Rui Cardoso Martins

Ladrões de Bicicletas

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

O primeiro rapaz trabalhava na restauração na Margem Sul, mas teria outras actividades de madrugada. O segundo, mais novo, tirava curso profissional e vivia com a mãe. O terceiro não apareceu. O primeiro cumpre agora dois anos num estabelecimento prisional, mas foi preso a seguir, nada a ver com a bicicleta.

O desaparecimento da bicicleta verde-alface foi em Julho de 2018, na Penha de França, Lisboa. Agora, no banco dos réus, os acusados tinham a cara lisa como pneu careca.

– Não a levei. Comprei-a por 50 euros no meu bairro. Na rua, disse o mais novo.

– E quem era essa pessoa?

– Não sei.

– Comprou-a na rua a uma pessoa que não conhecia?

– Era um toxicodependente que estava a precisar de dinheiro.

– E foi comprar um objecto roubado?

– Não esperei que a bicicleta fosse roubada.

– Onde é que a bicicleta foi depois encontrada?

– Eu meti à venda no OLX. Apareceram pessoas interessadas.

– E depois?

– Liguei, fui a Odivelas e quando cheguei o comprador era um polícia.

Disse o mais novo que o mais velho, o preso, mais o terceiro rapaz, foram só acompanhá-lo na venda. A haver culpado, era só ele (o menor). E a sua mãe. Foi ela quem deu 50 euros para comprar a bicicleta no meio da rua. Também achou barato, a mãe.

– Essa bicicleta foi furtada, recordou o juiz.

Como podiam adivinhar? O primeiro rapaz, o preso, disse:

– Somos os três amigos.

– É verdade que não tem nada a ver com isto?

– É verdade, respondeu o rapaz.

Trabalha na restauração mas o currículo é variado: três roubos e um furto qualificado. Tem cadastro e cumpre pena. Mas, repetiu o rapaz, foi a Odivelas só para ajudar na transacção porque era o único dos três amigos com telefone para combinar pormenores com o cliente. Chegaram e afinal o novo cliente era o dono antigo, ou melhor, alguém representado por um polícia da Esquadra de Investigação Criminal de Loures.

E depois nem bicicleta nem telemóvel, que o guarda confiscou. Um negócio muito fraco. O polícia disse ao tribunal:

– Nós tínhamos o auto de furto da bicicleta. Contactámos o ofendido para dar mais pormenores. Ele verificou que tinha a bicicleta à venda no OLX.

– Como é que ele sabia que era a dele?

– Era muito específica. O guarda-lamas… a cor verde-alface. Com maleta. Ele tinha a certeza de que era a dele.

A versão do rapaz mais novo aguentava-se: disse logo à polícia que fora a mãe a dar o dinheiro.

– Fiz a apreensão do telemóvel e da bicicleta. Posteriormente, entregámos a bicicleta ao proprietário.

O rapaz furtado era um barbudo com roupa escolhida para parecer que não a escolhe, depois montar uma bicicleta verde-alface com maleta para computador e seguir pelas alfacinhas ciclovias. [Em “Ladrões de bicicletas”, de Vittorio de Sica, 1948, Antonio Ricci corre Roma a pé numas calças rotas, atrás dele vai o seu bambino em calções, procuram uma escura bicicleta roubada, sem ela não podem trabalhar nem comer.]

– Era o meu meio de transporte, disse o dono da bicicleta verde-alface. O valor em nova era de 600 euros. Eu deixava-a na rua. De sexta-feira para sábado foi roubada. Eu estava na polícia e vi que estava à venda no OLX.

– Como é que sabia que era a sua?

– Era verde-alface… que não há muitas desta cor. Uma das fotos ainda tinha o cadeado à volta da roda!

Os olhos brilhavam-lhe de amor verde-hipster. Amarrada a um poste. O poste era de estacionamento para deficientes, com a placa da matrícula do carro lá em cima.

– Quando fui à polícia, a pessoa que tem o sinal de deficiente também já tinha feito queixa.

A mãe que comprou a bicicleta não foi depor. Faleceu há pouco tempo. Ninguém viu quem arrancou o poste de deficiente para roubar uma bicicleta. Também ninguém colocou o poste no OLX. Por falta de provas, a procuradora pediu a absolvição dos alegados ladrões de bicicletas.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)