelhinha na branquinha (I)

Por alguma razão Vanda ali estava, tinha de explicar as aventuras do tempo em que esteve separada, ou melhor, em que meteu lá em casa “outra pessoa”, as chapadas na cara branquinha e as pedradas na cabeça do infeliz que gostou dela. Mas como Vanda voltou ao pai dos filhos, e ainda vive com ele, repetia:
– Eu não quero nada disto…
Vanda fez queixas por agressões, furtos, violência doméstica, mas conseguiu evitar falar sobre o período em que coabitou com o seu agressor. Sobravam duas semanas – separou-se em Julho de 2018, separou-se de novo no fim desse mês – e era desse período de liberdade, por assim dizer, que tinha de falar. Ela era testemunha da sua própria tragicomédia de ciúmes, do seu triângulo das Bermudas amoroso. Dizia a procuradora:
– Alguma coisa se passou, por isso é que estamos aqui… O que é que se passou depois de o arguido sair de casa?
– Separámo-nos e eu relacionei-me com outra pessoa. Foi quando começaram os desacatos…
– E essa relação começou antes ou depois de ele sair de casa?
– Já nos relacionávamos por mensagens, mas só depois de ele sair de casa é que começámos a relação.
Dois filhos no meio.
– E eu deixei o pai vê-los. Mas foi quando houve a primeira queixa… Ele deu-me um estalo e eu, se calhar, devia ter evitado e não evitei. Ao pé da creche. Ele apareceu.
Eram oito da manhã no Bairro Padre Cruz, em Lisboa.
– Ele tirou-me o telefone e disse: “podes ir embora”. Chamou-me nomes. Vaca, foi vaca. Tirou-me o telefone e deu-me assim uma aqui… Bom, mas eu também devia ter ignorado. Não me calei, fiquei um bocado a provocar.
Vanda tem olhinhos-azeitona no pires branco da cara e, por cima, uma brilhante cabeleira de alcaçuz.
– Provocar de que modo?
– A dizer: “Saio daqui o quê?! Não mandas aqui!” Eu fui para casa e foi quando fiz a primeira queixa.
– E nessa zona em que ele a agrediu, tinha alguma marca?
– Só fui ao hospital porque eles me mandaram, eu não tinha nada. Ficou vermelhinho, só… Se calhar também estava com raiva de ele me ter levado o telemóvel.
– Ficou com medo de alguma coisa?
– Não é ficar com medo… mas depois todos dão opinião e vamos seguindo as opiniões dos outros também…
A procuradora repetia perguntas. A juíza admitiu estar “toda caladinha”, o que nem era habitual no seu trabalho, mas quando as vítimas querem desculpar os agressores, que se pode dizer?
– Outra situação que tivesse acontecido enquanto estava separada?
– Houve mais uma vez, quando fui levar o menino à creche. Outra estalada. Nesse dia estava acompanhada pela minha irmã…
E saiu de Vanda um suspiro fundo, um sopro húmido que vinha de um buraco da sua vida, uma furna na maré alta, ufsssshhh!
– Eu na altura vinha da… eu ia para…
– Para onde?, disse a juíza, para aqui não era com certeza!
Vanda explicou que “aquilo era tudo muito perto”, “moro aqui em baixo, a creche ali em cima, a casa dele…” Ali se deu a segunda chapada, se for essa a palavra certa:
– Não sei se é chapada ou um toque… não fica branca, fica um vermelhinho. Como sou muito branquinha, fica vermelhinho.
E que mais? Vanda soube que “a outra pessoa” tinha levado uma pedrada na cabeça (obra do pai dos filhos) e que ela, claro, tinha levado “a outra pessoa” ao hospital, mas as coisas já não andavam bem com “a outra pessoa” e pouco depois acabaram. E ela e o agressor?
– Entretanto, reatámos.
– Depois destas estaladas?
– Sim, mas eu também não fui muito correcta… Pus a outra pessoa na minha casa sem ter uma conversa com o pai das crianças…
Saiu Vanda, entrou Fábio, que era “a outra pessoa”. Vinha risonho, porque uma outra pessoa mete-se em cada uma, não é? Tinha uma cicatriz na nuca (vermelhinha, curiosamente). Para a semana saberemos o que diz o Fábio sobre a trapalhada em que se meteu.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)