Júlia Pinheiro: “Até já me esqueci que existe uma maneira de viver sem pressão”

"Sou muito robusta em relação à crítica. caso contrário seria um massacre", reconhece a apresentadora de televisão (Foto: Paulo Alexandrino/Global Imagens)

Há quase três décadas em antena, gosta de se formatar. Foi justiceira em Praça Pública, sarcástica e mordaz na Noite da Má Língua, provocou Gregos e Troianos. Já a vimos histriónica, um poço de alegria e, mais recentemente, em voz serena. Assumiu cargos de direção em duas estações, sem se deixar intimidar pelo poder. É da rádio, experimentou a escrita e também o palco, no papel de atriz. Aos 58 anos, ainda procura o risco. Não vai ficar por aqui.

No camarim, em Carnaxide, destaca-se a conhecida coleção de sapatos stiletto, de todas as cores, íngremes e cobiçados. Passa pouco das seis da tarde e do final de mais um direto. Sem pressa, Júlia Pinheiro retoma a conversa precisamente no ponto em que ficara à hora de almoço. “Tudo o que sei sobre o amor foi-me ensinado pelo Rui.”

De manhã, escolhera o Ritz. Chegara antes da hora. “Neste estado”, comentara, referindo-se à ausência de maquilhagem. Não teme o envelhecimento, dirá a certa altura. Que até gosta. Sem o filtro da câmara, é mais magra e mais jovem. Muito longe dos 60 anos, que diz “quase ter”. Da idade tira todo o proveito. Hoje pode dar-se ao luxo de se declarar num processo de “humildade absoluta”. De se afirmar “muito boa naquilo que faz”. De remeter o sucesso ao seu devido lugar.

O nosso dia começara com um chá e uma pergunta: “O que quer saber de mim?”.

O que adora que as pessoas digam sobre si?
Bom, deixe-me pensar. Olhe, gosto que respeitem uma espécie de legado que tem a ver com a forma de comunicar séria e honesta, feita com verdade jornalística, com respeito pelo género que me notabilizou num passado recente – o daytime. Gosto que digam que sou uma boa profissional, séria, empenhada e comprometida com os preceitos da profissão.

Recentemente, escreveu que a maioria das pessoas tem uma perceção errada a seu respeito. Errada em que sentido?
Os programas em que me apresentava histriónica e com grande entusiasmo por coisas frívolas – e fiz vários durante muitos anos – passaram a imagem de uma excessiva leveza. Mas o que me deixa mais triste é acharem que sou de uma autoridade extrema. Dura, uma líder execrável, uma general sem coração, tendo em conta, sobretudo, os 15 anos em que estive em cargos de direção. E isso deixava-me perplexa, porque sou o oposto. Se há algo de que me orgulho é da tremenda abertura que tive, e tenho, perante tudo o que é novo. Falo sobretudo de talentos mais novos, de como os abracei, tentei dar-lhes palco e visibilidade. Por isso, a ideia de que sou um monstro tirano, que exerço o poder cheia de mim própria e das minhas certezas não podia estar mais longe da verdade. E isso deixava-me lixada (gargalhada).

A estrela tem de ter mau feitio.
Pois eu não tenho capricho algum. Sou a pessoa mais normal do Mundo. E raramente tenho mau feitio, mas não diga a ninguém (riso). De uma forma geral, as redes sociais e a imprensa tendem a achar que nós, os da televisão, somos formatados pela mesma bitola, temos os mesmos interesses, somos todos iguais. Ora não somos.

Seja como for, está entre as mulheres com muito poder em Portugal. Fale-me desse poder.
O meu poder é o de quem está todos os dias em antena, em proximidade com o telespectador há quase 30 anos. A ouvir pessoas, a dar-lhes voz e visibilidade. É um poder de influência. Se esse poder se traduz também em capacidade de decisão, em poder económico? Não o vejo assim. É claro que tenho opções de escolha. É claro que dentro da minha indústria tenho algum peso, ou terei mesmo bastante peso. Mas que resulta sobretudo do conhecimento acumulado e dos resultados. Não de estratégias ou táticas.

Esse poder pode levar mais longe. Oprah já foi considerada presidenciável. Trump vem da televisão. Veja-se Cristina Ferreira.
Orgulho-me de ter a descoberta da Cristina (Ferreira) no meu palmarés. Como minha aluna, identifiquei nela uma espécie de fator X, algo que não é decifrável nem palpável, que vai além da capacidade de comunicar e que tem a ver com a capacidade de tocar o outro. A Cristina aliou a técnica, que foi apurando, a essa capacidade. Por fim, em cima disso, veio uma palavra que detesto. Sucesso. É uma palavra perigosíssima.

Porquê?
Porque passa depressa a objetivo quando deve ser consequência. No imaginário recente, sobretudo das gerações mais jovens, a palavra tornou-se obsessão. É pena. É uma palavra redutora, que em vez de acrescentar retira valor. Comigo é ao contrário. Sou muito boa no que faço e faço-o todos os dias com uma grande entrega e sentido de responsabilidade. Por isso, não aceito que o meu trabalho seja medido em muito ou pouco sucesso. Pelos resultados, sim. E sobretudo por isto: desempenho muito bem e de uma maneira muito correta as minhas incumbências. De tal maneira que vivo tranquilíssima, nada preocupada com a palavra sucesso.

É um conselho a Cristina Ferreira?
Sobre a Cristina Ferreira, tendo em conta que estamos em empresas em conflito, não quero pronunciar-me mais do que já fiz.

O sucesso é fátuo. Sobretudo em televisão.
Absolutamente efémero.

Desde logo, vivem sob a ditadura das audiências. Como lida com ela?
Com uma enorme calma e paciência. São já muitos anos.

Mas aposto que é a primeira coisa que vê quando acorda.
É de facto um instinto matinal. É a primeira coisa que faço no telemóvel. Quando não me beneficiam, fico um bocadinho machucada, mas tenho uma enorme vantagem – sei que no dia anterior fiz o meu trabalho o melhor que podia, sempre com muita convicção. O que me dá enorme tranquilidade.

No entanto, por vezes, custa a saída de antena. O lugar.
Isso acontece em qualquer profissão.

Raramente com o mesmo grau de agressividade.
Tenho de concordar consigo, há muita pressão, mas, sabe, até já me esqueci que existe outra maneira de viver. Não vivo as audiências com muita ansiedade. Os bons profissionais, os que estão nesta indústria com seriedade, têm capacidade para lidar com isto.

Como se compete com os que não estão?
Entendendo os fenómenos, lendo os sinais, antecipando tendências.

Ou cedendo. Juntando-se a eles uma vez já que não se conseguem vencer?
Não tenho em relação a nada uma atitude definitiva. Não digo “isto não me interessa” ou “não vou rebaixar-me” a algo que veja emergir. Nunca. Pelo contrário: tento entender o fenómeno e retirar dele o que me interessar, se conseguir, vivendo com aquela nova presença – nem vou chamar-lhe ameaça –, com a tranquilidade necessária. Vou cheirando, vou vendo. (riso)

Qual é a linha vermelha?
Não tenho linhas vermelhas. A determinada altura tive de fazer trabalhos que podiam não me interessar tanto. Mas não mais de que isso. Na empresa em que trabalho não preciso de as ter. Caso contrário, estaria no local errado e eu, quando estou mal, mudo-me.

No “Júlia”, apresenta todos os dias casos difíceis, dolorosos.
Sim, histórias de vida que sirvam de espelho para o que as pessoas estão a viver em casa. Depois de altamente verificadas, escrutinadas, ou seja, jornalisticamente inatacáveis. É um registo muito intimista, muito próximo, suave e sereno. Longe do histrionismo de que falam os meus detratores. Achei outra voz, baixa, calma e serena. Deixei de ter medo dos silêncios. Dos meus e dos dos entrevistados.

Já aconteceu considerar-se emocionalmente incapaz de tratar alguns desses casos?
O meu pai morreu com um cancro do pulmão. Nessa altura pedi que durante 15 dias não me dessem histórias semelhantes. Por causa das minhas filhas, a anorexia também não me é um tema simpático. Mas nunca recusei nada em antena. Até porque não o posso fazer. O direto implica estar-se ali inteirinho.

Instalou-se a ideia obsessiva de que a entrevista só vale se o entrevistado chorar?
Comigo não. A ideia é as pessoas contarem a sua história. Foram precisos 30 anos de televisão privada, com uma componente maior de entretenimento, para que os portugueses começassem a pensar que se fossem à televisão falar de si, validavam o seu problema, a sua dor perante o olhar dos outros. Pode parecer estranho ou bizarro, mas é isto que sinto sempre que pergunto a alguém porque é que decidiu estar ali.

Nunca sentiu necessidade de proteger aquelas pessoas que estão ali tão frágeis?
Várias vezes. Até de problemas legais. A pessoa vai apenas até onde quiser e peço muitas vezes que me avisem se estiver a ser demasiado intrusiva. Não quero escarafunchar a ferida que a pessoa quis levar ali. Agora, também digo: a ferida é mostrada porque o entrevistado quer. Setenta por cento das vezes, a iniciativa parte do entrevistado.

Não é explorar o fascínio por cinco minutos de fama?
Não. Eles vão lá por necessidade de divã. De exorcizar.

Nunca se arrependeu de nenhum desses momentos?
Sou muito maternal e muito macia. Creio que nunca magoei ninguém. Espero. Mas não posso dizer que por uma vez ou outra não tenha sentido que se calhar expusemos em demasia um ou outro caso.

Convidados que nunca aceitaria e a quem nunca daria a palavra?
Está a falar de André Ventura e de Mário Machado? É altamente controverso, eu sei, mas acho que todas as vozes devem ser ouvidas. Para serem desmontadas. Se as desmontarmos deixam de ser perigosas.

Ao fim de 30 anos um apresentador ainda tem muito a aprender?
Sempre, sempre. Eu ando ao contrário. Se calhar, fui um bocadinho mais arrogante no passado. Hoje, perto dos 60, estou num processo de humildade absoluta. Sim, tenho coisas para aprender. Seguramente.

Faz-se boa televisão em Portugal, na área do entretenimento?
Ótima, do melhor que se faz no Mundo. O contrário é um erro absoluto veiculado pelos nossos estimados colegas da imprensa escrita, fascinados pelo que se faz lá fora. A grande diferença é que, nos países de grandes mercados, as grandes vedetas estão sempre disponíveis para as televisões. Aqui não. Recusam-se terminantemente a participar num programa de entretenimento. Se fosse lá fora, ainda que uma piolheira, aposto que alinhavam.

Os políticos não se têm esquivado. Pelo contrário.
A política é outro campeonato. Estou a falar das grandes figuras de várias áreas. Da ciência à literatura e de outras áreas do conhecimento.

Que importância dá à crítica?
Já me magoaram muito, hoje não me magoam nada. O que se diz nas redes sociais, então, nem me toca. Sou muito robusta em relação à crítica. Tenho de o ser, caso contrário seria um massacre.

Recorda as críticas mais duras?
Sobre a voz. Que em antena gritava muito.

Curioso: duas apresentadoras muito consideradas, ambas com um problema de voz.
No meu caso tem a ver com o entusiasmo. Num registo festivo e alegre, exorbito um bocadinho, admito. Outras tinham mais a ver com o formato do programa do que comigo. Depois, havia a questão física. Não sendo a mulher mais bonita do Mundo, sequer a mais bonita da indústria, as pessoas não entendiam como é que vingava num meio que exige preceitos de beleza. E concluíram: por cunhas. E isso magoava-me sobretudo porque não viam o óbvio: que sou eficaz.

Nesse sentido, acha que quebrou um registo?
Não tenho essa pretensão. Acho sim que tive a sorte de ter sido escolhida por pessoas que não estavam reféns dessa ideia. Quando a Maria Elisa, o Emídio Rangel, o José Eduardo Moniz, e outros, me contrataram sabiam o que estavam a fazer. Ainda que não fosse a rapariga mais bonita do pedaço tinha solidez e substância.

Como acha que é vista pelos seus pares, pelo meio?
Diria que muito bem vista. Julgo que os colegas me estimam e sabem das minhas capacidades. Que as hierarquias das empresas por onde passei têm isso muito claro.

Mas é um meio muito competitivo, até porque é muito pequeno.
É verdade, mas devo dizer que não tenho nenhuma história de competitividade desenfreada. Sempre encontrei elegância. A vida foi andando, umas vezes melhor outras pior, mas sempre consegui chegar aonde queria.

Que relação tem com a imagem?
Distante. Uma relação com o espelho muito desprendida e esse é um dos grandes erros da minha vida. Talvez o único por que me penalizo. Gosto de estar bem, com um ar cuidado, gosto muito de roupa e invisto em roupa, mas não penso um segundo que tenho de estar linda e maravilhosa, que a luz tem de estar correta, a maquilhagem perfeita. Sou completamente desligada. Dou tanto valor ao momento da conversa que me estou nas tintas para a luz. No passado, deixava-me fotografar de qualquer maneira. E se hoje sou um bocadinho mais criteriosa é porque as redes sociais vieram mostrar que uma má fotografia fica sempre lá. E eu tenho tantos amigos na imprensa que escolhem sempre a minha pior fotografia. (gargalhada)

Esqueceu os sapatos.
Ah, sapatos. Gosto muito, tenho muitos, considero que fazem parte do meu código. A grande parte dos sapatos admirados e cobiçados estão no camarim guardados. E não são oferecidos. São comprados.

A idade castiga mais as mulheres. Ainda mais as da televisão.
É verdade. Mas quem está há 30 anos no olho do público aprende a lidar com isso. Tentar alterar o rosto não faz sentido. Não é leal. Tem a ver com a verdade. A passagem do tempo é para todos. Não posso aparecer com cara de 35 quando tenho quase 60.

A idade traz novas vidas. O envelhecimento dos pais, a perda.
Essa fase chegou aos 50 e foi muito difícil. Os últimos dez anos têm sido muito complexos em termos familiares. Sou filha única e a retaguarda dos meus pais. Ora, para quem não sabe, o direto implica uma espécie de código militar. Sei que cada minuto que tiro à minha preparação pode prejudicar a eficácia. Essa ideia é horrível. Portanto, os pais adoecem e eu sei que não posso estar na quimio porque é à tarde e eu à tarde tenho direto. Sei que se estiver no dia da cirurgia, não poderei estar no pós-operatório. Às tantas, forma-se uma avalanche emocional de culpa tremenda. Queremos estar em todas as frentes e não conseguimos. Foram, de facto, anos muito difíceis. Primeiro, com a doença e a morte do meu pai; e, no ano passado, com o AVC da minha mãe. Esta angústia tem sido o mais difícil da minha idade madura.

Como se combate a dor e a adversidade?
Sou muito boa. Reajo muito bem no momento. Saio de imediato para o terreno e tento resolver os problemas de todos. Mas não sei se um dia não terei de parar para saber o que isso deixou em sequelas emocionais. Nunca fiz um luto na vida, não houve tempo, nunca tive disponibilidade para chorar muito. A antena chama e na antena não se pode estar triste. Pode-se estar um bocadinho, mas não muito. E eu sou muito boa a disfarçar sentimentos.

Cruel.
É. Por isso é que isto não é para toda a gente. Muitos colegas acham que a transparência emocional na antena faz parte. Não comigo. A minha emoção não tem de perturbar o meu trabalho. Na antena, chorei uma vez e de forma muito dissimulada. Ninguém reparou. E já nem me lembro sobre que foi. Geralmente baixo a voz. Quando me ouvem a falar muito baixinho, os meus filhos piram-se.

Envelhecer não traz nada de bom, na verdade.
Não me importo nada de envelhecer. Tive sorte com a minha menopausa. Fiquei apenas um bocadinho mais irascível, mais melancólica. A alegria que faz parte do meu caráter – eu era um poço de alegria – abrandou um pouco. Mas a idade também trouxe coisas boas. Estou com a voz mais bonita, mais baixa. E desobriga-nos de tanta coisa. Já não tenho de ser a mais bem vestida da festa, já não tenho de ser quase tão bonita como as outras. É libertador.

Diz agora o que dantes calava?
Em privado sim, em público, antes pelo contrário, obrigo-me a uma certa contenção para dar o exemplo. Sinto-me responsável pelas gerações que vêm atrás.

Que conselho lhes dá?
Leiam, leiam, trabalhem e sejam sérios. Todo o conhecimento faz falta.

Está otimista em relação às novas gerações?
Não particularmente. Na área dos média, vive-se uma dimensão toda feita de espuma, sem substância. Sem grande peso. Voltamos às palavras perigosas: sucesso, fama. A fama nunca me interessou, nem interessa. O reconhecimento nunca me maçou, mas não há nada mais agradável do que estar fora de Portugal e não haver ninguém a reconhecer-nos. Se bem que aparece sempre alguém. (risos)

Quais foram as suas referências?
Fui para a televisão por causa de Maria Elisa, da Margarida Marante, da Manuela Moura Guedes, do Miguel Sousa Tavares.

Recorda a primeira vez que encarou a câmara?
Durante muito tempo aquele olhar próximo, intenso, que apanha tudo, metia-me muito medo. Depois, transformou-se num caso de amor. Dominar aquele olhar é a nossa técnica. Em frente a uma câmara estou completamente à-vontade. Sem texto, então, sou particularmente eficaz.

Gosta da imagem que vê?
Detesto e por isso não vejo. A não ser quando erro, nunca me vejo.

Qual é maior pânico de um apresentador?
Já não tenho pânicos. Mas até hoje faltou-me coragem para ver a abertura da Expo 98, uma gala que fiz com o Carlos Cruz, para a SIC e para a RTP, em simultâneo. O grande pânico era perder o teleponto. Em regra, trabalho sem teleponto, mas naquele caso tinha de ser. O Carlos lia em português, eu em inglês. Chegou a minha vez, o teleponto caiu. Parte de mim desfez-se perante o “Portugal político e económico” e várias figuras internacionais, em peso no pavilhão. Uma gala transmitida para 18 milhões de pessoas, muito, naquela altura. Salvou-me o Carlos. Tinha o texto no bolso, em cartões. Comecei a ler, muito devagar. E saiu-me de forma irrepreensível. Mas ainda hoje não consigo ver as imagens.

Em que momento percebeu que a televisão era o seu futuro profissional?
Quando comecei a terá aprovação dos outros.

Defende o que chama “jornalismo justiceiro”. Quer dizer exatamente o quê?
Jornalismo de causas e de cidadania, se preferir. Denúncia de injustiças. Comecei a fazê-lo no “Praça Pública” e nunca mais me largou. Adensou-se quando passei a matérias relacionadas com crime e justiça. Paixão a que um dia voltarei. É uma questão de tempo, apenas.

“A Noite da Má Língua” (com Miguel Esteves Cardoso, Manuel Serrão, Rita Blanco e Rui Zink) revela a Júlia sarcástica?
Foi uma incumbência do Rangel que me deixou siderada. Até porque estava convencida de que ia ficar na redação, embora também tivesse percebido que não teria grande hipótese. Queria ser pivô ou grande repórter e a redação da SIC, à época, como agora, era e é profundamente masculina.

É uma crítica?
É, sim senhora. A única que conseguiu dar um salto muito bem dado foi a Clara (de Sousa), que é uma pivô de primeira linha. Continuando: fiquei surpreendida porque o programa rompia todos os cânones, com riscos imensos, nomeadamente o da censura. Não podia fazer um programa que criticava a censura para depois ser censurada. O Emídio Rangel garantiu-me que isso nunca aconteceria. E cumpriu. De maneira que o programa começou por ser maldito desde logo para os colegas. Começa aí a minha má imprensa.

E os políticos?
Não achavam graça nenhuma. Foi difícil as pessoas perceberem a ideia. Era louca, disruptiva. Foi um período muito simpático. Passámos de malditos a programa de culto para acabar em programa popular. Sempre com liberdade total. Deve ter trazido muitos problemas dentro da empresa. (risos)

Francisco Balsemão nunca se queixou?
Nunca me disse nada. Se houve problemas foram resolvidos com o Rangel.

Dá-se bem nesse registo sarcástico?
Tão bem que achei que aquele ia ser sempre o meu caminho. Programas com loucura, alguma irreverência e crítica sarcástica, terreno onde me dou lindamente. Sou abrasiva. Sou um bicho muito crítico. Tenho tentado controlar, mas quando menos se espera pode sempre sair alguma coisa que deixe um rasto de ácido.

Hoje, seria possível um programa como “A Noite da Má Língua”?
Penso que não. Era um programa muito arriscado. Rangel era um homem extraordinário, mas arriscava muito. Hoje seria profundamente infeliz e nós com ele. Porque hoje as apostas têm de ser muito seguras e o Rangel fazia uma televisão de impulsos e de apostas onerosas.

“Há um lado sóbrio na minha infância”, escreveu na sua revista online. Acabou a primeira classe sem saber ler nem escrever.
Cresci numa família que tinha uma pessoa muito doente em casa, a minha avo materna. Vivíamos juntos, com a doença da minha avó sempre sobre nós. Por isso, em vez de ir para o infantário, fui deixada em casa. Era uma forma de animar o ambiente, papel que desempenhava muito bem. Quando a minha avó morreu e fui levada para o infantário, senti grandes dificuldades de relacionamento com os outros meninos. Mais. Embora fosse muito amada e muito cuidada sempre que a minha mãe me deixava na escola, achava que ia abandonar-me. Por tudo isto e porque a família era muito ocupada não aprendi a ler. E como sou uma rapariga que representa muito bem, disfarçava. Já depois da morte da minha avó, tinha uma epifania e de repente lia tudo.

Disfarça muito bem, sempre?
Sou uma pantomineira.

A adolescência também não foi fácil.
Fui vítima de bullying político. Vivia-se a revolução, o meu avô, apesar de comunista, tinha um negócio bem-sucedido e, portanto, eu era a Júlia fascista. Ser alta e muito magra também não ajudava. Mas eu reagia com olímpica indiferença. Olímpica, aparente, porque aquilo mexia comigo. Camuflava com essa tal alegria e recompunha-me com os mimos da minha mãe. Que sendo muito ocupada e severa me dava muito colo. Passada essa fase, tinha montes de amigos e fui até muito namoradeira.

Fale-me da severidade da mãe.
Severa com os resultados escolares e com minha formação enquanto mulher. Melhor, a minha formação como dona de casa. Formação que eu recusava, determinantemente. Aos 14 anos, sabia que não teria uma vida comum e, portanto, disse à minha mãe que não se atrevesse a fazer o enxoval porque nunca me casaria. Jamais.

Casou.
Porque conheci o senhor Rui Pêgo. Esse senhor convenceu-me.

Como?
O Rui é a melhor coisa da minha vida. Mostrou-me que uma vivência a dois pode ser maravilhosa. E foi e tem sido. Há 36 anos. Ele convenceu-me. Casei com 23 anos. Coerência absoluta (riso).

Três filhos: duas gémeas, Matilde e Carolina, de 22 anos, e Rui Maria Pêgo, de 31 anos. É fácil ser filho da Júlia Pinheiro?
Creio que os meus filhos nunca sofreram por terem uma mãe conhecida. Na adolescência, talvez tenha sido um pouco pesado, mas nunca balizaram isso. Para o meu filho tem sido mais complicado. Não que tenha de provar nada porque tem o talento detetado, nem é favor dizer que o rapaz tem jeito. Mas o facto de ter sido diretora em duas estações com uma palavra a dizer na contratação fez com que o meu filho jamais fosse considerado. Por ele e por mim. Fechei-lhe portas? Fechei, mesmo acreditando, ao contrário doutros, na meritocracia. Mas é muito novo. Tem 31 anos e o caminho todo pela frente. As filhas nunca se interessaram por esta vida.

Porque sentiu necessidade de falar da anorexia de quem não escolheu a exposição pública?
Não foi necessidade, foi consequência. A imprensa da área teve a informação de que que uma das minhas filhas sofria de anorexia e a partir daí restavam-me dois caminhos: ou liderava a comunicação ou deixava que outros liderassem. Em regra, quando deixamos que os outros liderem, sai asneira. Portanto, com a aprovação da minha família assumi. Tive de ir à frente. As minhas filhas não precisavam daquela exposição, e custou muito. Foi o momento mais difícil de gerir de toda a minha carreira profissional. Mas pronto. Está ultrapassado. E encerrado de vez.

Escancarar a porta é um perigo.
É verdade, e aqui sim há linhas vermelhas. O meu site resulta da necessidade de alimentar as redes sociais. Não vejo mal algum na mitificação, no bom sentido, das figuras publicas. Temos de transmitir uma mensagem ainda que ser transparentes não signifique que as pessoas se sentem no meu sofá. Tem de haver peso e medida. E linhas que não ultrapasso. As pessoas que alimentam essa máquina, os influenciadores, mitificam vidas perfeitas que seguramente não são as vidas delas.

O que é um bom dia para a Júlia?
Quando se faz um bom programa. É chegar a casa, tirar os sapatos, a roupa apertada, pegar num copo de vinho. Gosto de cozinhar. Por todas as razões e mais uma sou cozinheira defensiva. Mas gosto muito de comer. É um problema muito grande.

Alguém que ainda tenha vontade de entrevistar?
Natália Correia. Não estou a lembrar-me de mais ninguém.

Preocupa-se em dar voz às mulheres? É a favor das quotas?
Muito. Quanto às quotas, no passado não fui, hoje sou. Tenho muita pena que sejam necessárias. No caso das mulheres, batemos sempre no telhado de vidro e é esse telhado que tem de ser partido.

Voltemos ao poder. Ser poderosa rendeu-lhe alguma deferência?
Há uma hipocrisia funcional. Em muitas ocasiões, houve seguramente quem parasse para me ouvir ou tivesse a gentileza de me dar troco em alguma coisa porque sabia que eu tinha o poder de escolha.

É crente?
Sou agnóstica. Não tenho a graça da fé. Não fiz a catequese nem a primeira comunhão. Não sei acompanhar a missa. O meu marido é. Por isso, casámos pela igreja, batizámos os filhos, estiveram em colégios católicos. E hoje cada um vive a fé à sua maneira. Eu não tenho essa graça.

Mas foi parar à Rádio Renascença.
Que sabendo tudo isso me contratou e as coisas correram muito bem.

Rádio ou televisão?
A rádio foi a minha primeira pele. Mas, ao fim de algum tempo, bati com a cabeça no teto. Foi uma fase muito importante da minha vida, gostei muito, mas precisava de outros desafios.

Foi essa mesma necessidade que a levou ao palco, para fazer “Monólogos da Vagina”?
Foi. Preciso do risco e gostei imenso. Apesar de todas as dificuldades. O AVC da minha mãe ocorreu três dias antes da estreia, mas ela aconteceu. E hei de voltar ao teatro. Sei que nunca serei uma extraordinária atriz, mas ficarei contente se for uma atriz competente.

Se pudesse escolher, que papel escolheria?
Gostava de fazer um papel com carga dramática, ainda que julgue que o registo comédia me será mais fácil. Porque, na verdade, sou uma pantomineira.