Manter ou não manter o apelido do cônjuge quando o matrimónio acaba

Em Portugal, são cada vez menos os casais que adotam o nome do outro (Foto: DR)

Aos 50 anos, Maria do Céu Antunes divorciou-se. Desde o final de julho que a segunda mulher a ocupar o cargo de ministra da Agricultura em Portugal passou a adotar o nome de solteira, abandonando o sobrenome Albuquerque, acrescentado após o casamento. Nas placas inaugurais que agora descerra já consta a mudança, assim como no perfil institucional no Facebook, onde já são poucos os vestígios do antigo sobrenome.

Para quem optou por adotar o nome de família do parceiro no momento da união, renunciar ao apelido do ex-cônjuge é quase uma sequência natural após um processo de divórcio em Portugal, quanto mais não seja para se fazer o luto da relação que finda. Mas não é forçoso que assim seja, se existir uma manifesta intenção de uma das pessoas em manter o apelido que adotou por ocasião e efeito do matrimónio.

Para esses casos, o Código Civil (Artigo 1677.º-B) prevê duas exceções: a manutenção do sobrenome adquirido através de uma autorização do ex-cônjuge ou então do tribunal. “Neste último caso, o processo inicia-se na Conservatória do Registo Civil e depois o ex-cônjuge é citado para se pronunciar, ou seja, para alegar as razões de eventual discordância. Não existindo um acordo na conservatória, o processo transita para tribunal, que depois avaliará se essa pretensão faz sentido ou não e se as razões da recusa por parte do ex-cônjuge são ou não legítimas”, começa por clarificar Nuno Cardoso Ribeiro à “Notícias Magazine”.

De acordo com o advogado, são poucos os casos em que alguém pretende utilizar o apelido contra a vontade do seu ex-cônjuge, aquando do divórcio. Daí que as decisões dos tribunais sobre esta matéria sejam raras, “o que indicia que não existirá grande litigiosidade” sobre o assunto. No entanto, acrescenta que “tipicamente isto poderá suceder em situações em que existe um interesse profissional, artístico, literário ou científico do nome”.

“A partir do momento em que se regressa ao apelido de solteiro, não se pode utilizar o do ex-cônjuge. É ilícito”, assegura Nuno Cardoso Ribeiro, advogado
(Foto: DR)

Um acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10 de julho de 2014 consultado pela NM descreve precisamente uma situação em que um dos cônjuges se recusa a dar o seu consentimento ao uso dos seus apelidos pela ex-mulher. Como consequência, a mulher divorciada instaurou uma providência contra o ex-marido, pedindo que lhe fossem mantidos os apelidos de casada, que constavam do seu nome desde o casamento em 1985, e que perdeu em consequência do divórcio por mútuo consentimento, ocorrido em 2010. Alegava, para isso, que tal perda significava “um grave prejuízo à sua identidade individual e familiar bem como à sua vida profissional, política e académica, enquanto autora de várias publicações nacionais e internacionais e ao desenvolvimento da sua tese de doutoramento em curso”.

Para contrapor, o ex-companheiro apresentou oposição, justificando, entre outros motivos, que a mesma já não pertencia “à família cujo nome denegriu com o seu comportamento adúltero e com as afirmações injuriosas e difamatórias que proferiu antes e depois do divórcio contra o contestante”.

O tribunal acabaria por considerar “improcedente a ação” uma vez que, entre outras razões, a mulher estaria a impor a conservação dos apelidos três anos após os ter perdido. “Constata-se que a mesma passou a identificar-se com apelidos que já não tinha, uma vez que os perdera quando foi decretado o divórcio. Jamais pode agora prevalecer-se de um facto por si criado para passados três anos vir invocar motivo ponderoso”, é possível ler no acórdão.

Apesar de ter recorrido da decisão, a mulher viu o recurso ser considerado de novo “improcedente”, confirmando-se a sentença.

Sobre este tópico, Nuno Cardoso Ribeiro acrescenta que, assim que a decisão do divórcio transita em julgado, em teoria a pessoa não pode usar aqueles apelidos que perdeu por mero efeito do divórcio: “A partir do momento em que regresse ao apelido de solteiro, não pode utilizar o do ex-cônjuge. Se o fizer, fá-lo ilicitamente”, reitera.

A globalização dos nomes

Em Portugal, são cada vez menos os casais que adotam o nome do outro. É pelo menos esta a perceção dos três especialistas consultados pela NM. As mulheres lideram os pedidos de adoção do apelido aquando do casamento. A justificação prende-se com a tradição: “O apelido funcionava como reconhecimento de pertença a uma outra família, em que muita da responsabilidade passava a ser do marido e em que as mulheres tinham uma autonomia social e financeira relativamente baixa. Por outro lado, havia uma certa pressão social”, salienta Maria João Valente Rosa.

Sob este último ponto, a demógrafa é perentória ao afirmar que hoje persiste uma certa imposição na sociedade para se assumir esse enquadramento familiar: “Ainda há dificuldade em contrariar a convenção”. A ex-diretora da base de dados Pordata recorda que o casamento perdeu o papel que tinha num passado “não tão remoto quanto se possa pensar”, e que a sequência natural de um apelido acabou por se refletir nessa mudança: “O casamento já não marca o início da parentalidade, a entrada na vida adulta ou da vida em conjunto. O casamento já não é um contrato para a vida”.

De acordo com os dados disponibilizados pela Pordata, a maioria dos nascimentos em Portugal acontece fora do casamento. Em 2018, 56% dos nados-vivos já eram de pais não-casados, enquanto em 1960 essa percentagem era inferior a 10%. Também no que diz respeito ao número de divórcios, e novamente conforme a base estatística da responsabilidade da Fundação Francisco Manuel dos Santos, por cada 100 casamentos há 58 divórcios em Portugal (dados de 2018) – em 1960 o rácio de divórcios por cada 100 casamentos era inferior a 2.

Mas será que no presente é mais difícil tomar a decisão de pedir o divórcio do que no passado? Maria João Valente Rosa acredita que sim: “No passado essa desvinculação representava a rutura do casamento. Atualmente não significa apenas isso, mas sim o recomeço de uma nova vida do ponto de vista público. Há todo um capital que se perde e que demora a ser construído”.

“Mesmo que a adoção de apelidos desapareça, continuamos a traçar a linha pela família dos pais e não das mães”, admite Maria João Valente Rosa, demógrafa e professora
(Foto: Gonçalo Vilaverde/Global Imagens)

Para a também professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa, a construção de um indivíduo assenta ainda na trajetória de vida associada a um nome. “Com a ‘globalização’ dos nomes há muitas vezes uma necessidade de negociação, e são públicos alguns casos em que se negoceia o facto de as mulheres manterem o apelido do marido para não perderem uma certa visibilidade social que foram alcançando enquanto estavam casadas com alguém.”

A NM solicitou ao Instituto dos Registos e Notariado dados concretos sobre o número de pessoas que fizeram o pedido de adoção de apelido, bem como a renúncia formal dos sobrenomes do ex-cônjuge nos últimos anos. Apesar dos pedidos insistentes, não obteve resposta.

Se por um lado parece haver cada vez menos razões para se adotar apelidos aquando do matrimónio, por outro a identificação social através da parentalidade ainda continua a pesar, uma vez que o último sobrenome é o que normalmente conta na sociedade portuguesa. “Mesmo que [a adoção dos apelidos] desapareça, o que é facto é que continuamos a traçar a linha através da família dos pais e não das mães”, lembra Maria João Valente Rosa.

A ex-diretora da Pordata questiona o debate em torno da igualização dos papéis dos progenitores através do apelido: “Era interessante discutir se faria algum sentido que as crianças adotassem uma forma em que o predomínio da mãe e do pai estivessem em igualdade de circunstâncias, sem haver predomínio de um dos lados. Importa ser discutida esta linearidade que é feita através do pai”.

A importância da marca pessoal

Foi há seis anos que Alice Araújo se separou. À NM conta que, apesar do entendimento com o ex-cônjuge, “não fazia muito sentido continuar a manter o nome dele”, adotado aquando do casamento muitos anos antes. Quando saiu da Conservatória do Registo Civil de Vila do Conde, não perdeu tempo a renunciar formalmente ao apelido com a realização de um novo cartão de cidadão, desta vez com o nome de solteira. “Como era algo relativamente fácil de mudar, fi-lo”, adianta a empregada de balcão.

Mas se a esmagadora maioria das pessoas não tem um nome que interesse preservar, há quem se recorra dele para se fazer valer em termos profissionais.

Contactada pela NM, Maria do Céu Antunes, ministra da Agricultura, preferiu não comentar o tópico. “Este é um assunto de índole pessoal”, sintetizou.

No entanto, uma das pessoas que procurou um processo de “personal branding” para alterar o apelido explicou à NM por que razão o fez. “Não sabia muito bem o que fazer porque não queria expor o meu divórcio, que ainda por cima não tinha corrido bem, mas sabia que, mais tarde ou mais cedo, teria de o assumir profissionalmente”, diz a oradora e especialista em marketing digital, que preferiu não se identificar.

Revela que entendeu ouvir um profissional “isento desse sentimento” para prever as consequências que essa mudança traria. “O meu nome estava em todo o lado: nos cartões de visita, no endereço de e-mail, no LinkedIn. Estava com receio de perder alguns contactos, porque durante muitos anos fiz palestras e dei algumas entrevistas”, confessa. Por isso, esta profissional viu na separação o “momento certo” para energizar o perfil de trabalho e fazer uma mudança total.

Quando há um divórcio ou uma zanga entre partes da família, e se isso implicar uma mudança radical de nome, então é expectável que esse momento tenha impacto na marca pessoal. “Se vamos mudar o nome é natural que as pessoas, sobretudo aquelas com quem temos uma maior proximidade, façam perguntas. Por isso, é importante estar preparado para responder, definindo-se aquilo que se quer ou não partilhar. Esconder ou não responder causa sempre algum impacto no outro”, afirma Raquel Soares.

“O nome profissional é uma ferramenta muito poderosa, que pode acrescentar e potenciar a gestão de uma carreira”, reconhece Raquel Soares, especialista em imagem profissional
(Foto: DR)

Esta especialista em imagem profissional é da opinião de que a comunicação da separação tem de ser o mais ponderada possível. Caso contrário, gera-se um impacto que dificilmente é mensurado. E exemplifica: “Podemos estar a passar uma imagem errada de que não estamos bem, de que estamos com um problema pessoal, de que não sabemos lidar com ele ou até de que estamos com menos energia”.

Apesar de as marcas pessoais não serem estanques, Raquel Soares sublinha a importância que tem a escolha do nome profissional. “Quando falo para estudantes, digo-lhes que estão no momento certo para pensar nisso. Há uns anos, falar de marca pessoal era estranho, agora não. Os profissionais perceberam que é uma ferramenta muito poderosa, que pode acrescentar e potenciar a gestão de uma carreira.”