Luto real por amigos virtuais

As interações online são relações sem presença física e estabelecidas quase sempre através do texto debitado via chat, mas isso não significa que algumas não se tornem amizades verdadeiras. Como se lida com o desaparecimento de quem nunca se conheceu pessoalmente?

Foi a dor que fez com que se abrisse pela primeira vez uma janela de chat entre Conceição e Maria. Mas só a pura satisfação de ambas ao encontrarem uma amiga do outro lado fez a relação durar quatro anos.

Conceição Cardoso, de 51 anos, aderiu ao Facebook em 2010. Já lidava com fibromialgia há cerca de nove anos, mas foi um acidente que lhe deixou sequelas muito dolorosas que a fez aderir a um grupo online de dor crónica na rede social. “Era um grupo de entreajuda de pessoas que tinham um problema comum. Falávamos do que fazíamos e do que deixámos de fazer por causa das dores e limitações. Eu, por exemplo, estive cinco anos em casa, sem trabalhar, só saía para consultas e tratamentos. Eu e a Maria criámos uma ligação forte desde os primeiros momentos”, recorda a contabilista de Braga.

Conceição descreve a amiga como alguém muito sensível, que amava a família e adorava viver. Era a alegria do grupo, mantinha o espírito positivo e tinha sempre uma piada ou uma frase bonita que ajudava a alegrar o dia dos que se sentiam mais abatidos. Começaram por trocar mensagens no mural e nos posts do grupo, mas rapidamente passaram a contactar através de mensagens privadas. Inicialmente falavam duas ou três vezes por semana, à noite. Depois, quando Maria ficou de baixa, conversavam todos os dias, durante uma ou duas horas. Uma frequência que só diminuiu quando foi diagnosticado um cancro a Maria e entrou em tratamento.

Quando recebeu uma mensagem de uma amiga virtual comum a perguntar se a Maria tinha mesmo morrido, Conceição passou pela negação que tipicamente marca o momento da perda: não quis acreditar. Mas a confirmação chegou pouco depois. “Chorei nesse dia, nos dias seguintes e durante muito tempo sempre que me lembrava dela. Hoje, passados quatro anos, já a consigo recordar sem lágrimas nos olhos, mas o vazio ficou. Perdi uma amiga verdadeira, apesar de nunca nos termos chegado a encontrar pessoalmente. A amizade da Internet existe e o luto é real porque nós somos reais”, garante.

“A amizade da Internet existe e o luto é real porque nós somos reais”

Estabelecer relações online é cada vez mais a regra e menos a exceção. Das muitas interações com desconhecidos que fazemos diariamente, quase sempre no contexto de murais de amigos ou em grupos com interesses comuns, algumas acabam por passar para o chat privado com apenas um clique. A maioria das vezes o contacto é pontual ou superficial, mas cada vez com mais frequência florescem amizades e relações significativas desta forma.

O facto de não haver corpo e presença física não significa que não se possam criar laços estreitos. “Formamos relacionamentos, sobretudo, com base em interesses comuns e na similaridade na personalidade. Antes da Internet, na maioria das vezes, fazíamos isso cara a cara. Mas, historicamente, sempre houve pessoas que formaram laços de amizade por meio da escrita de cartas”, defende Kathleen R. Gilbert, professora emérita da Indiana University School of Public Health, nos Estados Unidos da América, e ex-diretora da Association for Death Education and Counseling.

Para a especialista, coautora do livro “Dying, Death, and Grief in an Online Universe” (Morrer, Morte e Luto no Universo Online, sem versão em português), um dos poucos livros publicados sobre este tema, o atual uso de canais textuais de áudio e vídeo para comunicação pode mimetizar com facilidade as relações presenciais. De resto, assegura, são um ótimo instrumento para quem tem uma deficiência ou problema de saúde incapacitante e é obrigado a permanecer muito tempo em casa, porque permite fazer novas amizades em torno de experiências comuns.

Mas quando a caixa de chat deixa de abrir o mundo pode desabar. “Uma pessoa que presencialmente socializa pouco e que tem uma grande amizade através da Internet acaba por ocupar grande parte do seu dia com esse convívio online. Quando o outro desaparece, fica um buraco, um vazio. Não há uma relação com corpo, mas há partilha, desabafo, companhia, muitas horas que foram passadas juntos”, reflete Carol Gouveia e Melo, psicoterapeuta na área do luto e diretora da AMARA – Associação pela Dignidade na Vida e na Morte.

“Uma pessoa que presencialmente socializa pouco e que tem uma grande amizade através da Internet acaba por ocupar grande parte do seu dia com esse convívio online. Quando o outro desaparece, fica um buraco, um vazio”
Carol Gouveia e Melo
psicoterapeuta

Um pesar sem corpo, mas com direitos

O luto é o processo, sobretudo emocional, pelo qual passamos até integrar na nossa vida a perda de alguém que nos era querido. “Não importa se foi de um amigo que conhecíamos pessoalmente ou só online. A perda é sempre real. Um luto é um luto”, argumenta Cristina Felizardo, conselheira de luto e CEO do projeto CFeliz, um centro de apoio a pessoas em processo de luto ou conflito. Mas isto pode ser pouco óbvio para muitas pessoas. O maior desafio no luto por um amigo que não se conhecia pessoalmente, de acordo com a conselheira, é a censura social.

Kathleen R. Gilbert chama-lhe o “luto desprovido de direitos”: o tipo de luto que ocorre quando o processo e o sofrimento são vistos como ilegítimos. “Estes enlutados estão a sofrer uma perda real, a sua dor é genuína e legítima, mas sentem muitas vezes que devem manter isso escondido porque temem ser ridicularizados. Isso fá-los experimentar a montanha-russa emocional típica do luto, mas com o stress adicional de sentir que sua perda não é reconhecida como real pelos outros.”

Conceição pensa agora muitas vezes na pena de nunca ter conhecido Maria pessoalmente, de nunca a haver abraçado, apesar de esse desejo ser mútuo. Mas com esta censura social, que reconhece que é frequente, não teve de lidar.

“A minha família – nomeadamente as minhas filhas, mãe e irmã – nunca questionou a minha dor, a minha tristeza ou as minhas lágrimas. Sabiam que as minhas companhias durante anos, por causa das limitações da dor, foram o computador e o telefone. Aliás, foi assim que também consegui manter o contacto com outros amigos e alguns familiares”, conta. Também no grupo online onde se conheceram sentiu o seu sofrimento reconhecido e encontrou apoio de outras amigas virtuais em comum. Apesar de o luto ser individual, a perda de Maria foi sentida por todos os membros da comunidade online a que pertencia.

“Não importa se foi de um amigo que conhecíamos pessoalmente ou só online. A perda é sempre real. Um luto é um luto”
Cristina Felizardo
conselheira de luto

Tradicionalmente, o funeral é uma parte importante do processo de luto, na medida em que ajuda a aceitar a perda do outro. “É um ritual social importante: marca um novo espaço e tempo, que nos ajuda a interiorizar que aquela pessoa já não volta. É por isso que fazer o luto é mais difícil quando um corpo não aparece. Emocionalmente, o enlutado deixa uma porta aberta à esperança”, explica Cristina Felizardo.

No entanto, numa relação online que nunca teve presença física, o funeral não se reveste da mesma importância e os rituais tendem a ser distintos. “Se era uma relação sem corpo há outros rituais que podem ser feitos, também eles online: as mensagens nos murais das pessoas, nos grupos a que pertenciam, ou a criação de uma página ‘em memória’ são formas de deixar gravado no tempo que aquela pessoa desapareceu. Só que essa marca é feita no espaço virtual, onde se desenvolvia a relação”, acrescenta.

As tecnologias de comunicação estão, de resto, a expandir as possibilidades do luto. “Muito familiares e amigos íntimos criam hoje páginas de homenagem aos seus entes queridos e continuam a postar em páginas de pessoas que já morreram de forma a honrar a sua memória”, realça Kathleen R. Gilbert.

O luto do futuro

Em Portugal não há números que mostrem a dimensão do universo das amizades virtuais mas, nos Estados Unidos, de acordo com os dados do Pew Research Center, um em cada quatro adolescentes tem amigos virtuais. “Para nós, que não somos nativos digitais, esta forma de amizade não é comum, por isso temos tendência a desvalorizá-la. Mas para os jovens, que já nasceram com estas tecnologias, fazer amigos assim é perfeitamente natural”, defende Cristina Felizardo. Para a especialista, esta desvalorização dos mais velhos, nomeadamente dos pais, pode ser um obstáculo a um luto saudável quando morrem amigos virtuais.

Nos Estados Unidos, de acordo com os dados do Pew Research Center, um em cada quatro adolescentes tem amigos virtuais

Os estudos que existem sobre relações online centram-se sobretudo no amor romântico, mas dão conta de um fenómeno que se pode extrapolar para as relações de amizade: quando a relação é à distância acaba por haver, sobretudo entre os mais jovens, mais tendência para a idealização. Como não há tantos constrangimentos à imaginação, acaba-se por descrever o outro e a relação de forma irrealisticamente positiva.

“O facto de não haver uma convivência física faz com que mais facilmente se crie uma fantasia em relação à pessoa e ao laço de afeto. Tornamos o outro numa pessoa que, na nossa cabeça, é perfeita”, alerta Cristina Felizardo. Nesses casos, o processo de luto pode ser ainda mais difícil de fazer: é muito difícil aceitar a perda de uma pessoa idealizada. Se há uma morte de um amigo online, os pais devem estar atentos se os sintomas de tristeza e apatia são intensos e se prolongam no tempo.

Recordar o outro e reviver experiências em comum também faz parte do processo de luto. E também é possível, talvez até com mais facilidade, quando o amigo era virtual: toda a relação está registada no histórico de mensagens. Cada foto enviada, cada música partilhada, cada palavra trocada, cada confidência feita.

Se há uma morte de um amigo online, os pais devem estar atentos se os sintomas de tristeza e apatia são intensos e se prolongam no tempo

Aliás, é tão fácil recordar o outro que o verdadeiro desafio é conseguir parar de o fazer. Os mais futuristas já falam de comunicação holográfica 3D com os mortos e sobre a possibilidade de recolha de todo o rasto eletrónico que a pessoa deixou, de forma a criar uma “persona post-mortem” para o falecido com quem os vivos possam “conversar”.

A ideia preocupa um pouco Kathleen R. Gilbert: “Muitas vezes dizemos, em sentido figurado, que um relacionamento não termina verdadeiramente com a morte, é apenas transformado. Mas, a avançar no futuro a possibilidade de comunicar dessa forma com pessoas que já morreram, a transformação é tão grande que teremos de refletir sobre as implicações que tem para um luto saudável”.