Leis que ladram mas não mordem

Os cenários, tantos e tão distintos, falam por si. De um lado, a boa vontade popular, que se tem feito regra. Há muito que a alternativa à sobrelotação dos centros de recolha animal (canis municipais) passa pelos anónimos, pelas associações de “amigos”, por todos aqueles que se compadecem com o sofrimento e que lutam pelo bem-estar dos animais. São a alternativa ao que devia de ser competência do poder. Muitas vezes sob a forma de abrigos ilegais, com e sem condições. Do outro, o negócio. A seleção das raças. O animal como objeto de luxo. A criação à porta fechada, o lucro não declarado. Ou, então, a criação de rafeiros, que depois são vendidos em feiras, ou noutros locais, que rendem uma nota ou duas. Há ainda os doentes com perturbações psiquiátricas, os acumuladores. Pessoas que acolhem mas não cuidam. Sofrem do Síndrome de Noé. É um flagelo. Para todos.

A lei que em 2014 criminalizou os maus-tratos a animais nada veio resolver. Os organismos do Estado com responsabilidades na matéria nem sempre conseguem acudir às denúncias. Animais acorrentados, espancados, enjaulados em espaços minúsculos, famintos, com sede, que vivem, comem e dormem em cima das próprias fezes, abandonados. Muitas situações de risco acabam ignoradas por não se saber o que fazer ou por insensibilidade das autoridades no terreno. Assim, as denúncias até podem ter aumentado, mas não se traduzem em condenações.

Defensores da causa animal, voluntários de associações e veterinários não se calam. Os agentes da autoridade e os veterinários sabem que os canis e gatis estão cheios. Todos sabemos. Pedem ajuda às associações, às pessoas que têm espaços “ilegais” – os que vivem da caridade alheia. Não havendo alternativa, deixam os bichos no mesmo sítio onde os encontraram, à guarda dos donos que os maltratam e negligenciam.

Os exemplos, tantos e tão díspares, falam por si. E não se esgotam nas linhas anteriores. Recentemente, dezenas de cães e gatos morreram carbonizados no “Cantinho das 4 Patas”, um abrigo ilegal escondido na Serra da Agrela, em Santo Tirso. O mesmo que tinha sido denunciado no final de 2017, por “uma situação de insalubridade, ameaça à saúde pública e, mais grave ainda, de maus-tratos e negligência a animais indefesos”. O caso seguiu para tribunal. Em 2018, o Ministério Público arquivou o processo considerando “não haver crueldade em manter animais num espaço sujo, com lixo, dejetos e mau cheiro”, diz o despacho. Aconteceu no mesmo ano em que a proposta legislativa do PAN, que proibiu o abate dos animais, entrou em vigor.

Horas antes de os animais morrerem queimados – e mesmo depois de o espaço ter ardido – muitos se prontificaram a ajudar. Da tragédia, que por diversas vezes podia ter sido evitada, esperam-se ações efetivas. Soluções. Para que o choque não se fique apenas nas imagens e relatos das redes sociais e das notícias do momento.

Georgina Silva esteve lá, na noite do incêndio, a 19 de julho, e também no dia 20, quando os populares, à revelia das ordens da GNR que zelava “pela propriedade privada” e tratava de fazer respeitar “as indicações do veterinário municipal” (entretanto suspenso), invadiram o espaço para resgatar os sobreviventes e cuidar dos feridos.

Morreram 73 e 190 foram distribuídos, segundo a Autarquia, por canis municipais, associações e por particulares. Georgina ficou com três gatinhos cheios de pulgas. “Era o que eu podia acolher.” É fundadora e presidente do “Santuário Cantinho dos Animais da Gi, Associação”, em Vila Nova de Gaia, uma espécie de templo, onde os animais podem “andar à vontade”. Tem ao seu cuidado 16 cães e 18 gatos. A maior parte velhinhos que não estão para adoção. Seria difícil, reconhece. “Tenho um cão cego, uma cadela com um tumor.”

Todos os dias, Georgina recebe chamadas com alertas de animais bebés abandonados. Muitas vêm dos bombeiros e até da polícia. Já lhe conhecem o esforço em prol da causa. “Ultimamente são muitas ninhadas de gatos. Deixam-nos em caixotes do lixo.” E não acontece apenas no período de férias. “Abandonam os bichinhos o ano todo.” Os que dá para adoção vão chipados, desparasitados e esterilizados. “A ideia é evitar nascimentos, há animais a mais.” Esse parece ser o ponto-chave, a esterilização. “Que além de ajudar a controlar a população animal, contribui, está provado, para que os animais tenham uma vida mais saudável.” Então porque é que ainda não foi posto em marcha um plano de ação? “Devia ser obrigatório. Em países como a Holanda não existem animais abandonados precisamente por causa disso. Quando esterilizamos um, estamos a salvar 100.”

A ativista não aceita a desculpa da dificuldade financeira. “Quando são pessoas que eu vejo que não têm meios, das duas uma: ou assumo eu o pagamento ou combino com os veterinários e é feita uma atenção no valor. Nisso eles ajudam-nos muito.” Mas a verdade é que os preços praticados podem assustar, dependendo se é gato ou cão, macho ou fêmea, de pequeno ou grande porte. Valores que facilmente atingem os três dígitos. “Quem sou eu para dizer que os veterinários cobram valores altos? Eles têm despesas com a clínica, com o material, com o pessoal”, constata Georgina.

Para Marisa Quaresma dos Reis, provedora municipal dos animais de Lisboa, chegou a hora de mudar o paradigma. “É necessário investir no combate ao abandono” e uma das estratégias passa por “reduzir o IVA nos cuidados médico-veterinários, oferecendo as esterilizações e tornando a esterilização obrigatória”. Paralelamente, defende um serviço clínico com preços acessíveis a famílias com baixos rendimentos, a redução ou eliminação do valor a pagar no ato do registo dos animais e a implementação de medidas eficazes de sensibilização. Que não passam pelo regresso da política de abate. “A lei falhou por falta de iniciativa. Muitas das autarquias não aproveitaram as verbas disponíveis nacionais, nem os fundos europeus para colocar em prática uma rede de esterilização ou para melhorar as condições dos canis, por exemplo.”

A provedora chama ainda a atenção para o mercado dos animais. “Não podemos fechar os olhos a quem faz criação. Porque não se aumentam os impostos e se taxam estas pessoas? Temos de ganhar coragem. E conceber uma estratégia nacional que envolva todos os atores da causa, que passe por uma campanha massiva em prol da adoção de animais institucionalizados, em detrimento da compra de animais de companhia.” No seu entender, “não vale a pena construir mais canis e gatis, que amanhã estarão cheios novamente”. Mais uma pessoa a tocar o caso holandês: “Suspenderam a venda de animais. Houve uma agressiva campanha de adoção e esterilização massiva e resolveu-se o problema”.

Para Portugal ir no mesmo sentido, Marisa Quaresma dos Reis afirma ser preciso repensar a estrutura da DGAV (Direção-Geral de Alimentação e Veterinária). “Está pensada para a indústria alimentar e para ver os animais como objetos e produtos e não como seres vivos com sensibilidade. Tem de se criar uma outra orgânica. Tem de haver uma entidade que pense nos animais na perspetiva dos animais, coisa que não temos nesta estrutura governamental.”

O primeiro-ministro, António Costa, parece ter indicado o mesmo rumo no debate do Estado da Nação, onde se mostrou incomodado com a tragédia ocorrida em Santo Tirso. Para o chefe do Governo, foi um “massacre chocante” e “absolutamente intolerável”, garantindo António Costa que, tendo em conta que a DGAV mostrou não ter “capacidade ou competência” para agir no caso, há que “repensar” numa nova estrutura dedicada aos animais de companhia. O Ministério da Agricultura, que responde pela DGAV, não comentou diretamente o assunto, mas informou depois que o diretor, Manuel Bernardo, havia apresentado a demissão, decisão aceite “de imediato” pela ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes.

Recorde-se que no dia 19 de junho foi criado um grupo de trabalho para o bem-estar animal, com o objetivo de definir “uma estratégia nacional para os animais errantes, determinando o universo de animais abrangidos, as suas prioridades e a calendarização dos investimentos a realizar”. No grupo estão representadas “a DGAV, a Ordem dos Médicos Veterinários, a Associação Nacional de Municípios Portugueses, a Procuradoria-Geral da República e uma ONG (organização não-governamental) a designar pelo grupo de trabalho”. Na primeira reunião, ocorrida a 16 de julho, “foi decidida a realização de um inquérito direcionado a todos os municípios, com o objetivo de proceder ao levantamento de todas as associações protetoras dos animais existentes, incluindo as instalações que as mesmas possam deter e o número de animais e espécies alojadas”. Atualmente, diz a mesma fonte, em 308 municípios, estão registados oficialmente 176 alojamentos de animais de companhia sem fins lucrativos e cerca de 900 alojamentos com fins lucrativos autorizados, “sujeitos a vistorias prévias antes da obtenção do título e objeto de vistorias de controlo em situações de denúncia, suspeita de irregularidades e no contexto de fiscalizações de controlo”.

Segundo Inês Sousa Real, líder parlamentar do PAN, “não foi por se ter proibido os abates que a situação dos canis e gatis se descontrolou”. A deputada acrescenta que, “desde 1925, as câmaras municipais são obrigadas a ter centros de recolha e sempre houve inércia para ter lugares para os animais”, e alerta para o perigo de agora, após o mediatismo do caso de Santo Tirso, se começarem a confundir associações de proteção animal com abrigos ilegais.

“É muito complicado denominar o abrigo x ou y como ilegal”, sustenta Dolores Silva, defensora da causa animal, cujo currículo já conta com inúmeros resgates de rua. “Verdade seja dita, boa parte dos canis que não são legais, não têm condições. As jaulas não cumprem, são pequenas. Mas também não há legislação nenhuma que proteja ou ajude essas pessoas, que também estão em situação precária e que fazem o que podem.” Não querendo desculpar as donas do abrigo que ardeu, a ativista realça que “as câmaras mais depressa ajudam clubes de futebol profissionais do que as associações sem fins lucrativos que aliviam boa parte dos problemas dos canis”.

O trabalho de Margarida Ferreira também sobrevive da caridade alheia. O seu caso é peculiar, assume. “Um pau de dois bicos.” Por um lado, é cabo da GNR, conhece bem as leis. Por outro, é protetora dos animais. “Não é fácil.” Desde 2013, já passaram pelas suas mãos 4 500 animais, que acolheu num espaço que adquiriu a expensas próprias, em Bragança, mas que só em março de 2019 conseguiu legalizar. “O que não foi fácil.” Dias depois de falar com a “Notícias Magazine”, o seu abrigo foi fiscalizado pela PSP. “É bom que se saiba que andam em cima do acontecimento.”

Margarida Ferreira, cabo da GNR e protetora, tem um abrigo em Bragança que legalizou no ano passado. Não é a favor do retorno à política de abate, mas defende que a eutanásia deve ser praticada em casos específicos
(Foto: Rui Manuel Ferreira / Global Imagens)

Nas redondezas todos conhecem as suas boas ações. “É por isso que não temo que os ativistas venham para aqui fazer caça às bruxas. Basta olhar para ver que os meus animais estão bem tratados, ao contrário do que acontecia em Santo Tirso.” Sobre esse caso diz não ter dúvidas que as culpas se estendem a todos. “As câmaras ou as entidades acomodam-se e fecham os olhos a essas situações porque enquanto os animais estão ali não andam a conspurcar as ruas com doenças. Toda a gente sabe o que se passa. O problema é a fiscalização. É que em muitos abrigos há ilegalidades e, depois, onde vão colocar os animais? Ficam lá.”

Margarida acolhe atualmente 40 bichos. Não defendendo o regresso da política do abate é a favor da eutanásia em casos específicos. “A quem se vai entregar o cão agressivo? Quem vai adotar um cão em fim de vida? Quem quer um animal doente crónico? O que estão a fazer no canil? Por muito cruel que possa parecer, estão a ocupar o espaço de animais jovens, saudáveis e adotáveis.” A solução parece-lhe óbvia. “Deviam obrigar os detentores de fêmeas, um por um, a esterilizarem os animais. Nem que demorasse cinco anos. Aí fazia-se alguma coisa. Senão é chover no molhado.”

O provedor dos animais de Almada, Nuno Paixão, junta a sua voz ao coro. “Não vamos matar animais saudáveis.” Até porque “está demonstrado que não é uma forma eficaz de controlar a população, senão já tínhamos conseguido. O plano passaria por começar a retirar cachorrinhos e gatinhos da rua, pois “são os que têm mais possibilidade de serem adotados”. Avançar depois para a remoção e esterilização de fêmeas, cadelas e gatas, “por causa do potencial de reprodução”. A seguir os machos. “Por sequências. Porque não conseguimos fazer tudo ao mesmo tempo.” No entretanto, enfrentava-se outro problema. “A eutanásia não é abate e está legalizada. Animais em sofrimento que têm um problema incurável podem e devem ser eutanasiados. Precisamos é de ter uma melhor avaliação clínica, psicológica e médica dos animais que estão em abrigos, para analisar a viabilidade do seu tratamento e reabilitação.”

No Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC), que obriga a registar cães, gatos e furões, sob pena de multas, há indicação de 2 093 510 cães e 230 801 gatos. Não se sabe quantos andam na rua. Dolores Silva recebe mais um par de chamadas. Há uma ninhada de gatos que precisa de ser recolhida. Uma cadela de rua está em muito mau estado. “Fizeram leis, mas as leis não funcionam. Quando será que se vão mentalizar que há um problema sério e de todos em Portugal?”, questiona.